Discernimento – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 04 Mar 2022 21:00:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Discernimento – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Discernir: Jesus mestre e educador https://observatoriodaevangelizacao.com/discernir-jesus-mestre-e-educador/ Fri, 04 Mar 2022 21:00:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44106 [Leia mais...]]]> A Campanha da Fraternidade 2022 (CF 2022) segue os passos do método ver-julgar-agir em nova roupagem, explicitada pelo Papa Francisco como escutar, discernir, agir. Depois de tratar do eixo da escuta, seguimos com dimensão do discernir. A Campanha nos permite olhar para Jesus como grande mestre e educador.

Um jeito novo de educar

No tempo de Jesus, a sinagoga era o lugar de escuta e de estudo das Escrituras Sagradas e de debater os problemas e desafios da comunidade judaica. Jesus ensinava nas sinagogas (cf. Lucas 4,14-30) e, no conjunto dos evangelhos, vemos como Jesus aproxima as Escrituras da realidade da vida. O povo percebia que suas palavras não eram vazias (simples retórica), mas ensinava com autoridade, não como os doutores da lei (Mt 7,29).

O conteúdo do ensinamento de Jesus é profundamente comprometido com a vida e o futuro de seu povo. Ele escolhe no livro de Isaías o texto em que o profeta assume a missão de libertar os pobres, os presos, os oprimidos, de abrir os olhos dos cegos e anunciar o ano da remissão, em que as dívidas eram perdoadas e era dada uma nova oportunidade de refazer a vida com dignidade. Jesus assume esta missão e a atualiza em sua vida: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura” (Lc 4,21). Jesus coloca a palavra em ação, traduz a Escritura em atos e atitudes a favor da vida e dos mais vulneráveis, daí vem sua autoridade, como nos apresenta o Texto Base da CF 2022 (TB 149).

Jesus é um “mestre” que se coloca a serviço da vida do povo, um educador que abre os olhos, que leva a pensar de maneira crítica, relendo os acontecimentos, com novos olhos, sempre com misericórdia (TB 151). Jesus usa a Escritura como luz para discernir a falta de fé do povo de seu tempo. É o que ele deixa claro ao retomar a ação de Deus a favor da viúva estrangeira no tempo de Elias e a favor da cura do leproso, também estrangeiro, no tempo de Eliseu. Com visão clara, Jesus denuncia a falta de fé do povo da sinagoga de Nazaré. E mesmo com um ensinamento correto, fiel às Escrituras e de olhos abertos aos acontecimentos da história, Jesus foi rejeitado, expulso da cidade e ameaçado de morte, pelos seus irmãos de fé.

Porém, animado pelo Espírito, Jesus não perdeu o rumo ou a direção de seu projeto educativo-libertador: “passando no meio deles, continuou o seu caminho” (Lc 4,30). O conjunto dos Evangelhos nos revela que a pedagogia de Jesus liberta as diversas categorias de cativos: os pecadores (Lc 15,7-10), os cobradores de impostos (Lc 15,1-2; 19,7), os que são economicamente oprimidos (Lc 16,19-31), os possuídos pelos demônios (Lc 11,14), os doentes (Lc 13,10-17), os samaritanos (Lc 17,11-19) e os gentios (Lc 13,28-20)…

Educar um processo contínuo

A CF 2022 nos aponta a necessidade de um “modelo de educação que priorize o encorajamento ao aprendizado e à construção de conhecimentos significativos, que permitam a todos os atores do processo educativo abrirem-se à aprendizagem como tarefa que nos acompanha pela vida afora” (TB 112). Uma educação que não apenas garanta o acesso à escola, ao colégio, à faculdade, mas que esteja alinhada com a garantia de melhores condições de vida, pois sem a devida preparação para o exercício de uma profissão, cresce ainda mais o muro de separação entre ricos e pobres (TB 113). É preciso que o processo ensino-aprendizagem não seja apenas eficiente, mas que seja eficaz, de olhos abertos para a realidade unindo teoria e prática (TB 116). 

A pandemia também escancarou uma realidade de exclusão social quanto ao acesso às ferramentas digitais. As aulas podiam ser acompanhadas por meio de computadores, tablets e celulares, porém muitos não tinham acesso a essas ferramentas e outros, mesmo tendo os aparelhos, não tinham acesso à rede de internet com capacidade para participar das aulas. Importa lembrar que “as tecnologias podem muito, mas não podem tudo.” Quando ofertadas de maneira desigual, reforçam a exclusão que se espera superar (TB 118).

A valorização dos trabalhadores na educação é outro desafio a ser levado a serio. A polarização de opiniões se acirrou, aumentou a intolerância e desinibiu os violentos. Como resultado, há casos de agressões, abusos e violência dentro e fora da escola (TB 120). Somos chamados a trabalhar por uma educação que promova a vida em primeiro lugar, que resgate a dignidade da pessoa humana e eduque para a fraternidade e solidariedade, que valorize, em todos os sentidos os profissionais da educação. Onde também a escola se converta em uma comunidade sempre aberta a aprender. 

