Concílio Vaticano II – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Thu, 22 Jul 2021 21:40:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Concílio Vaticano II – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Documento de Aparecida: o texto original, o texto oficial e o papa Francisco – Quarta e última parte, com a palavra o teólogo Pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-quarta-e-ultima-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Thu, 22 Jul 2021 21:40:00 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=40010 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a QUARTA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

7. A família

A família, tal como os censores do Documento de Aparecida confirmam, é um dos temas controversos e sensíveis na Igreja, sobretudo, em relação aos “casais em segunda união” e às uniões homo-afetivas, sem falar nos contraceptivos e no aborto.


Aparecida: acolher os casais em segunda-união

Independente de entrar em juízo de valor e na defesa dos princípios cristãos, o Documento de Aparecida recomenda, antes de tudo, uma atitude de acolhida e um acompanhamento com cuidado, prudência e amor compreensivo. O “texto original” falava em “matrimônios que vivem em situação irregular”; os censores substituíram “matrimônio” por “casais” (DAp 437) e acrescentaram: “tendo presente que os divorciados que tornaram a se casar não lhes é permitido comungar” (DAp 248).

No início do Documento, ao introduzir o capítulo dedicado a abordar “o olhar dos discípulos missionários sobre a realidade”, enumera-se entre os pressupostos que enfraquecem a vida familiar, a “ideologia de gênero”, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em conta as diferenças dadas pela natureza humana. Frisa-se que isso fere a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família (DAp 40).


Papa Francisco: quem sou eu para julgar

Questões como o acesso dos casais em segunda-união à Eucaristia ou a acolhida dos homossexuais, que são tabus para os censores, para o papa Francisco, como atesta seu empenho na preparação e realização do Sínodo sobre a família, precisam ser estudadas e debatidas na Igreja. Diante da crise da família, setores mais conservadores da Igreja, em lugar em desenvolver uma maior capacidade de acolhida àqueles que não conseguem viver conforme os ideais da fé cristã, tem se destacado em frisar o imperativo do cumprimento dos princípios. Os censores do Documento de Aparecida tiveram a preocupação de deixar isso registrado no “texto oficial”. É uma atitude na contramão de uma “Igreja samaritana”, expressão de Paulo VI para caracterizar a nova eclesiologia do Vaticano II, categoria muito presente em Aparecida, à qual o papa Francisco contrapõe uma “Igreja alfândega” (EG 47).

A postura do novo Papa começa pelo nome, emprestado de Francisco de Assis. Na realidade, Francisco é mais do que um nome. É um programa de vida, referência evangélica para todo o Povo de Deus. Entre outros, de Francisco de Assis, Francisco de Roma assume explicitamente, já demonstrado com gestos emocionantes, a “revolução da ternura”. Frisa ele: “precisamos todos aprender a abraçar, como fez São Francisco”. Em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, advoga por uma “Igreja samaritana”: “vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 105)1. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o nível de açúcar altos. Primeiro, deve-se curar as suas feridas. Depois podemos nos ocupar do restante. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo” (cf. EG 67).

No pronunciamento aos Bispos do CELAM, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude no Brasil, na perspectiva de João XXIII, o papa Francisco fala da necessidade de uma Igreja-mãe, condição para uma Igreja-mestra, que só se legitima quando respaldada pelo testemunho. A vocação e missão da Igreja começam, segundo o Papa, “pelo exercício da maternidade”, “que se dá pelo exercício da misericórdia”. Só a misericórdia

gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir em um mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)2.

Papa Francisco, no pronunciamento aos Bispos do CELAM, em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude.

Isso implica a Igreja descentrar-se de si mesma, o que não significa, simplesmente, sair para fora. Em Evangelii gaudium, o papa Francisco afirma que sair de si mesma, antes de tudo, significa

uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção dos outros para chegar às periferias humanas não significa correr para o mundo, sem rumo e sem sentido. Muitas vezes, implica antes deter os passos, deixar de lado a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar as urgências para acompanhar quem ficou à beira da estrada. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que fica com as portas abertas para que, quando regresse, possa entrar sem dificuldade.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 46


8. A mulher na Igreja

Uma oitava questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à mulher na Igreja. A mulher na sociedade, sua dignidade e seus direitos, é uma questão pacífica. Entretanto, seu papel na Igreja, é uma questão controversa, especialmente para os setores mais conservadores da Igreja.


Aparecida: a mulher é discriminada na Igreja

No seio da sociedade, a Igreja advoga pela igual dignidade da mulher em relação ao homem. O próprio papa Bento XV reafirmou isso no Discurso Inaugural de Aparecida: “em algumas famílias da América Latina, persiste ainda, infelizmente, uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher com relação ao homem” (DAp DI). Entretanto, não é o mesmo o discurso quando se trata da mulher no seio da Igreja, tanto que há uma séria defasagem entre a participação da mulher na sociedade em relação à Igreja.

O “texto original” do Documento de Aparecida, de maneira corajosa, reconhecia esta defasagem, mas foi suprimida pelos censores: a mulher, frisava o texto, é “descriminada na Igreja e com frequência ausente nos organismos pastorais” (DAp 99b). E acrescentaram que as mulheres, na Igreja, terão acesso aos ministérios, mas só “àqueles que a Igreja confia aos leigos”.


O Papa Francisco e as mulheres

Ao contrário dos censores do Documento de Aparecida, para o papa Francisco, a mulher é discriminada na Igreja e precisa ter acesso aos ministérios. Falando aos Bispos do CELAM no Rio de Janeiro, adverte: “não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)3. Na Evangelii gaudium, quando o papa Francisco fala da dignidade e dos ministérios não-ordenados, fala sem constrangimento de “homens e mulheres” (EG 52, 86, 104, 171, 252, 271, 283): “Vejo, com muito prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os presbíteros, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica” (EG 103).

Um dos fortes argumentos dos setores mais conservadores para cercear a participação da mulher nos ministérios é a tradição, a ausência de ministérios para elas no itinerário da Igreja. Em contrapartida, o Papa fala que o papel herdado pela tradição pode ser aprofundado e deve ser ampliado, “para uma presença feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103). O Vaticano II lembrou que a tradição é viva, progride, está aberta, porquanto “é a história do Espírito Santo, na história do Povo de Deus” (Bruno Forte). Para a Evangelii gaudium, trata-se de uma questão séria, que não se pode dar por resolvida sem um tratamento sério e profundo: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que os homens e mulheres tem a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente” (EG 104). É uma tarefa que envolve a todos, especialmente, o magistério e os teólogos: “Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104).

Tema ainda mais espinhoso é o da ordenação de mulheres. Já, desde sua primeira viagem ao exterior, precisamente ao Rio de Janeiro por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em 2013, o papa Francisco se mostrou partidário de que as mulheres tenham um papel de maior relevância na Igreja católica —“não nos podemos limitar às mulheres coroinhas, à presidenta da Caritas, à catequizadora; é preciso fazer uma profunda teologia da mulher. Quanto à ordenação das mulheres, a Igreja falou e disse não. Assim disse João Paulo II, mas com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Mas, sobre isso, quero dizer-lhes algo: a Virgem Maria era mais importante que os apóstolos, do que os bispos, do que os diáconos e os sacerdotes. A mulher na Igreja é mais importante que os bispos e os padres. Como? Isto é o que devemos tratar de explicar melhor. Creio que falta uma explicação teológica sobre isto”. Mas, foi recentemente, no dia 12 de maio, durante o encontro com União Internacional de Superioras Gerais (UISG) de institutos religiosos na Sala Paulo VI, que o papa Francisco, interpelado sobre a possibilidade do acesso das mulheres ao Diaconato, decidiu constituir uma comissão de estudo a respeito. Algo totalmente impensável nos últimos pontificados.


9. Ministério ordenado e clericalismo

É com relação ao exercício do ministério ordenado que os censores também deixaram registrada sua dificuldade em assumir a renovação do Concílio Vaticano II. O “texto original” do Documento de Aparecida dizia: “Lamentamos certo clericalismo, algumas tentativas de voltar a uma eclesiologia e espiritualidade anteriores ao Concílio Vaticano II”. No “texto oficial”, suprimiu-se o clericalismo e, em lugar de uma eclesiologia e espiritualidade “anteriores” ao Vaticano II, aparece “contrárias” (DAp 100b). Também foi supresso, neste número, “lamentamos a ausência de senso de autocrítica” e “moralismo que debilitam a centralidade de Jesus Cristo”.


Aparecida: lamentamos a volta do clericalismo

Uma das profundas mudanças do Vaticano II foi a superação do binômio clero-leigos pelo binômio comunidade-ministérios: não existe, segundo a Lumen gentium, duas categorias de cristãos, mas um único gênero — os batizados — no seio de uma Igreja toda ela ministerial. E há uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios. O “texto original” do Documento de Aparecida procurava ressaltar esta passagem, mas os censores matizaram a mudança. Por exemplo, os presbíteros, no Documento original, eram designados, mais “irmãos” do que “padres, pai”, pois estão ao serviço do sacerdócio comum dos fiéis”. Os censores suprimiram isso e acrescentaram que os “presbíteros são qualitativamente diferentes” dos leigos. Deste número, suprimiu-se: “[…] Esta dimensão fraterna deve transparecer no exercício pastoral e superar a tentação do autoritarismo que o isola da comunidade e da colaboração com os demais membros da Igreja”. E acrescentou-se: “Todo Sumo Sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1). Finalmente, substituiu-se: […] o presbítero “não pode cair na tentação de considerar-se um delegado ou representante da comunidade”, por “não pode cair na tentação de considerar-se um ‘mero’ delegado ou ‘só um’ representante da comunidade” (DAp 193).

Ainda com relação ao ministério ordenado, mais especificamente relativo ao diaconato permanente, suprimiu-se, do “texto original”: “A presença numérica dos diáconos permanentes cresceu significativamente em nossas Igrejas, ainda que com desigual desenvolvimento e valoração. A V Conferência anima os Bispos da América Latina e o Caribe impulsar o diaconato permanente nas distintas dioceses e para grupos humanos específicos e pastorais ambientais”. Acrescentou-se: “Não se pode criar nos candidatos ao diaconato expectativas permanentes que superem a natureza própria que corresponde ao grau do diaconato” (DAp 208).

Como se pode constatar, o “texto original” do Documento de Aparecida, coerente com a renovação do Vaticano II, tratava de situar os ministros ordenados dentro do Povo de Deus e de colocá-lo ao serviço dos leigos. Já os censores, ao contrário, mostram-se preocupados em salvaguardar a distância e as categorias das ordens clericais superiores sobre as ordens inferiores, sobretudo, do clero sobre os fiéis leigos.