Abrir-se à acolhida

Educar e educar-nos para acolher, abrindo-nos aos mais vulneráveis e marginalizados. Num mundo globalizado, a igualdade geral não foi alcançada, mas se acentuaram muitas formas de desequilíbrios sociais, econômicos e culturais. Ao lado dos cidadãos que obtêm os meios apropriados para o desenvolvimento pessoal e familiar, muitos são “não cidadãos”, “semi-cidadãos” ou “sobras urbanas”, excluídos (cf. Evangelii Gaudium, n. 74).

A educação deve, portanto, ajudar a viver o valor do respeito, deve ensinar “o amor capaz de aceitar todas as diferenças, a prioridade da dignidade de cada ser humano em relação a qualquer uma de suas ideias, sentimentos, práticas” (Fratelli Tutti 191). Jesus Cristo é o modelo maior de mestre e educador e nossa missão é sermos discípulos missionários educadores, continuadores de sua missão no mundo (TB 155). Neste sentido é muito feliz o refrão do hino da CF 2022: E quem fala com sabedoria, é aquele que ensina com amor. Sua vida em total maestria, é pra nós luz, caminho, vigor”.

A educação é um caminho para o exercício da caridade cristã, a serviço de uma sociedade mais fraterna e justa (TB 156). E, é na vivência comunitária, na construção de relações fraternas, na qual vamos nos educando, nos humanizando, na medida em que procuramos colocar em prática o que Jesus viveu e ensinou. Somos chamados a formar a pessoa humana em todas as suas dimensões, criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), nossa missão é colaborar para que as pessoas sejam um retrato vivo de Deus na atualidade. E isto devemos começar a partir de nós mesmos e das pessoas que convivem conosco, cultivemos em nosso ser e agir o falar com sabedoria e ensinar com amor (cf. Pr 31,26).

Para aprofundamento: Nosso modo de ser, de agir e educar estão, cada vez, mais próximos ou distantes do jeito de Jesus? Por quê? Em que precisamos melhorar?

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Denilson Mariano
É religioso missionário sacramentino, Mestre e Doutor em Teologia (FAJE), Licenciado em Filosofia (PUC Minas), presidente do Movimento Boa Nova (MOBON) e agente da formação de cristãos leigos e leigas.  É membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), apoiador da Animação Bíblica da Pastoral no Regional Leste II da CNBB e membro da Equipe Executiva do Observatório da Evangelização. 

Faça download do texto base da Campanha da Fraternidade aqui!

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“Para ser ouvida, a Igreja precisa mudar de método.” Entrevista com Jean-Claude Hollerich, relator do próximo Sínodo. https://observatoriodaevangelizacao.com/para-ser-ouvida-a-igreja-precisa-mudar-de-metodo-entrevista-com-jean-claude-hollerich-relator-do-proximo-sinodo/ Mon, 28 Feb 2022 12:00:00 +0000 https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/?p=44036 [Leia mais...]]]>

O jesuíta, Jean-Claude Hollerich, cardeal responsável por ser o relator do próximo sínodo. mostra-se uma figura de abertura e diálogo com os principais temas da contemporaneidade. Numa entrevista permeada pela franqueza e a humildade de um homem experimentado pela missão e por um olhar agudo às mudanças de nosso tempo, o cardeal oferece um panorama de possibilidades e reflexões que devem iluminar a Igreja em um processo de verdadeira conversão institucional. A entrevista foi conduzida por Loup Besmond de Senneville, da revista La Croix, e traduzida por Moisés Sbardelotto, do IHU. Leia a seguir:

♦ O senhor foi missionário no Japão, é jesuíta, arcebispo de Luxemburgo, cardeal… Sempre buscou a Deus do mesmo modo?

Quando eu cheguei ao Japão como jovem padre, foi um grande choque. Na época, eu era um jovem impregnado do catolicismo popular de Luxemburgo. Com outros jesuítas, cada um proveniente de um ambiente católico diferente, vimos muito cedo que os nossos modelos de catolicismo não correspondiam à expectativa do Japão. Para mim, isso foi uma crise. Eu tive que me abstrair de todas as devoções que até então constituíam as riquezas da minha fé, renunciar às formas que eu amava. Fui confrontado com uma escolha: ou renunciava à minha fé porque não encontrava as formas que eu conhecia, ou iniciava uma jornada interior. Eu escolhi a segunda opção. Antes que pudesse proclamá-la, eu tive que me tornar um buscador de Deus. Eu dizia insistentemente: “Deus, onde estás? Onde estás na cultura tradicional e na cultura do Japão pós-moderno?”. De volta à Europa depois de 10 anos, eu tive que recomeçar. Achei que encontraria ali o catolicismo que eu havia deixado na minha juventude. Mas aquele mundo não existia mais… Hoje, nesta Europa secularizada, tenho que fazer o mesmo exercício: buscar a Deus.

♦ A Europa hoje voltou a ser uma terra de missão?

Sim. Há muito tempo. O Luxemburgo da minha juventude se assemelhava um pouco à Irlanda, com grandes procissões, uma forte piedade popular… Quando eu era pequeno, todas as crianças iam à igreja. Meus pais não iam, mas me mandavam, porque era normal fazer isso. Lembro que na escola uma criança da minha turma não tinha feito a primeira comunhão, e foi um escândalo. Agora, o que provoca escândalo, em vez disso, é que uma criança a faça. Mas, refletindo, dou-me conta de que aquele passado não era tão glorioso. Evidentemente, eu não percebia isso quando era criança, mas percebo hoje que, já naquela época, havia muitas fissuras e muita hipocrisia naquela sociedade. No fundo, as pessoas não acreditavam mais do que acreditam hoje, mesmo que fossem à igreja. Elas tinham uma espécie de prática dominical cultural, mas sem que isso se inspirasse na morte e ressurreição de Cristo.