Papa Francisco: clericalismo não tem nada a ver com cristianismo

Se para os censores do Documento de Aparecida deve-se zelar pela diferença entre clérigos e leigos, para o papa Francisco, em sintonia com o Vaticano II, existe uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios da Igreja. Por isso, nem clericalismo e nem leigo clericalizado. O clericalismo na Igreja é um dos temas recorrentes nos pronunciamentos do Papa Francisco, desde a primeira hora, em coerência com sua posição ainda como bispo em Buenos Aires. Em entrevista a um jornalista italiano, afirma que “o clericalismo não tem nada a ver com cristianismo. Quando tenho na minha frente um clericalista, instintivamente me transformo num anticlerical”. Adverte que “na maioria dos casos, o clericalismo é uma tentação muito atual; trata-se de uma cumplicidade viciosa: o padre clericaliza o leigo e, o leigo, lhe pede o favor de o clericalizar, porque, no fundo, lhe é mais cômodo”. Para o Papa, “o fenômeno se explica, em grande parte, pela falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do laicato” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 141-142)4. Para o Papa, “a proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha da superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical” (ibid. p. 142).

Em sua visita ao Brasil, falando aos Bispos do CELAM, o papa Francisco pergunta:

nós, Pastores, Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis leigos e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e pela sua missão no mundo?”.

Papa Francisco, em 2013, no Encontro com os Bispos do CELAM

Como real espaço do exercício da corresponsabilidade de todos os batizados na Igreja, o Papa recorda aos Bispos a importância dos conselhos: “os Conselhos Paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 136)5.

Relacionado ao clericalismo está o estilo de exercício do ministério episcopal na Igreja, em sua grande maioria na Igreja hoje, distante do estilo de episcopado do “pacto das catacumbas”, selado por um grupo de Bispos no encerramento do Concílio Vaticano II. O clericalismo dos presbíteros parece agravado no modelo de bispo que predominou nas últimas décadas, seja no distanciamento do povo por um estilo de vida sem despojamento, seja de autoritarismo em relação ao seu presbitério. Ao ordenar novos Bispos em Roma, o papa Francisco lhes faz três recomendações. Primeiro,

que sejam pastores com cheiro de ovelhas, presentes no meio de sua gente como Jesus, o Bom Pastor. A presença de vocês não é secundária, é indispensável. As próprias pessoas pedem isso, desejam ver o seu bispo caminhar com elas, para estarem próximas dele. Não se fechem! Vão para o meio de seus fiéis, inclusive nas periferias de suas dioceses e em todas as ‘periferias existenciais’ onde há sofrimento, solidão, degradação humana. Presença pastoral significa caminhar com o povo de Deus: na frente, assinalando o caminho; no meio, para fortalecer a unidade; atrás, para que ninguém se desgarre, mas, sobretudo, para acompanhar o olfato que o povo de Deus possui para encontrar novos caminhos (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Segundo,

os Bispos devem ser pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão, pacientes e misericordiosos, capazes de escutar, compreender, ajudar e orientar. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham psicologia de príncipe (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Terceiro,

o Bispo precisa ficar com o rebanho. Refiro-me à estabilidade, que tem dois aspectos específicos: “permanecer” na Diocese, e permanecer “nesta” Diocese, sem buscar transferências ou promoções. Os Bispos precisam ser homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja, sem viver na expectativa de outra, melhor ou mais rica. Tenham o cuidado de não cair no espírito do carreirismo, que é um câncer na Igreja. Como pastores, não é possível realmente conhecer o próprio rebanho, caminhar na frente, no meio e atrás dele, cuidá-lo com o ensinamento, a administração dos sacramentos e o testemunho de vida, caso não permaneçamos na Diocese. Permaneçam junto ao rebanho; evitai o escândalo de ser bispo de aeroporto (BRIGHENTI, 2014, p. 25).

Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma

Finalmente, em contraposição aos censores do Documento de Aparecida, o papa Francisco resgata uma recomendação na formação dos futuros presbíteros. Falando da necessidade de “um projeto formativo do Seminário que ofereça aos seminaristas um verdadeiro processo integral: humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo Bom Pastor, o “texto original” propunha o que os censores suprimiram: “Para isso, seria uma ajuda que os seminaristas se agrupassem em pequenas comunidades de oração e de vida, mas sempre mantendo a unidade formativa do Seminário e seu projeto” (DAp 319). Curiosamente, o papa Francisco, falando aos Superiores Gerais de Institutos Religiosos afirma: “se o seminário for muito grande, precisa-se separá-lo em comunidades menores com formadores que estejam capacitados a acompanhar, verdadeiramente, aqueles de sua responsabilidade. O diálogo deve ser sério, sem medo, sincero. É importante lembrar que a linguagem dos jovens em formação, hoje, é diferente daquela do passado: estamos vivendo uma mudança epocal. A formação é uma obra de arte, não uma ação policialesca. Devemos formar o coração dos jovens. Do contrário, formaremos pequenos monstros. E então estes pequenos monstros formarão o Povo de Deus. Isso me dá arrepios”.


10. A vida consagrada

Uma décima questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à vida consagrada na Igreja e na sociedade. Na América Latina, um dos atores mais ativos e propositivos na recepção da renovação do Vaticano II, sem dúvida, foi a vida consagrada, com belas iniciativas de inserção no meio dos pobres.


O profetismo da vida religiosa inserida

A concepção conciliar da vida consagrada como sequela Christi levou amplos segmentos dos religiosos e religiosas a se inserirem no meio dos pobres, em perspectiva libertadora. Grande parte da produção da teologia da libertação foi gestada por religiosos, vivendo em estreita ligação com lugares sociais de exclusão. Evidente que também foram estes segmentos que sofreram os maiores embates com os setores mais conservadores da Igreja, reticentes à renovação do Vaticano II. É neste contexto que se deu, no final da década de 1980 a intervenção na CLAR pela Congregação dos Religiosos e a proibição de iniciativas da vida consagrada como o Projeto “Palavra Vida”. Em muitos pronunciamentos de setores antagônicos à perspectiva libertadora, a vida consagrada era taxada de “magistério paralelo”, exigindo “comunhão” dos religiosos com seus pastores e exercício de sua missão, “sob” as orientações do bispo local.

Esta postura desqualificadora da vida religiosa inserida nos meios populares, os censores também deixaram registada no “texto oficial” do Documento de Aparecida. O “texto original” dizia que os religiosos realizem sua missão, “[…] em mútua relação com os pastores”. Os censores substituíram “mútua relação” por “autêntica comunhão” e acrescentaram: “sob sua orientação” (DAp 223). Mostram também seu distanciamento com o testemunho das comunidades religiosas inseridas no meio dos pobres, acrescentando que, nesta inserção, “comunidades inteiras se secularizaram”.


O papa Francisco: respondam ao clamor dos pobres

Se para os censores, os institutos de vida consagrada precisam estar submissos aos bispos e distantes do mundo secular, para o papa Francisco, eles precisam estar inseridos entre os mais pobres e serem reconhecidos pelos bispos em sua autonomia. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas: para a proclamação do ano da Vida Consagrada (publicada em 2014), o papa Francisco reafirma o que foi supresso do “texto original” do Documento de Aparecida, relativo à vida consagrada inserida nos meios dos pobres e a relação com os Bispos. Com relação ao lugar da vida consagrada, o Papa reafirma o que lhe é recorrente em seus pronunciamentos: “Espero ainda de vós o mesmo que peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias existenciais”. E continua:

A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens, mas, com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino… Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4

A insistência do papa Francisco sobre a presença dos religiosos nas periferias, também aparece de forma incisiva em sua fala no encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013. O diálogo do Papa foi reproduzido por Antonio Spadaro e publicado pela revista La Civiltà Cattolica, na edição de janeiro de 2014: “Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças na história ocorreram quando a realidade não era vista a partir do centro, mas sim da periferia. Trata-se de uma questão hermenêutica: entende-se a realidade apenas se ela for olhada da periferia, e não quando nosso ponto de vista está equidistante de tudo. Para verdadeiramente entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas”. Para o Papa, é preciso conhecer a realidade via experiência:

Frequentemente faço referência a uma carta do Padre Pedro Arrupe, que foi o Superior Geral da Companhia de Jesus. Trata-se de uma carta enviada aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS). Nela o Padre Arrupe falava da pobreza e dizia que algumas horas semanais de contato com os pobres são necessárias. E isto é muito importante para mim: é necessário conhecer a realidade via experiência, passar certo tempo caminhando pela periferia buscando se familiarizar com ela e com as experiências de vida das pessoas.

Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos

Trata-se de diretrizes para a vida consagrada, que exigem mudanças na ação e nas estruturas. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, aqui já mencionada: para a proclamação do ano da Vida Consagrada, afirma:

De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências atuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades .

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4

E conclui:

A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas, neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres .

Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 5

A respeito da relação dos religiosos com a Igreja Local, particularmente os Bispos, o papa Francisco marca também um distanciamento da prática vigente, inclusive dos critérios das diretrizes que foram promulgadas, em 1978, pela Congregação para os Religiosos e pela Congregação para os Bispos, com o documento intitulado Mutuae relationes, que o Papa pede à mesma Congregação para revê-los. No mesmo encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013, afirma: “aquele documento foi útil naquele período, mas agora está desatualizado. Os carismas dos vários institutos precisam ser respeitados e fomentados porque são necessários nas dioceses. Conheço por experiência os problemas que podem haver entre um bispo e as comunidades religiosas”. E continuou:

O fato é que conheço os problemas, mas também sei que os bispos nem sempre estão por dentro dos carismas e das obras dos religiosos. Nós, bispos, precisamos entender que as pessoas consagradas não são funcionárias, e sim presentes que enriquecem as dioceses. O envolvimento das comunidades religiosas nas dioceses é importante. O diálogo entre o bispo e os religiosos tem que ser resgatado, de modo que, devido à falta de entendimento de seus carismas, os bispos não vejam os religiosos simplesmente como instrumentos úteis.

Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos


Considerações finais

As dez questões selecionadas para ilustrar o posicionamento de determinados segmentos da Igreja em relação ao papa Francisco, concretamente, a intervenção dos censores do “texto original” do Documento de Aparecida, mostram a grata surpresa do resgate pelo magistério pontifício do profetismo da Igreja na América Latina. O que era periférico e aparentemente heterodoxo, repentinamente se faz centro e torna-se provocação para a Igreja inteira. Os “ventos do Sul” que sopravam há cinco décadas e sempre foram recebidos com suspeição, agora, sopram no coração da Igreja como um todo, graças ao “papa que vem do fim do mundo”, porta-voz das jovens Igrejas do Sul, particularmente da América Latina.

As razões mais profundas do cerceamento das proposições da Igreja na América Latina radicam na dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, da qual a Igreja em nosso Continente fez uma recepção criativa em torno da Conferência de Medellín. De fato, em grande medida, as dez questões abordadas, entre as 40 maiores sinalizadas pelos censores do Documento de Aparecida, se constituem em tarefas pendentes no processo de implementação das reformas do Concílio, estancadas ou até mesmo desqualificadas nas últimas décadas, com a volta de uma Igreja alinhada ao perfil da neo-Cristandade. Tudo fazia crer que a renovação do Vaticano II era uma batalha perdida. Entretanto, a ascensão de um papa “do fim do mundo” significa esperança renovada.

Haverá futuro para as propostas da Igreja na América Latina, em grande medida assumidas pelo papa Francisco? Talvez até mais em outros continentes que no nosso. Se depender de muitos de nossos bispos e, sobretudo, de grande parte da nova geração de presbíteros, muitos deles fazendo as contas de quantos anos restam para este pontificado, dificilmente teremos uma nova primavera na Igreja. Nossa periferia, que agora se tornou centro, quase já não se reconhece naquele rosto de Igreja que ela mesma se plasmou em torno às CEBs, a Teologia da Libertação, a pastoral social, a leitura popular da Bíblia e o testemunho dos mártires das causas sociais. A esperança é que “os ventos do Sul”, que agora sopram no Norte que descobriu o teor e o valor da tradição eclesial libertadora, como o “vento impetuoso” de Pentecostes (cf. At 2,2), volte a “abrasar o coração” da periferia latino-americana, que ainda não assimilou o significado e o alcance de se ter um papa do “fim do mundo”, acolhendo e abençoando aquilo que até então era visto pelo centro como barbárie eclesial.

Notas

  1. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  2. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  3. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  4. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  5. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.

Referências

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BRIGHENTI, A. “Perfil da Igreja que o Papa Francisco sonha”. In: da Silva, José Maria (Org). Papa

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Fonte:

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Documento de Aparecida: o texto original, o texto oficial e o papa Francisco – terceira parte, com a palavra o teólogo pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-terceira-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Thu, 22 Jul 2021 13:45:44 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39997 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a TERCEIRA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

4. O método ver-julgar-agir

Uma quarta questão sensível colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida é com relação à racionalidade moderna, indutiva e histórica, em contraposição a uma racionalidade dedutiva e essencialista, pré-moderna. O método ver-julgar-agir, idealizado por J. Cardijn, fundador da Ação Católica especializada, marca a recepção nos meios eclesiais da racionalidade moderna, primeiro na pastoral e, depois, na reflexão teológica. A pedagogia cardjiniana toma distância de uma racionalidade dedutiva, a-histórica, metafísica, escolástica, que a modernidade, desde o século XVI, havia superado. A racionalidade moderna é histórica, indutiva, articulada a partir da práxis ou da experiência. Como observa K. Rahner, na modernidade a teologia se faz antropologia, no sentido que a experiência da transcendência só pode ser apreendida a partir da imanência.

O método ver-julgar-agir, idealizado por J. Cardin em 1925, entrou no magistério pontifício através do papa João XXII, na encíclica Mater et magistra, em 1961, como metodologia de ação. O Concílio Vaticano II, alicerçado na relevância de uma leitura dos “sinais dos tempos”, na Gaudium et spes, fará dele um método teológico (leitura dos sinais dos tempos, iluminação da Palavra, compromisso pastoral), que irá influenciar diretamente a Igreja na América Latina, dando origem à Teologia da Libertação e seu método — mediação sócio-analítica, mediação hermenêutica, mediação da práxis.

Na Igreja, setores antagônicos à racionalidade e aos ideais da modernidade, bem como atrelados à teologia escolástica, sempre mostraram resistências ao método ver-julgar-agir, já com relação à Ação Católica, acusando-a de sociologização ou marxização da fé. Na América Latina, sobretudo com o advento da Teologia da Libertação, estes segmentos eclesiais trataram de suplantar o método por pedagogias dedutivas e a-históricas. Na Conferência de Santo Domingo, a metodologia de trabalho e a estrutura do documento, planejadas de modo indutivo, foi suplantada por estes segmentos por uma metodologia dedutiva, para estranhamento da maioria dos membros da Assembleia.

Aparecida e o método ver-julgar-agir

A Conferência de Aparecida resgatou o método ver-julgar-agir, ainda que não sem dificuldades. O método se fazia presente, não só no conteúdo, como na própria estrutura do Documento. Entretanto, na redação final apresentada à Assembleia para a votação conclusiva, o atual capítulo primeiro com o título Os discípulos missionários estava originalmente no início da segunda parte, intitulada A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários , e não na primeira parte A vida de nossos povos hoje como se encontra. Apesar das moções da Assembleia para reverter a ordem dos capítulos, a Presidência não voltou atrás.

Expressão da resistência a uma racionalidade indutiva e histórica e do apego ao procedimento metodológico da teologia escolástica, são as supressões e interpolações dos censores na caracterização do método ver-julgar-agir no “texto original”, que dizia: “Este documento continua a prática do método ver, julgar, agir”. Substituiu-se “continua a prática” por “faz uso” do método. E acrescentou-se:

Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu.

Documento de Aparecida, n. 19


Em resumo, ver à luz da Providência, julgar segundo Jesus Cristo e agir a partir da Igreja, ou seja, uma teologia que não se articula a partir da experiência, da história, dos acontecimentos, dos sinais dos tempos e, portanto, a-histórica, dedutiva, é irrelevante para seu contexto. Aqui aparece a dificuldade dos censores em reconhecer a densidade teologal da história, da experiência humana, da vida cotidiana, dos fatos. É aquela mentalidade que o “profano” não tem nada a dizer para a Igreja e que a secularização, enquanto reconhecimento da autonomia do temporal, atenta contra o espiritual.

Papa Francisco: a realidade é mais importante do que a ideia

Se para os censores do Documento de Aparecida, os pressupostos são mais importantes que o contexto histórico, para o papa Francisco, a realidade é mais importante do que a ideia. O Papa pensa e fala na perspectiva do ver-julgar-agir. Tomando distância de uma racionalidade essencialista e dedutiva, o papa Francisco afirma em Evangelii gaudium que a realidade é complexa, plural, conflitiva e opaca, que precisa ser descoberta, através de um discernimento (EG 194). Daí a necessidade de um olhar integral sobre a realidade, sem a pretensão de um olhar neutro e asséptico (EG 50): “a tentação se encontraria em optar por um ver totalmente asséptico, um ver neutro, o que não é viável. O ver está sempre condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 139)1. Por isso, a realidade não pode ser decifrada, de cima para baixo, e para o mundo inteiro — “nem o Papa nem a Igreja possuem o monopólio da interpretação da realidade” (EG 184).

E acusando recepção da razão histórica entende que a realidade é mais importante do que a ideia, pois esta não passa de uma interpretação daquela (EG 231). Nem o olhar da fé consegue eliminar toda a ambiguidade da realidade concreta (EG 233) que, por ser histórica, está “em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo” (EG 122). Trata-se de “uma realidade nunca acabada” (EG 126).

O papa Francisco assume também, na racionalidade, as contingências dos sujeitos que veem. Frisa que a realidade é apreendida na vida social onde recebemos os referenciais culturais (EG 115), vida social esta que influencia inclusive o modo de interpretar a realidade à luz da fé. A própria doutrina não é uma realidade “monolítica, a ser defendida sem nuances” (EG 40). Por isso, a hermenêutica da realidade é sempre comunitária, imperativo para um discernimento comum, o que vai ao encontro das exigências da razão comunicativa, colocada em relevo no atual contexto de crise da modernidade.


5. As Comunidades Eclesiais de Base

Uma das partes mais censuradas do “texto original” do Documento de Aparecida é a referente às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os censores têm consciência de sua importância e significado para a Igreja na América Latina, antes mero reflexo da Igreja europeia, agora uma Igreja com rosto próprio e uma palavra própria. Na verdade, as CEBs enquanto eclesiogênese2, não são uma criação da Igreja na América Latina. Ela se alicerça sobre a experiência paradigmática da Igreja primitiva, organizada em domus ecclesiae, toda ela ministerial, inserida no seio da sociedade secular, em perspectiva profética. O martírio é a mais contundente prova de sua presença transformadora.

Na América Latina, sobretudo a partir de países como Brasil, Panamá, Chile e outros, as CEBs foram assumidas e recomendadas pelos Bispos na Conferência de Medellín e logo tiveram grande impulso em todo o Continente. A exemplo da Igreja primitiva, o centro está na Palavra de Deus e nas CEBs, em forma de “leitura popular da Bíblia”3, como também a inserção profética numa sociedade marcada pela injustiça institucionalizada, gerando tensões tanto no seio da Igreja como dos Estados sob as ditaduras militares. Na Conferência de Puebla, os setores mais conservadores da Igreja já se contrapuseram a este “novo modo de ser Igreja”, acusando as CEBs de constituírem-se em uma “Igreja popular”, contraposta à hierarquia, bem como de politizar a fé. Na Conferência de Santo Domingo, propala-se “os movimentos” de apostolado de classe média como a “nova primavera da Igreja”, respaldados por uma determinada “nova evangelização”, em perspectiva de neo-Cristandade.

Aparecida: é preciso dar novo impulso às CEBs

Uma das gratas surpresas de Aparecida foi o resgate das CEBs, reconhecendo seu valor e recomendando seu reimpulso em todo o Continente. Entretanto, os censores fizeram mudanças substanciais no “texto original” a respeito. No número 178, substitui-se: “Constata-se, em muitos lugares, um florescimento de comunidades eclesiais de base”; por “… em alguns lugares”. E acrescentou-se: “segundo o critério das Conferências Gerais anteriores”. E suprimiu-se, no final deste número: “Arraigadas no coração do mundo, são espaços privilegiados para a vivência comunitária da fé, mananciais de fraternidade e de solidariedade, alternativa à sociedade atual, fundada no egoísmo e na competição desmedida”. E, acrescentou-se: “Puebla constatou que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos, no entanto, também constatou que não tem faltado membros de comunidade ou comunidades inteiras que, atraídas por instituições puramente leigas ou radicalizadas ideologicamente, foram perdendo o sentido eclesial”.