♦ Na sua opinião, essa prática cultural do catolicismo acabou?

Ainda não totalmente. Isso varia de acordo com as regiões do mundo. Mas estou convencido de que a Covid vai acelerar esse processo. Em Luxemburgo, temos um terço de praticantes a menos. Tenho certeza de que não vão voltar. Entre eles, encontram-se pessoas de uma certa idade que acharão difícil e cansativo retomar a prática religiosa, deslocar-se para ir à igreja. Mas há também aqueles católicos para os quais a missa dominical se resumia a um rito importante, que assegurava uma estabilidade na sua vida. Para muitos, dizer-se católico ainda é uma espécie de hábito ligado a uma moral geral. Segundo eles, isso contribui para dar uma certa solidez à sociedade, para ser “bons cristãos”, mas sem definir verdadeiramente o que isso significa. Mas essa época tem que acabar. Agora, temos que construir uma Igreja sobre a fé. Já sabemos que somos e seremos uma minoria. Não devemos nem nos surpreender nem lamentar. Tenho a doce certeza de que o Senhor está presente na Europa atual.

♦ Não tem dúvidas sobre isso?

Não, nenhuma. Essa não é mais uma questão que me obceca. Quando eu era mais jovem, eu tinha medo de não o encontrar, eu era meio que obcecado por esse temor. Eu tinha que o descobrir ou afundaria. Agora estou muito mais tranquilo.

♦ É a sabedoria da idade?

Não sei se existe uma sabedoria da idade (risos). Eu ficaria feliz se ela existisse! Mas, no fundo, sempre fazemos as mesmas tolices e esbarramos sempre no mesmo muro. Pelo menos, sabemos que o muro está lá e que vai doer. Também já sei que não sou nada mais do que um instrumento do Senhor. Existem muitos outros. Essa consciência me leva a ter sempre um pouco de desconfiança em relação a todos aqueles que dizem ter a receita certa para anunciar Deus.

♦ Não existe uma receita mágica?

Não, há apenas a humildade do Evangelho.

♦ E, quando era mais jovem, o senhor acreditava em receitas mágicas?

Sim, claro, eu acreditava. Mas é um pecado da juventude. Evidencia o entusiasmo dos jovens…

♦ A mensagem do cristianismo continua sendo pertinente hoje?

Sim, porque o ser humano não mudou depois de 2.000 anos. Está sempre em busca da felicidade e não a encontra. Está sempre sedento de infinito e se depara com seus próprios limites. Comete injustiças que têm graves consequências para outras pessoas, o que nós chamamos de pecado. Mas agora vivemos em uma cultura que tende a reprimir o que é humano. Essa cultura do consumismo promete satisfazer os desejos do ser humano, mas não consegue. No entanto, nos momentos de crise, de choque, as pessoas se dão conta de que muitíssimas questões dormem no fundo dos seus corações. A mensagem do Evangelho é de um frescor excepcional para responder a essa busca de sentido e de felicidade. A mensagem é sempre pertinente, mas os mensageiros às vezes aparecem em uma veste de tempos passados, e esse não é o melhor serviço prestado à própria mensagem… Por esse motivo, devemos nos adaptar. Não para mudar a mensagem, evidentemente, mas para que ela possa ser compreendida, mesmo que sejamos nós que a anunciamos. O mundo está sempre em busca, mas não vem mais ao nosso encontro para procurar, e isso dói. Devemos apresentar a mensagem do Evangelho de modo que as pessoas possam se orientar para Cristo.

♦ Precisamente por isso, o Papa Francisco lançou em outubro passado um Sínodo sobre a sinodalidade, do qual o senhor é uma referência geral. O senhor afirmou recentemente que não sabe o que vai escrever no relatório…

Eu devo ser aquele que deve escutar. Se eu fizer muitas propostas, isso desencorajará as pessoas que têm outro ponto de vista. Então, são as pessoas que devem “encher” a minha cabeça e as páginas. O Sínodo é isso. Ele deve ser aberto. Como diz o papa, o “mestre de obras” é o Espírito Santo. Portanto, nós devemos lhe dar espaço. Se esse método é importante é porque hoje não podemos mais nos contentar em dar ordens de cima para baixo. Em todas as sociedades, na política, nas empresas, o que importa agora é fazer rede. Essa mudança na tomada de decisões anda de mãos dadas com uma verdadeira mudança de civilização que devemos enfrentar. E a Igreja, como sempre fez ao longo da história, deve se adaptar a ela. A diferença é que, desta vez, a mudança de civilização tem uma força inédita. Temos uma teologia que ninguém mais compreenderá daqui a 20 ou 30 anos. Essa civilização passará. É por isso que precisamos de uma nova linguagem que deve se fundamentar no Evangelho. E toda a Igreja deve participar no desenvolvimento dessa nova linguagem: esse é o sentido do Sínodo.

♦ Como presidente da Comece [Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia], o senhor participou no início de outubro de uma reunião com os partidos europeus de direita e de centro-direita em Roma. Ao sair, o cardeal Parolin encorajou a não considerar o cristianismo como um supermercado no qual apenas alguns valores podem ser escolhidos. É uma tentação presente nos políticos?

Sim, é claro. A direita toma os símbolos cristãos, mostra terços e crucifixos, mas nem sempre em relação com o mistério de Cristo. Fazem isso em relação à nossa cultura europeia do passado. Querem fazer referência a uma cultura para conservá-la. É um mau uso da religião. Na esquerda, eu também conheço políticos e políticas que se dizem cristãos convictos, que lutam contra as mudanças climáticas, mas votam no Parlamento Europeu para que o aborto seja um direito fundamental e para que a liberdade de consciência dos médicos seja limitada. Isso também é confundir a religião com um supermercado. É possível ser democrata-cristão, socialista, ecologista… e ao mesmo tempo ser cristão. Essa diversidade de formações políticas, além disso, é algo bom para a sociedade. Mas os responsáveis políticos tendem a encerrar as suas preferências religiosas no âmbito privado. Nesse caso, não é mais uma religião, mas uma convicção pessoal. A religião requer um espaço público para se expressar.

♦ Mas assim não é mais difícil para os cristãos se engajarem na política?

Em primeiro lugar, é verdade que há menos cristãos. Além disso, é verdade que eles estão cada vez menos engajados na política. É possível ver isso depois de cada eleição. Além disso, é evidente que a mensagem dos bispos não chega mais à sociedade. Vocês experimentam isso na França há vários anos. Essa experiência é a consequência da nossa minoridade. Para fazermos com que se compreenda aquilo que queremos, devemos iniciar um longo diálogo com aqueles que não são mais cristãos ou que o são apenas marginalmente. Se temos certas posições, não é porque somos conservadores, mas porque pensamos que a vida e a pessoa humana devem estar no centro. Para poder dizer isso, eu acho que devemos estabelecer diálogos e amizades com os tomadores de decisão e os responsáveis políticos que pensam diferente. Mesmo que não sejam cristãos, nós compartilhamos com eles uma preocupação honesta de colaborar para o bem da sociedade. Se não queremos viver em uma sociedade fragmentada, precisamos ser capazes de escutar o pensamento de uns e de outros.

♦ Isso significa que a Igreja deve renunciar a defender as suas ideias?

Não, não se trata disso. É preciso tentar compreender o outro, para estabelecer pontes com a sociedade. Para falar da antropologia cristã, devemos nos basear na experiência humana do nosso interlocutor. Mesmo que a antropologia cristã seja maravilhosa, logo ela não será mais compreendida, se não mudarmos o método. E de que adiantaria tomarmos a palavra se não somos ouvidos? Falamos para nós mesmos, para nos assegurar de que estamos do lado certo? Para tranquilizar os nossos próprios fiéis? Ou falamos para sermos entendidos?

♦ Quais são as condições para sermos ouvidos?

Em primeiro lugar, a humildade. Acho que, mesmo que não seja necessariamente consciente disso, a Igreja passa a imagem de uma instituição que sabe tudo melhor do que os outros. Portanto, ela precisa de uma grande humildade, sem a qual não pode entrar em um diálogo. Isso também significa que precisamos mostrar que queremos aprender com os outros. Um exemplo: sou absolutamente contrário ao aborto. E, como cristão, não posso ter uma posição diferente. Mas também compreendo que há uma preocupação com a dignidade das mulheres, e que o discurso que tínhamos no passado para nos opormos à lei do aborto não é mais audível hoje. Nesse ponto, que outra medida podemos tomar para defender a vida? Quando um discurso não se sustenta mais, não devemos nos obstinar, mas procurar outros caminhos.

♦ Na França, muitos acreditam que a Igreja perdeu uma grande parte da sua credibilidade devido aos crimes sexuais cometidos em seu interior. Como o senhor encara essa crise?

Em primeiro lugar, quero dizer que esses abusos são um escândalo. E, quando vemos os dados do relatório Sauvé, fica claro que não se trata de um erro de alguns. Há uma falha sistêmica em algum lugar, que deve ser detectada. Não devemos ter medo das feridas que isso pode nos infligir, que, aliás, não são absolutamente nada em comparação com as das vítimas. Consequentemente, devemos demonstrar uma enorme honestidade e estar prontos para receber ataques. Algumas semanas atrás, eu estive em Portugal e estava celebrando a missa. Havia ali um menino que estava servindo a missa e me olhava como se eu fosse o bom Deus. Eu percebia que ele via em mim um representante de Deus, o que, aliás, eu era na liturgia.

Abusar de tais crianças é um verdadeiro crime. É uma culpa muito mais grave do que a de um professor ou de um treinador esportivo que comete esses atos. O fato de que isso tenha sido tolerado para proteger a Igreja é muito ruim. Nós fechamos os olhos! É quase irreparável. Agora, eu respondo à sua pergunta. Alguns perderam a confiança. Para reconquistá-la, quando possível, é preciso ter uma grande humildade. Quando se acompanha uma comunidade ou uma pessoa, é preciso ter sempre em mente o princípio do respeito absoluto por quem é acompanhado. Eu não posso dispor de uma pessoa. Parece-me evidente que essas questões estarão na cabeça e no coração de todos durante o processo do Sínodo. Devemos fazer mudanças.