No número 179, suprimiu-se: “Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e missão profética e santificadora das CEBs”; “elas têm sido uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da América Latina e o Caribe, após o Vaticano II”,

depois do caminho percorrido até o momento, com conquistas e dificuldades, é o momento de uma profunda renovação desta rica experiência eclesial em nosso Continente, para que não percam sua eficácia missionária, antes que a aperfeiçoem e a enriqueçam, de acordo com as sempre novas exigências dos tempos.

Documento original

Neste mesmo número, suprimiu-se, também: “As CEBS em comunhão com seu bispo e o projeto de pastoral diocesana, são um sinal de vitalidade na Igreja, instrumento de formação e de evangelização, e um ponto de partida válido para a Missão Continental permanente”; e acrescentou-se:

Mantendo-se em comunhão com seu bispo e inserindo-se no projeto de pastoral diocesana, as CEBs se convertem em um sinal de vitalidade na Igreja particular. Atuando, dessa forma, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades.

Documento oficial de Aparecida, n. 179

No mesmo número, suprimiu-se: “Elas poderão revitalizar a paróquia, desde seu interior, fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades”, substituindo-se por: “Atuando, assim, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias, fazendo delas, uma comunidade de comunidades”. Finalmente, acrescentou-se, ao final do número: “Em seu esforço de corresponder aos desafios dos tempos atuais, as comunidades eclesiais de base terão cuidado para não alterar o tesouro precioso da Tradição e do Magistério da Igreja”.

No número 180, ao falar da validade de outras formas de pequenas comunidades, os censores acrescentaram, além destas, também os “movimentos”. E substitui-se: “Junto com as CEBs, há outras ‘variadas’ formas de pequenas comunidades”, por “outras ‘válidas’ formas”; substituiu-se, também: “A experiência positiva destas comunidades torna necessária uma especial atenção para que tenham a Eucaristia como centro de sua vida e cresçam em solidariedade e integração eclesial e social”, por: “todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a
Eucaristia seja o centro de sua vida e a Palavra de Deus seja o farol de seu caminho e sua atuação na única Igreja de Cristo”.

Como se pode perceber, a mudança no “texto original” com relação às CEBs foi profunda, com supressões, acréscimos e reformulações de redação. Permanecem elementos importantes, mas privados da contundência e profetismo do “texto original”, contrapostos com a obsessiva insistência de inserção das CEBs na paróquia, sem o devido reconhecimento que elas redundam num novo tipo de paróquia, comunidade de pequenas comunidades. Deliberadamente, se desqualifica a “decidida reafirmação” das CEBs feita pelos Bispos, bem como o convite de dar-lhes “novo impulso”. No fundo, está em jogo a eclesiologia do Vaticano II e, sobretudo, o novo rosto de Igreja que as CEBs deram à Igreja na América Latina.

Papa Francisco: as CEBs, riqueza que o Espírito suscita

Se para os censores do Documento de Aparecida as CEBs pervertem o magistério, não estão em comunhão com a paróquia e os movimentos devem ter mais destaque, para o papa Francisco, elas combatem o clericalismo e renovam a paróquia e são riqueza que o Espírito suscita. Pela primeira vez já na longa história dos Intereclesiais das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil, o evento tem recebido a palavra de apoio de um papa. O papa Francisco, em sua mensagem, retoma o Documento de Aparecida, que se refere às CEBs como um instrumento que permite ao povo “chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos” (DAp 178).

Na Evangelii gaudium, ele frisa ser necessário “reconhecer que, se uma parte de nosso povo batizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor em algumas de nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida de nossos povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização (EG 63).

Ao abordar a questão de uma “pastoral em conversão”, fala que as Comunidades de Base como “uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os setores e ambientes”. Elas trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo, que renovam a Igreja”. Mas, conhecedor das tensões ainda existentes em torno a elas, frisa a necessidade de que elas “não percam o contato com esta realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular” (EG 29).

6. A inculturação

Uma sexta questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à inculturação da fé, à legitimidade de Igrejas autóctones, com rosto próprio. A Igreja na América Latina, com a “recepção criativa” do Vaticano II feita pela Conferência de Medellín, desencadeou um processo gradativo de construção de uma Igreja autóctone, com rosto próprio.

Tarefa pendente: a inculturação no mundo indígena e afro-americano

Sobretudo os indígenas e os afro-americanos, como reconhece o Documento de Aparecida, são povos que reivindicam serem tomados em conta na catolicidade (DAp 91). As teologias índia e afro-americana são expressões desta legítima aspiração, que tem contribuído para processos de uma evangelização inculturada no Continente. Entretanto, também neste campo, não faltaram mal-entendidos, tensões e conflitos com segmentos mais conservadores da Igreja. Eles argumentam o perigo da perda da catolicidade ou da unidade na mesma fé, nem sempre distinguindo unidade e diversidade, como frisou o Vaticano II. E têm obstaculizado muitos processos de inculturação da fé, seja na liturgia, na criação de ministérios ou na teologia.

Esta preocupação está registrada nas mudanças que os censores fizeram no “texto original” do Documento de Aparecida. Por exemplo, diziam os Bispos: “Permanece ainda nos imaginários coletivos uma mentalidade e uma visão colonial com relação aos povos originários e afro-americanos”. A redação foi substituída por: “Permanece, em alguns casos, uma mentalidade e um certo olhar de menor respeito em relação aos indígenas e afro-americanos” (DAp 96). Mais adiante, ao falar da formação dos agentes de pastoral, o “texto original” dizia e foi supresso pelos censores: “Faz falta uma sólida estrutura de formação permanente dos fiéis, em outros agentes de pastoral e uma evangelização mais inculturada em todos os níveis, particularmente nas culturas indígenas e afro-americanas” (DAp 100).

Papa Francisco: ir para as periferias, sem domesticar as fronteiras

Unidade confundida com uniformidade, medo do diferente, distância das culturas indígenas e afro-americanas são posturas que os censores deixam entrever em seus posicionamentos, ao contrário do papa Francisco, que desafia a Igreja ir para as periferias, sem domesticar as fronteiras. Em mais de uma oportunidade, também em sua visita ao Brasil, o papa Francisco desafia a Igreja sair de si mesma, do centro, e ir para as ruas, às fronteiras. Seu pensamento recorrente e insistente frisa que “uma Igreja que não sai de si mesma adoece, cedo ou tarde, em meio à atmosfera pesada do seu próprio fechamento. A doença típica da Igreja fechada é ser autorreferencial; olhar para si mesma, ficar encurvada sobre si mesma, como aquela mulher do Evangelho. É uma espécie de narcisismo que nos leva ao mundanismo espiritual (EG 93) e ao clericalismo sofisticado, e, depois, nos impede de experimentar a doce e reconfortante alegria de evangelizar” (BRIGHENTI, 2014, p. 21).

Para uma Igreja missionária capaz de chegar a todos, sobretudo, aos pobres e esquecidos, é preciso que haja uma reforma de suas estruturas. Na Evangelii gaudium, afirma o papa Francisco que se trata de “fazer com que todas as estruturas da Igreja se tornem mais missionárias; que a pastoral ordinária, em todas suas instâncias, seja mais expansiva e aberta; que coloque os agentes de pastoral em constante atitude de saída”. O critério específico para a reforma das estruturas da Igreja é a missão e não a sofisticação administrativa. Para o Papa, a “mudança das estruturas” (das caducas para as novas) não é “fruto de um estudo de organização do sistema funcional eclesiástico” (EG 25). O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade (EG 28).

Na perspectiva do dinamismo de uma evangelização inculturada, o papa Francisco, em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, exorta que ao sair para as ruas, é preciso ficar atentos, para não cair na “tentação de domesticar as fronteiras: deve ir-se em direção às fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa a fim de envernizá-las um pouco e domesticá-las”. É o respeito à alteridade, a acolhida dos diferentes, estar disposto a deixar-se surpreender e aprender com as diferenças, dado que na evangelização não temos destinatários, mas interlocutores (EG 234). Em lugar de uma missão proselitista e domesticadora, um processo de evangelização pautado pelo testemunho e o diálogo é condição para o anúncio do querigma.

Na Evangelii gaudium, o papa Francisco afirma que a inculturação é a analogia pastoral da encarnação do Verbo. Na verdade, esta é a base teológica do imperativo de uma evangelização como inculturação do Evangelho. O dom de Deus se encarna na cultura de quem o recebe, diz ele. Lembra que a Igreja, como Povo de Deus, se encarna nos povos da Terra e cada um deles tem sua própria cultura” (EG 115). Consequentemente, o Evangelho inserido e inculturado “num povo, no seu processo de transmissão cultural, também transmite a fé de maneira sempre nova. Daí a importância da evangelização entendida como inculturação” (EG 122).

Falando do processo de uma evangelização inculturada, o papa Francisco frisa na Evangelii gaudium que “pela inculturação, a Igreja introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, porque cada cultura oferece formas e valores que podem enriquecer o modo como o Evangelho é compreendido e vivido” (EG 116). Por isso, está “na lógica da Encarnação pensar num cristianismo pluricultural” (EG 117). O conteúdo do Evangelho é transcultural, mas se encarna em cada cultura. Assim, conclui o Papa, não é correto pensar que “o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas preestabelecidas, que exprimam um conteúdo absolutamente invariável” (EG 129).

Notas:

  1. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
  2. A Conferência de Medellín, em sintonia como o modelo de Igreja na era primitiva, refere-se às CEBs como “célula inicial da estruturação eclesial” (Med 6,1).
  3. Este tipo de leitura bíblica, feita no interior das Comunidades Eclesiais de Base, foi popularizada e amplamente divulgado pelos roteiros dos “Círculos Bíblicos”, elaborados por Frei Carlos Mesters.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o papa Francisco – Segunda PARTE, COM A PALAVRA O TEÓLOGO PE. AGENOR BRIGHENTI https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-segunda-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Wed, 21 Jul 2021 18:27:32 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39974 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a SEGUNDA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

2. A opção pelos pobres

Outra questão sensível colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é em relação aos pobres. A opção pelos pobres, tal como afirmou o papa Bento XVI em Aparecida, “radica na fé cristológica”, embora nem sempre tenha sido preferencial na Igreja. O papa João XXIII, consciente da “irrupção do Terceiro Mundo”, tal como acusam as Encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963), ao convocar o Vaticano II, sonhou com “uma Igreja pobre e para os pobres, para que seja a Igreja de todos”. Durante o Concílio, o “Grupo Igreja dos Pobres” que se reunia junto ao cardeal Lercaro e o “Pacto das Catacumbas” em torno a dom Hélder Câmara, trouxeram esta sensibilidade para dentro da aula conciliar. Terminado o Concílio, o papa Paulo VI, assumindo a perspectiva dos pobres do “Terceiro Mundo”, publicou a Populorum progressio (1967), que iria ter influência decisiva sobre a Conferência de Medellín (1968) e a explicitação e tematização da opção preferencial pelos pobres na vida cristã.