♦ Se há uma culpa sistêmica, na sua opinião, são necessárias mudanças sistêmicas?

Sim. Evidentemente, na minha diocese, como em muitas outras, temos uma “carta” de boa conduta que deve ser assinada por todos, padres e leigos que trabalham para a Igreja. Antes da ordenação, também submetemos os seminaristas a oito sessões psicológicas destinadas a detectar a pedofilia. Fazemos tudo o que podemos, mas não é o suficiente. Precisamos de uma Igreja estruturada de tal maneira que essas coisas não sejam mais possíveis.

♦ Ou seja…

Se déssemos mais voz às mulheres e aos jovens, essas coisas teriam sido descobertas muito antes. É preciso parar de agir como se as mulheres fossem um grupo marginal na Igreja. Elas não estão na periferia da Igreja, estão no centro. E, se não dermos a palavra a quem está no centro da Igreja, teremos um grande problema. Não quero ser mais preciso: essa questão certamente será levantada no Sínodo em diferentes culturas, em diferentes contextos. Mas as mulheres foram ignoradas demais. É preciso ouvi-las, assim como o restante do povo de Deus. Os bispos devem ser como pastores que estão à escuta do seu povo. Isso não significa que eles devam dizer simplesmente: “Sim, eu ouvi, mas isso não me interessa”. Eles devem estar no meio do rebanho.

♦ Que outras mudanças precisam ser feitas?

A formação do clero deve mudar. Ela não deve se centrar unicamente na liturgia, embora eu entenda que os seminaristas lhe atribuem uma grande importância. É preciso que os leigos e as mulheres possam dar a sua opinião na formação dos padres. Formar padres é um dever da Igreja inteira, e, portanto, é preciso que a Igreja inteira acompanhe essa etapa, com homens e mulheres casados e celibatários.

Uma segunda coisa é que devemos mudar o nosso modo de considerar a sexualidade. Até hoje temos uma visão bastante reprimida da sexualidade. Evidentemente, não se trata de dizer às pessoas que elas podem fazer qualquer coisa ou de abolir a moral, mas acho que devemos dizer que a sexualidade é um dom de Deus. Nós sabemos disso, mas o dizemos? Não tenho certeza disso.

Alguns atribuem a multiplicação dos abusos à revolução sexual. Eu penso exatamente o contrário: na minha opinião, os casos mais horríveis ocorreram antes dos anos 1970. Nesse âmbito, é preciso que os padres também possam falar sobre a sua sexualidade e que possam ser ouvidos se tiverem dificuldades em viver o celibato. Eles devem poder falar sobre isso livremente, sem medo de serem repreendidos pelo seu bispo.

Quanto aos padres homossexuais, eles são muitos, e seria bom que pudessem falar disso com o seu bispo, sem que ele os condene.

No que concerne ao celibato, na vida sacerdotal, perguntemo-nos francamente se um padre deve necessariamente ser celibatário. Eu tenho uma opinião muito elevada sobre o celibato, mas ele é indispensável? Na minha diocese, eu tenho diáconos casados que exercem o seu diaconato de forma maravilhosa, que fazem homilias que tocam as pessoas muito mais profundamente do que nós que somos celibatários. Por que não ter também padres casados? E, mesmo que um padre não possa mais viver essa solidão, é preciso compreendê-lo, e não o condenar. Agora eu já estou velho, isso diz menos respeito a mim…

♦ O senhor sentiu essa dificuldade de viver essa solidão?

Sim, certamente. Em certos momentos da minha vida, isso foi muito claro. E também é evidente que todo padre se apaixona de vez em quando. Então, a questão é saber compreender como ele se comporta nesse caso. Acima de tudo, é preciso ter a honestidade de admitir isso a si mesmo e depois agir de tal modo que seja possível viver o próprio sacerdócio.

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Cardeal Jean-Claude Hollerich
Primeiro luxemburguês criado cardeal é o atual presidente da Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia (COMECE).  É membro da Congregação para a Educação Católica e do Pontifício Conselho para Cultura. É jesuíta, tendo vivido muitos anos no Japão onde fez, inclusive, seus votos solenes na Companhia de Jesus. 
 

Loup Besmond de Senneville
É jornalista do La Croix desde 2011 e correspondente permanente no Vaticano desde 2020. Anteriormente chefiou a seção de bioética sediada em Paris e escreveu diversos livros. Graduou-se pela Escola de Jornalismo da Universidade de Estrasburgo onde leciona desde 2015  

Moisés Sbardelotto
É jornalista, graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com estágio doutoral (bolsa PDSE/Capes) na Università di Roma “La Sapienza”, na Itália. É palestrante, tradutor, escritor e consultor em Comunicação para diversos órgãos e instituições civis e religiosas.

Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/616073-para-ser-ouvida-a-igreja-precisa-mudar-de-metodo-entrevista-com-jean-claude-hollerich-relator-do-proximo-sinodo

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Em tempos de pandemia, o desafio da vivência da fé como fonte de lucidez, coragem e criatividade https://observatoriodaevangelizacao.com/em-tempos-de-pandemia-o-desafio-da-vivencia-da-fe-como-fonte-de-lucidez-coragem-e-criatividade/ Sat, 28 Mar 2020 03:05:54 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34460 [Leia mais...]]]> Entre os frutos ou desdobramentos que a experiência de fé provoca na vida de uma pessoa, observa-se com destaque que ela geralmente suscita posturas de crescente confiança interior. Esta confiança se torna fonte de lucidez, coragem e criatividade para que a pessoa, nos altos e baixos da vida, enfrente as travessias impostas nos grandes desafios e urgências do viver… A pessoa transformada pela experiência da fé passa a viver consciente da proximidade amorosa do Deus estradeiro conosco, a buscar a direção a seguir pelo discernimento interior, pessoal e coletivo, a partir da centralidade do amar e servir e, pelo dom da coragem dos profetas, a enfrentar, com responsabilidade e determinação, os desafios e urgências do caminho… Acontece que a história da humanidade nos mostra que a experiência da fé pode assumir formas deturpadas, desequilibradas e até mesmo doentias no viver concreto das pessoas.”

Confira a reflexão do teólogo Edward Guimarães:

Em tempos de pandemia, o desafio da vivência da fé como fonte de lucidez, coragem e criatividade para a arte do cuidado e da busca do bem viver

O bem viver pode ser definido com uma sabedoria prática, a de viver com equilíbrio e moderação, prudência e justiça, no cultivo diário da sensibilidade e do cuidado amoroso nas relações que a pessoa estabelece consigo mesmo, com os outros, com a Casa comum e com Deus. O fato da vida ser frágil traz, por um lado, a urgente exigência de aprender a dela cuidar e a protegê-la, mas, por outro, oferece o acesso às suas fontes de delicadeza e beleza. Reconhecer a fragilidade e os limites que a vida nos impõe é caminho fecundo de humanização.

A experiência de fé é uma vivência espiritual que toca o mais profundo de nosso ser e por isso traz consequências importantes para a totalidade da vida de uma pessoa. Por isso, a vivência da fé não deve ser acolhida de qualquer jeito ou compreendida de modo superficial.

O objetivo maior deste texto teológico-pastoral é refletir criticamente sobre a experiência da fé e aprofundar sobre o seu verdadeiro sentido e, igualmente, sobre seus riscos para o nosso viver e conviver. 

Entre os frutos ou desdobramentos que a experiência de fé provoca na vida de uma pessoa, observa-se com destaque que ela geralmente suscita posturas de crescente confiança interior. Esta confiança se torna fonte de lucidez, coragem e criatividade para que a pessoa, nos altos e baixos da vida, enfrente as travessias impostas nos grandes desafios e urgências do viver. 

I – A singularidade da experiência da fé cristã

No caso da fé cristã, essa experiência espiritual provoca uma entrega confiante da própria vida nas mãos de Deus. Ela fundamenta-se na experiência trinitária da proximidade amorosa de Deus Pai Criador, que se revela, pela chama transformadora do Espírito Santo presente no interior de cada um, na vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que veio e se abaixou até pertinho nós, tornando-se em tudo igual a nós, menos no pecado.

Desse modo, em nome do Pai e pela força Espírito Santo, Jesus torna-se caminho humano de salvação oferecido a todos: um caminho trilhado pelo cultivo da centralidade do amar, servir, proteger e cuidar da vida na busca do conviver pautado pelo afeto fraternal-sororal, pela justiça, pela partilha solidária com os pobres e marginalizados, pela misericórdia com os caídos pelo caminho e pelo cuidado com a Casa comum.

O Pai e o Filho enviam o Espírito Santo aos nossos corações para que a vivência da fé em Deus provoque a liberdade humana para que esta acolha o projeto de Deus. Projeto que se concretiza pela busca do bem viver: viver confiante, livremente comprometido com o amar, o servir, o proteger e o cuidar da vida e do conviver afetuoso, justo e solidário. Desse modo, a pessoa transformada pela experiência da fé, alimentada pela Palavra de Deus e pelo testemunho coerente dos irmãos e irmãs da comunidade de fé, passa a viver consciente da proximidade amorosa do Deus estradeiro conosco, a buscar a direção a seguir pelo discernimento interior, pessoal e coletivo, a partir da centralidade do amar e servir e, pelo dom da coragem dos profetas, a enfrentar com responsabilidade e determinação os desafios e urgências do caminho.

Em outras tradições religiosas, a experiência da fé provoca e promove algo muito semelhante no sentido de iluminar o caminho a seguir, suscitar serenidade, discernimento e sabedoria para a busca diária do bem viver pautado pelo amar, servir, proteger e cuidar da vida e das relações constitutivas da vida humana.