Na América Latina, em pleno período de ditaduras militares, que se impuseram sob o patrocínio dos Estados Unidos em quase todos os países do Continente, a Igreja, consequente com a opção pelos pobres, adquire um rosto profético e libertador, em torno das comunidades eclesiais de base, da leitura popular da Bíblia, da pastoral social, da teologia da libertação e aos mártires das causas sociais. A repressão não tardou a se impor fora da Igreja pelos regimes de exceção e, dentro dela, mal-entendidos e difamações proliferaram por meio de segmentos reticentes à renovação do Vaticano II.


A opção pelos pobres adjetivada pelos censores

As tensões em torno à opção pelos pobres se fizeram presentes também na Conferência de Aparecida. Por um lado, a afirmação do papa Bento XVI no Discurso Inaugural de que é uma opção que se “radica na fé cristológica” (apud DAp 393), livrou a Assembleia de debates em torno à questão, prestando um grande serviço aos bispos. Mas, por outro lado, os censores se encarregaram de adjetivá-la no “texto oficial”, corrigindo o “texto original”. Sempre que o texto se referia à “opção pelos pobres”, acrescentou-se: “Ela, não obstante, não é nem exclusiva, nem excludente” (DAp 392).

Ora, a opção pelos pobres, desde que foi tematizada pela Igreja na América Latina em torno à Conferência de Medellín, se sabe que não é uma opção contra os ricos, mas contra a pobreza e a exclusão, à qual os ricos precisam também estar engajados. A desconfiança de que a opção pelos pobres é classista é ainda ranço do temor do marxismo, que tanto as ditaduras militares como os setores conservadores da Igreja mantiveram por décadas. Este temor aparece também na cristologia. O “texto original” refere-se a Jesus, “feito pobre” e os censores mudaram no “texto oficial” por “feito homem” (DAp 176). Na realidade, se não compreendem a opção pelos pobres feita por Jesus, muito menos vão compreender o sentido e o alcance da mesma opção, feita por cristãos engajados na construção de uma sociedade onde caibam todos.


Papa Francisco: os pobres são a carne de Cristo

Um Jesus Cristo pobre, que fez opção pelos pobres e assumiu a defesa deles como causa mesma de Deus, é matizado pelos censores do Documento de Aparecida, mas não pelo papa Francisco. Em seu modo de ser e em seus pronunciamentos, a opção pelos pobres é uma questão central. Na inauguração de seu pontificado, inspirado em João XXIII e alicerçado no testemunho dos mártires das causas socais da Igreja na América Latina, o papa Francisco expressou seu desejo incômodo: “como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!” (EG 198). E começou por ele mesmo: pagando suas contas no dia seguinte à sua eleição, simplificando seus trajes, trocando o “trono” por uma cadeira, conservando sua cruz peitoral e seus sapatos pretos, utilizando carro modesto… É a expressão da acolhida da famosa admoestação de São Bernardo ao seu confrade cisterciense, eleito papa Eugênio III: “não te esqueça que és o sucessor de um pescador e não do imperador Constantino”. Em entrevista a um jornalista italiano, o papa Francisco disse que “os chefes da Igreja, geralmente, têm sido narcisistas, adulados e exaltados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado” (BRIGHENTI, 2014, p. 17).

Em sua visita ao Brasil o papa Francisco repetiu em diversas ocasiões: “a Igreja deve sempre lembrar, que não pode afastar-se da simplicidade” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 91)1. Prestígio e poder são classificados por ele de “mundanismo”, pois afasta a Igreja da proposta evangélica do Reino de Deus, inaugurado e mostrado em Jesus de Nazaré (EG 93). Em Evangelii gaudium afirma que

este escuro mundanismo se manifesta em muitas atitudes aparentemente opostas, mas com a mesma pretensão de ‘dominar o espaço da Igreja’. Em alguns, há um cuidado ostentoso da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas sem preocupá-los que o Evangelho tenha uma real inserção no Povo de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja se converte em peça de museu ou em uma posse de poucos.

Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 95

Coerente com o espírito da “opção pelos pobres”, tão bem explicitada e tematizada pela teologia latino-americana, o papa Francisco faz dos pobres uma questão primeira e central na vida da Igreja e de seu pontificado. A preocupação primeira do papa Francisco não é sua autoridade ou imagem pública, nem a doutrina da Igreja ou discursos bem arquitetados, mas o sofrimento e causa dos pobres no mundo, que são a causa de Deus. Como Jesus veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10), a prioridade não é a religião, mas a vida minguada e ameaçada de dois terços da humanidade. Nisto está a essência do Evangelho, pois recolhe o modo de relação de Jesus com o sofrimento dos doentes, dos pobres, dos desprezados, sejam eles pecadores ou publicanos, crianças silenciadas ou mulheres desprezadas.

Para o papa Francisco, urge “uma Igreja pobre e para os pobres” (EG 198) reais, não virtuais, numa opção pelos pobres espiritualista. Como disse numa obra social em Roma e repetiu no Brasil: “vocês, os pobres, são a carne de Cristo”2 (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 30). Os pobres prolongam a paixão de Cristo, na paixão do mundo (Leonardo Boff). Por isso, para o Papa, “é nas favelas, nas vilas miséria, onde se deve ir buscar e servir a Cristo” (ibid., p. 71)7. No Centro Astalli, respondendo algumas perguntas sobre “periferias existenciais”, o Papa encoraja os institutos religiosos com poucas vocações a não venderem os seus edifícios, mas abri-los aos necessitados. E acrescentou: “a realidade é melhor entendida a partir da periferia do que do centro, que corre o risco da atrofia” (BRIGHENTI: 2014, p. 18).

Em Evangelii gaudium, diante de tantas espiritualidades alienantes, o papa Francisco clama por um cristianismo encarnado: “mais do que o ateísmo, hoje se coloca o desafio de responder adequadamente à sede de Deus de muita gente, para que não busquem apagá-la com propostas alienantes ou em um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os sane, liberte, os encha de vida e de paz, ao mesmo tempo em que os convoque à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam, nem dão glória a Deus” (EG 89).

3. Sistema econômico-político e ecologia

Uma terceira questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação ao sistema liberal capitalista. Diz Y. Calvez que na Doutrina Social do magistério pontifício, com relação ao sistema coletivista marxista, a posição da Igreja foi sempre de uma intrínseca incompatibilidade com os princípios cristãos. Entretanto, diz ele, com o sistema liberal capitalista, sempre permaneceu um posicionamento ingênuo, no sentido de que ele é humanizável ou reformável, quando na realidade é tão contraditório com a mensagem cristã quanto o coletivismo marxista.

Na Conferência de Puebla, os Bispos da América Latina e Caribe, diferente do posicionamento ingênuo do magistério social pontifício, tomaram uma posição clara: nem coletivismo marxista e nem capitalismo, pois se o marxismo professa um ateísmo teórico e prático, o sistema capitalista, embora não seja teoricamente ateu, na medida em que coloca no centro o “ter” ou o lucro, é também ateu, pois professa um ateísmo prático.

O profetismo silenciado

Em Aparecida, em diversos momentos do processo de redação do Documento, se quis introduzir no texto uma análise mais contundente do sistema liberal capitalista, mas sempre esbarrou na oposição de determinados segmentos da assembleia. Entretanto, tanto no econômico como no campo político e no ecológico, o “texto original” tinha posicionamentos proféticos, mas que depois os censores matizaram ou suprimiram.

Com relação ao econômico, o “texto original” dizia: “Entretanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, a Economia Social de Mercado continua sendo uma forma idônea de organizar o trabalho, o conhecimento e o capital, para satisfazer as autênticas necessidades humanas”. No “texto oficial” aparece: “Entretanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode se reduzir a um mero processo de acumulação de bens e de serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é uma condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana” (DAp 69). Com relação ao tráfico de droga, o “texto original” apontava para a raiz do problema — o sistema socioeconômico e cultural dos grupos dominantes, do qual são vítimas também os pequenos traficantes das favelas. Diziam os bispos: “É muito dolorosa a situação de tantas pessoas e, em sua maioria jovens, que são vítimas da voracidade insaciável de interesses econômicos de que comercializam a droga”. Os censores suprimiram o texto e abordam o problema na perspectiva da repressão ao tráfico por parte do Estado, da educação da juventude e da assistência aos drogados (DAp 422).

No campo político, os censores se mostram permeáveis à preocupação dos setores tradicionalmente dominantes, frente ao poder que os pobres vão gradativamente conquistando de modo democrático, sobretudo os indígenas. O “texto original” do Documento de Aparecida dizia: “Constatamos como fato positivo o fortalecimento dos regimes democráticos em muitos países da América Latina e Caribe, segundo demonstram os últimos processos eleitorais”. O “texto oficial” matiza: “Constatamos um certo processo democrático que se demonstra em diversos processos eleitorais” (DAp 74)

No campo da ecologia, não se explica porque os censores suprimiram do texto a referência às águas e aos recursos naturais. Dizia o “texto original”: “[…] não um planeta com ar contaminado, com águas envenenadas e com recursos naturais esgotados”. E, acrescentou-se: “Felizmente, em algumas escolas católicas, começou-se a introduzir entre as disciplinas uma educação em relação à responsabilidade ecológica” (DAp 471).


Papa Francisco: esta economia mata

Um mercado que tome em conta o social e o bem comum, as contradições do atual sistema econômico com os ideais evangélicos, assim como Estados, na história recente da América Latina, promotores de políticas públicas de inclusão social, são desqualificados pelos censores do Documento de Aparecida, mas não pelo papa Francisco. Na melhor tradição franciscana, o papa Francisco frisa que “o cristianismo combina transcendência e encarnação” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 79)3. Por isso, diz aos jovens, no Rio de Janeiro: “ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo” (ibid., p. 39)4. É preciso tomar posição, ir à ação: “quero que a Igreja saia às ruas, defendendo-se de tudo o que seja mundanismo, instalação, comodidade, clericalismo, estar fechada em si mesma” (ibid., p. 44). Nem é preciso perguntar-se muito sobre o que fazer: “com as Bem-aventuranças e Mateus 25, 31-46 (parábola do juízo final), se têm um programa de ação” (ibid. p. 46). Para o Papa, o grande desafio para os cristãos, consequentes com o Evangelho da vida, é “não deixar entrar em nosso coração a cultura do descartável. Ninguém é descartável!” (ibid., p. 40). Por isso, “tenham a coragem de ir contra a corrente dessa cultura eficientista, dessa cultura do descarte” (ibid., p. 74). Em nossa sociedade, hoje, “a exclusão dos jovens e dos idosos é uma eutanásia oculta” (ibid. p. 44).