II – Sobre a experiência ingênua e deturpada da fé

Acontece que a história da humanidade nos mostra que a experiência da fé pode assumir formas deturpadas, desequilibradas e até mesmo doentias no viver concreto das pessoas. Por isso a vivência da fé exige estudo, aprofundamento, contínua reflexão crítica-autocrítica, discernimento, avaliação do caminho percorrido, troca de ideias em boas rodas de conversa e orientação. Afinal, em nome de sua religião ou de uma divindade, um fiel pode fazer coisas abomináveis, tais como dominar, explorar, violentar, discriminar e matar seus irmãos e irmãs mesmo que estes sejam, como ele, filhos e filhas de Deus, membros da mesma humanidade e companheiros de partilha da mesma Terra, nossa Casa comum. 

A grande maioria dos brasileiros e brasileiras se reconhece cristã, membro de uma entre as diversas denominações cristãs (igrejas) ou mesmo sem vínculos institucionais (os cristãos desigrejados, conforme denominou o teólogo Leonildo Silveira Campos). Debruçando sobre a experiência cristã, percebe-se claramente que determinadas leituras de trechos específicos dos textos sagrados, de narrativas dos testemunhos de fé e de passagens da vida dos santos e santas, geralmente feitas de forma literalista ou fundamentalista, mesmo quando movidas por boa vontade e sinceridade da parte dos fieis, geram compreensão deturpada do sentido da fé e de seu dinamismo histórico. Consequentemente, a experiência da fé passa a ser vista como uma espécie de acesso a um poder mágico, absoluto e manipulável por meio de certos objetos, ritos e gestos. Isso traz graves consequências para a vida concreta das pessoas e para seus grupos de convivência, pois, ela determina, de certa forma, a maneira como elas passam a encarar suas relações religiosas, familiares, sociais, políticas, econômicas, ecológicas. 

Com tal compreensão deturpada, ou simplesmente ingênua, homens e mulheres de fé acabam assumindo posturas muito imprudentes e até mesmo insanas, como as que estamos observando nesses tempos difíceis de pandemia de novo coronavírus.

Aqui importa, com urgência, dizer de modo claro e contundente, com as palavras proféticas da teóloga Romi Bencke: a fé não imuniza as pessoas! E, consequentemente, o que faz com que muitas peguem o Coronavírus (Covid-19) não é a falta de fé ou confiança em Deus, mas a ignorância dos modos de transmissão ou, mesmo quando imbuídos de religiosidade e sincera piedade, por um comportamento ingênuo e simultaneamente imprudente e insano!

III – Em busca das origens da compreensão ingênua ou deturpada da experiência da fé

Quem está mais familiarizado com a tradição judaico-cristã, por exemplo, ao ler literalmente e sem as devidas considerações necessárias à interpretação de um texto sagrado, passagens como as dez pragas do Egito (Cf. Ex 7-12), a epopeia da travessia pelo mar Vermelho com a libertação dos escravos hebreus no Egito (Cf. Ex 14) e, sobretudo, os milagres de Jesus narrados nos evangelhos (Cf. Mt 8, 1-34; 9, 1-8.18-34; 12, 9-14.22-32; 14, 13-36; 15, 21-39; 17, 14-21; 20, 29-34; Mc 1, 21-45; 2, 1-12; 3, 1-12; 4, 35-41; 5, 1-43; 6, 30-56; 7, 24-37; 8, 1-9.22-26; 9, 14-29; 10, 46-52;  Lc 4, 31-41; 5, 1-26; 6, 6-11; 7, 1-17; 8, 22-56; 9, 10-17.37-43; 11, 14-26; 14, 1-6; 17, 11-19;  18, 35-43; Jo 2, 1-12; 4, 43-54; 5, 1-18; 6, 1-21; 9, 1-41; 11, 38-44), dentre muitos outros trechos, pode conceber o agir de Deus na história como uma espécie de força invisível onipotente que a tudo submete à vontade divina. Algumas passagens bíblicas dos evangelhos são decisivas para que se acolha a força da oração de uma forma ilimitada, tais como: “Pedi e vos será dado! Procurai e encontrareis! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate, a porta será aberta…” (Cf. Mt 6, 7-8).

O problema é que, sem critérios de interpretação, sem educação da fé, o agir divino passa a ser acolhido, geralmente com a anuência de pregações de líderes religiosos despreparados ou mal-intencionados, como um poder onipotente que está disponível e que pode ser manipulado por um fiel em oração, desde que este tenha fé incondicional em Deus.

Além disso, ao ler na Bíblia, por exemplo, que, após a morte-ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito Santo, seus discípulos deram continuidade ao agir taumaturgo do Mestre (Cf. At 3, 1-10; 5, 12-33; 9, 32-43), diante de tantos relatos de milagres de Deus operados pelas mãos de Maria, a mãe de Jesus, e dos santos e santas de Deus, sem mais, muitos cristãos, com toda sinceridade piedosa, são induzidos a pensar que a força da fé pode ser manipulada através de um objeto, rito ou gesto sagrado de devoção.

Por isso vemos, por exemplo, pessoas de boa fé, às vezes estimuladas por certas pregações, conceberem que – se fizerem o sinal da cruz com devoção e fé, se andarem com o crucifixo ou algum outro amuleto sagrado no pescoço, se receberem a aspersão de água benta, se comungarem a Hóstia sagrada, se rezarem o rosário com devoção, se estiverem de joelhos, se fizerem uma novena ou uma peregrinação a um santuário ou a Terra Santa, dentre muitos outros gestos e ritos –, tudo o que pedirem a Deus com fé elas alcançarão, ainda que o que peçam signifique violar as leis da natureza (causa e efeito, gravidade, temporalidade…), os limites da frágil condição humana ou a seriedade do complexo dinamismo sociopolítico e econômico da história. Alimenta-se tais desejos com o recorrente postulado acolhido geralmente de forma tácita e irrefletida: “para Deus nada é impossível”. 

Acontece que tal compreensão do agir divino não se funda na revelação presente na tradição judaico-cristã, mas em determinada interpretação geralmente a-histórica, literalista e fundamentalista. Isso porque não foi por falta de fé que o povo de Israel foi escravizado no Egito e perseguido ao longo de sua história. Não foi igualmente por falta de fé de Jesus e de seus discípulos e discípulas, que o Profeta da Galileia foi traído por Judas, foi preso, julgado na calada da noite e condenado por Anás, Caifás e Pilatos à pena de morte na cruz. Não foi também por falta de fé que muitos homens e mulheres foram contaminados ao dedicar-se integralmente aos cuidados de doentes portadores de moléstias contagiosas. A fé não deve ser concebida como uma redoma ou um escudo capaz de anular a nossa vulnerabilidade ou fragilidade diante do perigo.

Importa perceber que o dinamismo da natureza, a realidade da vida, a própria condição humana e a seriedade dos acontecimentos da história devem ser compreendidos com sabedoria, de modo que estejam a serviço do aprendizado central de nossa vida: aprender a arte de amar, de colocar-se a serviço, de proteger e de cuidar uns dos outros, da vida e de nossa Casa comum. Não é isso que está sendo chamado de ecologia integral?

IV – O desafio de cuidar da mentalidade religiosa

Não é fácil conhecer o processo histórico de formação da mentalidade religiosa de uma pessoa e avaliar os fatores ou acontecimentos que foram cruciais para sedimentar determinada concepção de fé crítica, ingênua ou deturpada. Apesar disso, o caminho que se apresenta favorável para se trilhar é o da vigilância, do estudo, da reflexão crítica-autocrítica, do aprofundamento, do discernimento, da avaliação, da busca de lucidez e da verdade do sentido da fé e do bem viver.

Quando se toma consciência das possibilidades e limites de determinada mentalidade religiosa, a pessoa é chamada a procurar discernir, aprofundar, purificar ou mesmo superar determinadas compreensões que vão se revelando inconsistentes, ingênuas ou deturpadas. No entanto, importa reconhecer que é com a mentalidade religiosa que a pessoa se relaciona com Deus, que concebe as formas do agir divino no mundo, na história e nos acontecimentos da vida concreta de cada um. Do mesmo modo, é a mentalidade religiosa que interfere na maneira de agir e no nível de qualidade das diversas relações que cada pessoa de fé estabelece.

Há muitas mentalidades religiosas distintas: algumas atribuem toda causalidade, consequência e responsabilidade diante dos acontecimentos diretamente a Deus. Outras atribuem toda causalidade, consequência e responsabilidade aos seres humanos enquanto sujeitos históricos. Entre as duas primeiras, há mentalidades religiosas que procuram unir os dois polos com equilíbrio e discernimento, embora procurando distinguir o nível da ação divina, sempre transcendente, e o da ação humana, histórica e imanente. Estas procuram discernir a (inter)relação entre as duas, a ação divina e humana. Quanto maior o peso atribuído à ação divina, menor a responsabilidade humana e vice-versa.

A revelação judaico-cristã funda-se na experiência de uma aliança histórica entre duas liberdades: de um lado, a livre iniciativa de Deus em nos criar livres e responsáveis e aproximar-se amorosamente da pessoa humana (proposta ou projeto de Deus) e, de outro, a livre resposta humana a Deus em acolher o dom da liberdade e assumir a responsabilidade no amar-servir e no cuidar da vida, da convivência fraterna-sororal e da Casa comum.

V – A urgência de outra compreensão da fé

É muito importante sublinhar que, de modo algum, a fé deve ser compreendida, como uma espécie de superpoder que torna a pessoa humana protegida, agraciada e invulnerável diante das fragilidades e de qualquer tipo de ameaça à vida: endividamentos, violências, doenças, acidentes, tragédias…

Ao contrário, a fé adulta é acolhida como fonte de confiança no Amor de Deus por nós – trata-se de um Deus que se revela Emanuel, sempre estradeiro conosco – e de responsabilidade humana para o amar, o servir e o cuidar da vida, da convivência e da Casa comum.

A fé, em última instância, é fonte de lucidez, coragem e criatividade para o discernir e para a busca do bem viver: para a prática do amar que se coloca a serviço a vida, do amar que se faz solidário para com o próximo, do amar que se faz misericórdia e opção pelos pobres e vulneráveis, do amar que se faz partilha inclusiva e práxis de justiça social, do amar que se faz cuidado com a nossa Casa comum.

Prof. Edward Guimarães é doutorando em ciências da religião pela PUC Minas, mestre e graduado em teologia pela FAJE e licenciado em filosofia pela UFMG. É professor do Departamento de ciência da religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. É membro do Conselho arquidiocesano de pastoral e assessor do Vicariato episcopal para ação pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte. 

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