Isso não se resolve simplesmente apelando para milagres, curas, ações paternalistas ou saídas providencialistas. Em Evangelii gaudium, o papa Francisco frisa que “ninguém pode nos exigir que releguemos a religião à intimidade secreta das pessoas, sem influência alguma na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das instituições da sociedade civil, sem opinar sobre os acontecimentos que afetam os cidadãos”. E continua: assim como o mandamento de ‘não matar’ põe limite claro para assegurar o valor da vida humana, hoje temos que dizer ‘não a uma economia da exclusão e da falta de equidade’. Esta economia mata. É inadmissível que não seja notícia que morra de frio um idoso morador de rua e que seja notícia a queda de dois pontos na bolsa. E continua:

hoje, clama-se por segurança, porém, enquanto não se elimine a exclusão e a falta de equidade no seio de uma sociedade e entre os povos, será impossível erradicar a violência. Acusa-se da violência os pobres e os povos pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as diversas formas de agressão e de guerra encontrarão terreno fértil, que cedo ou tarde, provocará sua explosão. Quando a sociedade — local, nacional, mundial — abandona na periferia uma parte de si mesma, não haverá programas políticos nem aparato policial ou de inteligência que possam assegurar indefinidamente a tranquilidade.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 53

Chama atenção o papa Francisco nesta Exortação Apostólica que “isto ocorre não somente porque a falta de equidade provoca a reação violenta dos excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto em sua raiz”. Parafraseando João Paulo II que afirmou a vigência de uma sociedade que gera “ricos cada vez mais ricos, à custa de pobres cada vez mais pobres”, o Papa diz que

enquanto os ganhos de uns poucos crescem desmesuradamente, os ganhos da maioria ficam cada vez mais distantes do bem-estar desta minoria feliz. Este desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle por parte dos Estados, encarregados de velar pelo bem comum. Instala-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe de forma unilateral e implacável suas leis e suas regras.

Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 56

Aqui está um complexo campo de ação dos cristãos, mas que é tarefa de todos os cidadãos. Não outra saída, “o futuro exige hoje a tarefa de reabilitar a política, que é uma das formas mais altas da caridade”, disse o Papa no Rio de Janeiro (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 80)10.

Com relação à ecologia, o papa Francisco também surpreende com a dedicação de uma encíclica sobre a questão — a Laudato si’ (LS) — introduzindo no magistério social pontifício a noção de “ecologia integral”, somando à compreensão do conceito em encíclicas anteriores, também os conceitos de “ecologia econômica”, “ecologia social”, “ecologia cultural” e “ecologia da vida cotidiana”. E de forma profética, inclui prioritariamente os pobres, que testemunham também sua forma de ecologia humana e social, vivendo laços de pertença e de solidariedade de uns para com os outros (LS 149). Para Francisco, faz-se necessária uma noção de ecologia “que integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o circunda” (LS 15). Aspecto importante porque, “isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida” (LS 139).

Na Encíclica Laudato si’, embora a palavra “capitalismo” não apareça, fica muito claro que para o papa Francisco os dramáticos problemas ecológicos de nossa época resultam das “engrenagens da atual economia globalizada”, engrenagens que constituem um sistema global, “um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”. Esta perversidade se deve a um sistema no qual predominam “os interesses ilimitados das empresas” e “uma discutível racionalidade econômica”, uma racionalidade instrumental que tem por único objetivo aumentar o lucro. Para o Papa, esta perversidade não é própria de um país ou outro, mas de “um sistema mundial, onde predominam a especulação e o princípio de maximização do lucro, e uma busca de rentabilidade financeira que tende a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e o meio ambiente. Assim, se manifesta a íntima relação entre degradação ambiental e degradação humana e ética”. A obsessão do crescimento ilimitado, o consumismo, a tecnocracia, o domínio absoluto da finança e a divinização do mercado são outras características perversas do sistema. Em sua lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro de custos e benefícios”. Mas sabemos que “o meio ambiente é um desses bens que os mecanismos de mercado não são capazes de defender ou de promover adequadamente”. O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do sistema, como revelou a recente crise bancária. O comentário da Encíclica é contundente: “a salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, confirma o domínio absoluto das finanças que não têm futuro e só pode gerar novas crises, depois de uma longa, custosa e aparente cura”.

Notas:

  1. Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
  2. Expressão do Papa Francisco em pronunciamento feito por ocasião de sua visita ao Brasil, concretamente ao Hospital São Francisco de Assis na Providência de Deus, Rio de Janeiro, dia 24 de julho de 2013.
  3. Expressão recorrente nos pronunciamentos do Papa Francisco, que se remete à alocução feita por ocasião da visita à Comunidade de Varginha (Manguinhos), Rio de Janeiro, no dia 25 de julho, durante sua visita ao Brasil, em 2013.
  4. Alocução à “Classe dirigente do Brasil”, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o Papa Francisco – Primeira parte, com a palavra o teólogo Pe. Agenor Brighenti https://observatoriodaevangelizacao.com/documento-de-aparecida-o-texto-original-o-texto-oficial-e-o-papa-francisco-primeira-parte-com-a-palavra-o-teologo-pe-agenor-brighenti/ Mon, 19 Jul 2021 15:08:03 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39957 [Leia mais...]]]> O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.

Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.

(Obs.: Esta é a PRIMEIRA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)

Introdução

Terminados os trabalhos da V Conferência Geral dos Bispos da América Latina e Caribe em Aparecida no ano de 2007, seus participantes e assessores tinham em mãos o “texto original” do Documento de Aparecida, que teve na presidência da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio, hoje papa Francisco. Semanas depois, mais precisamente no dia 29 de junho, quando o papa Bento XVI “autorizou” (sic) a publicação do Documento Conclusivo, houve a desagradável surpresa de constatar que o “texto oficial” não coincidia com o “texto original”. Entre o término da Assembleia e a data da “autorização” de publicação do Documento, haviam sido feitas ao redor de 250 mudanças no “texto original”, muitas delas de menor importância, mudanças de forma ou de redação, mas outras tantas maiores, de conteúdo, pelo menos umas 40, importantes, de fundo.

O fato provocou a mobilização de setores significativos da Igreja, na busca de uma explicação sobre as mudanças efetuadas no “texto original”, tanto junto à Presidência da Assembleia como à Presidência do Conselho Episcopal Latino-americana (CELAM). A resposta, em um primeiro momento, foi de que o “texto original” e o “texto oficial” eram exatamente os mesmos. Entretanto, quando se demonstrou por meio de um minucioso trabalho analítico em quadros sinóticos1, as supressões, correções e os acréscimos ao “texto original”, a primeira explicação ficou desqualificada. Afirmava-se que, terminada a Assembleia, tudo o que a Presidência da Assembleia havia feito, foi levar o texto a Roma, para a “aprovação” do Papa. O desconcerto foi ainda maior, quando um membro da própria Presidência contou que o Papa, ao receber o texto, teria dito que por se tratar de um documento dos Bispos da Igreja na América Latina e Caribe, não caberia a ele “aprovar”, mas simplesmente “autorizar” sua publicação, exatamente como está expresso na carta que abre o Documento2.

Então, afinal, quem foram os autores das mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida, entregue pela Comissão de Redação, presidida pelo então cardeal Bergoglio, à Presidência da Assembleia para levá-lo ao Papa? Nunca houve uma explicação oficial. Entretanto, conhecendo-se o teor do debate na Assembleia e as propostas das emendas apresentadas e não aprovadas e que agora apareciam no “texto oficial”, praticamente os autores das mudanças efetuadas deixaram nelas sua própria assinatura. Por outro lado, ninguém poderia imaginar, muito menos os censores que, poucos anos depois, o então presidente da Comissão de Redação do “texto original” do Documento viria a ser Papa. E mais que isso, que praticamente todas aquelas mudanças ou supressões que os censores haviam feito no “texto original”, o então cardeal Bergoglio — agora papa Francisco — traria novamente à tona e as proporia à Igreja como um todo, tanto através de seus reiterados pronunciamentos, como de seus documentos.

Neste estudo, no intuito de explicitar os “ventos do Sul na nova conjuntura eclesial” com a ascensão ao pontificado do cardeal Bergoglio, selecionamos dez das maiores mudanças efetuadas pelos censores no “texto original” do Documento de Aparecida. Sobre cada uma delas, apresentaremos sua redação no “texto original” em comparação com o “texto oficial”, seguida do resgate que o papa Francisco está fazendo daquilo que os censores haviam pontuado ou suprimido.

Quando se vê, na atualidade, o empenho do papa Francisco na reforma da Cúria romana e as dificuldades e até hostilidades que está encontrando em levar a cabo sua arrojada proposta evangelizadora, se entende melhor de onde vieram as mudanças no “texto original” de Aparecida e as razões que moveram seus censores.

Felizmente se, por um lado, tal ingerência minimizou o profetismo da Conferência de Aparecida, por outro, mostra o papa Francisco fazendo-se porta-voz da rica trajetória da Igreja na América Latina à Igreja inteira, ainda que isso incomode ou pareça inoportuno para determinados segmentos da Igreja, alguns deles muito perto do Papa ou até em sua casa, como provavelmente alguns dos censores do Documento de Aparecida.

1. A renovação do Vaticano II

Uma das questões sensíveis colocadas em relevo pelos censores do Documento de Aparecida é a renovação do Concílio Vaticano II, em grande medida, um processo pendente, sobretudo com a “involução eclesial” das últimas décadas. A batalha em torno da hermenêutica dos documentos do Concílio é a expressão de um mal-estar criado por setores mais conservadores da Igreja, arraigados a uma postura apologética frente ao mundo moderno, nostálgicos de um passado sem retorno. Com posturas ainda mais fechadas, segmentos tradicionalistas têm fundamentado sua eclesiologia numa cristologia docetista3, divinizando a Igreja, quando o Vaticano II resgatou também seu caráter histórico e humano, estabelecendo uma distinção ou permanente tensão entre carisma e instituição. Como diz Mircea Eliade (1980), a religião é uma instituição hierofânica, na medida em que seu objetivo é transparecer o divino através do humano, sem que jamais o humano pretenda tomar o lugar do divino, sob pena de eclipsá-lo. Além do divino, o humano é constitutivo da Igreja e, portanto, como afirma a Lumen gentium, além de santa, a Igreja é também pecadora. H. de Lubac (cf. 1988, p. 99-102), resgatando os Santos Padres, fala da Igreja como uma casta meretrix. Por isso, o lema de Calvino — ecclesia semper reformanda, que o Vaticano II assume em Unitatis redintegratio (UR 6).

Nesta perspectiva, a Conferência de Santo Domingo irá falar de “conversão pastoral” da Igreja e, Aparecida, além desta, também de “conversão eclesial” ou de reforma das estruturas da Igreja, que segundo os Bispos, muitas delas caducas. Por ocasião do Jubileu do ano 2000, o papa João Paulo II, tal como expressou em Ut unum sint (2005), Tertio millennio adveniente (1994) e Novo millennio ineunte (2001), quis fazer um solene pedido de perdão pelos pecados da Igreja, cometidos no decorrer dos séculos. Entretanto, o Papa encontrou a oposição de seus mais próximos, restringido o pedido de perdão pelos pecados cometidos “por filhos da Igreja”.

A autocrítica de Aparecida: sair da Igreja para encontrar Deus

O “texto original” do Documento de Aparecida, em várias passagens, registrava uma autocrítica da Igreja em relação a vários assuntos relativos à sua trajetória histórica. Com relação ao êxodo de católicos, especialmente para movimentos religiosos autônomos de caráter neopentecostal, o “texto original” reconhecia: “Na verdade, muita gente que passa para outros grupos religiosos não está buscando sair de nossa Igreja, mas está buscando sinceramente a Deus”. Sem dúvida, é uma frase forte, uma profunda autocrítica com relação às causas do crescimento das Igrejas pentecostais. Os censores, entretanto, matizaram a crueza da análise, dando à frase a seguinte redação: “… esperam encontrar respostas a suas inquietações. Procuram, não sem sérios perigos, responder a algumas aspirações que, quem sabe, não têm encontrado, como deveria ser, na Igreja” (DAp 225). Na mesma perspectiva, rompendo com uma postura apologética e proselitista em relação aos pentecostais, foi supresso do “texto original”: “Um passo nesta direção é o encontro com interlocutores pentecostais responsáveis e fraternos que partilham a estima, a oração e o estudo” (DAp 233).

Outro aspecto pelo qual os censores revelam dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, também em relação à instituição eclesial, é a questão de pecados “da Igreja” ou de “filhos da Igreja”. Dizia o “texto original”: “A Igreja Católica na América Latina e no Caribe, apesar de suas deficiências e ambiguidades…”. Diz o “texto oficial”: “A Igreja Católica na América Latina e Caribe, apesar das deficiências e ambiguidades de alguns de seus membros…” (DAp 98). Mais adiante, aparecia: “Reconhecemos que, muitas vezes, nós os católicos temos nos afastado do Evangelho…”. Agora, aparece: “Reconhecemos que, em ocasiões, alguns católicos têm se afastado do Evangelho…” (DAp 100). O próprio papa Bento XVI, no Discurso Inaugural de Aparecida, expressou um posicionamento que provocou pronta reação, sobretudo nos meios indígenas e afro-americanos. Falando do processo de evangelização na América Latina, disse: “Com efeito, o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha” (DAp Discurso Inaugural).

A autocrítica papa Francisco: uma Igreja auto-referencial

Ter que sair da Igreja para encontrar a Deus, dialogar com os pentecostais e uma Igreja que se reconhece pecadora e pede perdão pelos seus pecados acometidos em seu itinerário histórico, é inconcebível para os censores do Documento de Aparecida, mas não para o papa Francisco. Tal como fazia menção o “texto original” do Documento de Aparecida, também para o Papa, na Igreja não há apenas pecados pessoais, de alguns de seus membros. Há também pecados estruturais, que requerem permanente conversão da instituição, mudanças em suas estruturas, muitas delas caducas ou ultrapassadas. Desde a primeira-hora de seu pontificado, o Papa tem se referido aos limites de uma Igreja auto-referencial (cf. EG 95), centrada em si mesma, aprisionando o próprio Cristo entre seus muros. Uma Igreja pautada pelo eclesiocentrismo de uma instituição que crê em um único meio de salvação, regida por princípios ideais e integrada por fiéis que se enquadrariam nos inúmeros requisitos pré-estabelecidos pelas leis canônicas. Na realidade, sobram e se toma distância: dos irregulares, em situações que ferem códigos legais; dos que estão nas “periferias do pecado”, considerados perdidos porque impedidos de acesso aos sacramentos; dos que estão “nas periferias da ignorância e da prescindência religiosa”, excluídos como interlocutores dignos de serem levados a sério; dos que estão “nas periferias do pensamento”, desafio aos sistemas teológicos de contornos nítidos e certezas incontestáveis; enfim, dos que estão “nas periferias da injustiça, da dor e de toda miséria”, clamando não pelo julgamento de um juiz, mas pelo regaço de uma mãe (BRIGHENTI, 2014, p. 15). Para o papa Francisco, “a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferia” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 143)4. Ainda como Bispo em Buenos Aires, ele criticava “as pastorais distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais, sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se, dizia ele, a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo (EG 88).

Na Evangelii gaudium, o papa Francisco, ao comparar a “imagem ideal da Igreja” com seu “rosto real”, advoga por uma renovação profunda por meio de uma “conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo” (EG 26). Certas cristalizações de estruturas eclesiais estorvam o dinamismo da evangelização. Para o Papa, este processo de conversão e transformação deve acontecer em todos os níveis eclesiais, principalmente nas dioceses (EG 31) e na Cúria Romana (EG 32).

Um compromisso pendente em relação à trajetória da Igreja na América Latina, era um pedido de perdão pelos seus pecados, cometidos durante a época colonial. Entretanto, durante a Conferência de Aparecida, por mais que os Bispos insistissem, não se permitiu que este ato de contrição fosse registrado no texto conclusivo. Agradável surpresa é ver o papa Francisco, em sua recente visita à Bolívia, dizer com todas as letras: “Alguns podem dizer que quando o Papa fala de colonialismo, ele se esquece de algumas ações da Igreja. Mas eu digo isso a vocês com lamento: muitos pecados foram cometidos contra os povos latinos em nome de Deus. Eu humildemente peço perdão, não apenas pelas ofensas da Igreja em si, mas também pelos crimes cometidos contra povos nativos durante a chamada conquista da América”5. Ainda na Bolívia, no discurso pronunciado durante um encontro de líderes indígenas e com a presença do primeiro presidente indígena do país, Evo Morales, Francisco destacou que, no passado, líderes latino-americanos da Igreja Católica já reconheceram que “graves pecados foram cometidos contra os povos nativos da América em nome de Deus”. E continuou: “Também quero que nos lembremos dos milhares de padres que, com o poder da cruz, se opuseram fortemente à lógica da espada. Houve pecado, e muitos. Mas nunca pedimos desculpas, então, agora peço perdão”, disse, fugindo do roteiro preparado para o discurso.

Com relação às Igrejas pentecostais, que os censores do “texto original” do Documento de Aparecida tenderam a menosprezar, desclassificando-as como interlocutoras e depositárias de valores que questionam a Igreja Católica, o papa Francisco também fez um gesto desconcertante. Por ocasião de sua visita ao Brasil e da Jornada Mundial da Juventude, caminhando pela comunidade de Varginha (Complexo de Manguinhos, zona norte da capital do Rio de Janeiro), o papa Francisco entrou em uma igreja evangélica da Assembleia de Deus, falou com o pastor e demais pessoas ali presentes, os convidando a rezar juntos um Pai Nosso. Na Itália tem feito visita “oficial” a Igrejas pentecostais.

Notas:

  1. Trata-se do trabalho esmeradamente elaborado pelo biblista argentino Eduardo de la Serna e amplamente divulgado nos meios eclesiais, mobilizados em torno às mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida.
  2. Neste particular, diz expressamente a carta do papa Bento XVI: “Ao mesmo tempo que expresso meu reconhecimento pelo amor a Cristo e à Igreja, e pelo espírito de comunhão que caracterizou a Conferência Geral, autorizo a publicação do Documento Conclusivo, pedindo ao Senhor que, em comunhão com a Santa Sé e com o devido respeito pela responsabilidade de cada Bispo em sua própria Igreja local, ele seja luz e alento para um rico trabalho pastoral e evangelizador nos anos vindouros”.
  3. Sobre o docetismo. O termo vem do grego “dokéo”, que significa parecer. Daí o verbo grego “dokein”, que significa “parecer”. O docetismo é o termo que designa uma mentalidade religiosa que deturpa a fé cristão. Para afirmar a divindade de Jesus, os docetistas negava a sua humanidade e, portanto, a seriedade do mistério da encarnação. Ou seja, o Verbo não se fez humano, mas apenas parecia um ser humano; o corpo de Jesus, então, não era, de fato, um corpo humano, mas apenas “parecia” humano aos nossos olhos. Uma “eclesiologia docetista” é aquela que nega a dimensão humana da Igreja. Sendo toda divina, a Igreja é perfeita e, portanto, sem qualquer caráter histórico situado ou com necessidade de conversão.
  4. Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho de 2013.
  5. Pronunciamento feito no dia 09 de julho de 2015, em Santa Cruz de La Sierra, recebendo aplausos dos presentes.

Fonte:

Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.

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O Concílio Vaticano II confirmou a necessidade de avançar na caminhada ecumênica e no diálogo inter-religioso https://observatoriodaevangelizacao.com/o-concilio-vaticano-ii-confirmou-a-necessidade-de-avancar-na-caminhada-ecumenica-e-no-dialogo-inter-religioso/ Tue, 09 Feb 2021 20:20:48 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=38006 [Leia mais...]]]> Em 4 de fevereiro de 2021, completou-se dois anos desde a assinatura do histórico “Documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência em comum” entre o papa Francisco e o grande Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyib. O pacto não se tornou apenas uma pedra miliar nas relações entre cristianismo e islamismo, mas uma bússola para cultura do diálogo, da colaboração comum e do conhecimento mútuo entre diferentes religiões.

Dom Manoel João Francisco, presidente da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso da CNBB.
Foto: Comunicação CNBB.

Aproveitando a data e a proximidade de lançamento da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 (CFE), republicamos uma entrevista concedida ao portal da CNBB, há um ano, pelo  bispo de Cornélio Procópio (PR) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Manoel João Francisco. Na conversa, ele apresentou em quais documentos fundamentais da Igreja se assentam as bases para a promoção do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.

Segundo o bispo, a tentação da separação existiu desde os primórdios da Igreja. Sabendo desta dificuldade, nos disse dom Manoel, Jesus, antes de partir, reza ao Pai, pedindo que seus seguidores se mantenham unidos. “Eu não rogo somente por eles, mas também por aqueles que vão crer em mim pela palavra deles. Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21).

O bispo de Cornélio Procópio informou que no início do movimento ecumênico, no começo do século XX, a Igreja católica não se envolveu. “Pelo contrário se opôs de forma muito dura”, disse. De acordo com dom Manoel, foi só com o Concílio Vaticano II (1962-1965) que aos católicos foi permitido a participação na caminhada ecumênica. “O que era antes proibido e até condenado, a partir do Concílio Vaticano II passou a ser incentivado como ‘sopro da graça do Espírito Santo’ e como ‘sinais dos tempos’ (UR nº 4)”, esclarece.

Segundo o decreto Conciliar Unitatis Redintegratio (UR) a Igreja entende por movimento ecumênico as iniciativas e atividades, suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidade dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos (UR nº 4). “Não há verdadeiro ecumenismo sem conversão interior. É que os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmos e da libérrima efusão da caridade” (UR nº 7)

O Concílio orienta também, segundo o bispo, que “sem dúvida, é necessário que os fiéis católicos, na ação ecumênica, se preocupem com os irmãos separados, rezando por eles, comunicando-se com eles sobre assuntos da Igreja, dando os primeiros passos em direção a eles. Mas, sobretudo, examinem, com espírito sincero e atento, o que dentro da própria Família católica deve ser renovado e realizado, para que sua vida dê um testemunho mais fiel e luminoso da doutrina e dos ensinamentos recebidos de Cristo, através dos apóstolos” (UR nº4).

Outro passo importante, segundo o presidente da Comissão para o Ecumenismo da CNBB, foi dado em 1995, pelo então papa João Paulo II em sua Encíclica “Ut Unum Sint”, na qual em vez da expressão “irmãos separados” ainda presente nos textos do Concílio Vaticano II, restabeleceu a expressão “Igrejas irmãs” (UUS 56), própria do primeiro milênio. Nesta mesma encíclica, João Paulo II pede aos católicos que fujam “do desleixo no empenhamento pela unidade e, mais ainda, da oposição preconcebida ou do derrotismo que tende a ver tudo pelo negativo” (UUS 79).

No documento em preparação ao Jubileu do Ano 2000, “Na Chegada do Terceiro Milênio”, o mesmo Papa, afirmou sua convicção de que o testemunho dos mártires das diversas Igrejas cristãs fala aos nossos dias com voz mais alta do que os fatores da divisão. “A Igreja do primeiro milênio nasceu do sangue dos mártires. (…). No final do segundo milênio, a Igreja tornou-se novamente Igreja dos mártires. (…). O seu testemunho, dado por Cristo, até o derramamento do sangue, tornou-se patrimônio comum dos católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes. (…) O ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o mais persuasivo (TMA 37).

Diferença entre ecumenismo e diálogo inter-religioso

O ecumenismo é o diálogo entre os cristãos que professam a fé em Jesus, na Trindade, no Mistério Pascal, na Redenção, na Graça, enfim, toda a fé do Novo Testamento. Já o diálogo inter-religioso, como a própria nomenclatura sugere, acontece entre as diferentes religiões (budismo, islamismo, judaísmo, xintoísmo, cristianismo etc).

(Os grifos são nossos)

Todos os fieis das diversas religiões creem no amor!

Fonte:

www.cnbb.org.br

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Quais são as opções da Igreja? https://observatoriodaevangelizacao.com/quais-sao-as-opcoes-da-igreja/ Tue, 28 Jan 2020 18:41:11 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34043 [Leia mais...]]]> A Igreja Católica é vista como a instituição que mais influenciou e direcionou os rumos civilizacionais da cultura ocidental. A partir do século IV, depois que o catolicismo se tornou a religião oficial do Estado, com Teodósio, ela chegou a exercer, inclusive, o poder decisivo predominante nas escolhas das pessoas.

Depois da Reforma Protestante, no século XVI, houve muitas rupturas e conflitos religiosos, movidos por interesses religiosos, econômicos, políticos, com o surgimento do Estado Moderno. O Iluminismo potencializou a consciência da autonomia, o primado da razão e a supremacia do sujeito, como medida de todas as coisas. O que, de certa forma, era unificado pela Igreja do século IV até o XVI, com a Revolução Industrial, no século XIX, foi definitivamente subdividido e fragmentado em novas formas de poder, a saber: a autonomia da razão, a força do poder político, o poder de convencimento das ciências, o poder da técnica e, inclusive, o poder de outras possibilidades de ligação com o sagrado. Com isso, a Igreja, sendo uma força entre muitas outras, já não podia exercer da mesma forma seu poder determinante e fazer as opções pelos outros. Pouco a pouco, vai tomando consciência de que ela mesma precisa fazer as suas próprias opções.

Um passo decisivo para a sua nova forma de se relacionar e de estar no mundo moderno, foi dado no Concílio Vaticano II (1962-1965): discernir os sinais dos tempos e fazer um profundo “aggiornamento“, na expressão consagrada pelo papa João XXIII na convocatória do Concílio. Ou seja, era preciso a Igreja abrir suas portas e janelas para o mundo, assumindo postura de diálogo. Era urgente assumir um processo de atualização e de adaptação ao contexto contemporâneo, inserindo-se na vida e na história das pessoas e da sociedade como um todo, nas variadas expressões culturais.

A Igreja, que no Concílio expressou sua autocompreensão enquanto povo de Deus que caminha e sacramento da salvação para o mundo, percebeu que para bem exercer a sua missão era preciso que assumisse postura de escuta e acolhida das dores e alegrias de todos os seres humanos. Trata-se de uma pretensão que em nada fere a sua identidade cristológica. Muito pelo contrário, a Igreja é chamada pelo testemunho de vida nova a irradiar para o mundo, qual prisma, a luz do Amor salvífico de Deus, tal como foi captado na pessoa de Jesus de Nazaré, Filho de Deus. Jesus é acolhido pela Igreja como o sentido e a resposta para os questionamentos mais profundos da existência humana. Ele é a revelação de Deus, que é Amor. Segundo esta hermenêutica do Concílio, a Igreja precisa fazer as suas opções, tendo em vista a precípua missão de evangelizar. A defesa da liberdade religiosa funda-se na ordem da dignidade da pessoa humana e nenhuma crença deve ser imposta por qualquer “pedagogia da ameaça” ou “dialética do medo”.

O papa Francisco vem insistindo na retomada do horizonte e do espírito do Concílio. Vem recuperando a dinâmica de uma Igreja sempre reformando (Igreja em saída, hospital de campanha, de portas abertas, casa da misericórdia), um Igreja com estrutura sinodal, participativa e corresponsável (toda missionária). A Igreja se sabe uma realidade histórica sempre peregrina. Desse modo, a Igreja é chamada a perceber a sua corresponsabilidade na missão de evangelizar. Assim, sem qualquer postura autorreferencial, a ela deve acolher, promover e defender a dignidade de cada membro da humanidade e da justiça social, desde os mais pobres e excluídos, a dialogar com as culturas, as tradições religiosas, as ciências, a economia, a política, as famílias, as pessoas. Desde a sua intrínseca dimensão escatológica (destinada a plenitude junto da comunhão com Deus), a Igreja pode ampliar sua capacidade crítica e autocrítica, aprofundar seu processo de aperfeiçoamento humano e o grau de sua conversão a Deus.

A Igreja não pode temer o seu peregrinar, nem as suas contínuas reformas, pois, tem consciência de que tem apenas um único absoluto e verdadeiro centro, um único princípio e fim, alfa e ômega, em de todas as dimensões. E não é o papa, não são os bispos, não são os padres, não são os religiosos e religiosas, não são os leigos e leigas, não sãos suas estruturas, não são seus sacramentos e não é sua doutrina. Trata-se do próprio Jesus Cristo, que enviado por causa do projeto salvífico do Pai, ressuscitado pela força do Espírito Santo, nela habita. Jesus Cristo precisa ser sempre a opção fundamental da Igreja! E, em Jesus, o Reino de Deus, que Ele veio anunciar-testemunhar com sua própria vida. Essa Igreja, que somos nós povo de Deus, somente consegue fazer esta opção fundamental quando tem os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (Fl 2,5).

O papa Francisco mencionou, em entrevista concedida ao jornal espanhol, El Pais, em 23/01/2017, que a única revolução que deseja para a Igreja é aquela provocada pelo Evangelho. A opção da Igreja é pelo Evangelho do Reino, Evangelho da Fraternidade, Evangelho da Justiça. Os filhos e filhas da Igreja devem ter muita clareza desta orientação fundamental da vida cristã. O Evangelho não é uma ideologia, mas uma pessoa: Jesus Cristo. O Pontífice invoca, nesse sentido, a importância dos santos. Eles compreenderam bem o que significa o Evangelho. A partir desta escolha fundamental, tiveram a força para entender tudo o mais e viveram, em seu tempo, verdadeiramente como cristãos, seguidores de Jesus Cristo. Na Igreja, infelizmente, há muita gente que é muita coisa, menos cristã. Por isso têm muita dificuldade de entender e acolher a missão a que somos chamados no contexto atual. Há um discernimento cristão que precisamos assumir:

  • Quais tem sido as nossas escolhas pessoais, familiares e eclesiais?
  • Onde está o nosso coração: em Deus, no Evangelho e no Reino? Ou na busca a qualquer preço pelo sucesso, pela acumulação de bens e pelo poder sociopolítico?
  • A Igreja tem sido compreendida por nós como um lugar de amar e servir, de assumir a missão de anunciar e testemunhar a vida nova em Jesus Cristo Ou como lugar de poder, de prosperidade econômica, de carreirismo e de mundanismo espiritual?
  • Somos facilitadores da graça de Deus, pelo o anúncio-testemunho do amor de Deus, que nos liberta, conforta e fortalece para uma vida digna de filhos e filhas de Deus já aqui e esperançada na plenitude futura? Ou somos dificultares da experiência da misericórdia de Deus, colocando pesados fardos de uma moralista e infantilizadora religião do dever sobre os ombros já cansados dos pecadores, cujos pés já vacilam na frágil esperança em Deus?

A Igreja só será realmente, sacramento de Salvação, quando nós, os seus filhos e filhas, deixando-se guiar pelo Espírito Santo, fizermos, de fato, a opção fundamental pela conversão a Deus, em Jesus Cristo, e pela fé-compromisso com o Evangelho do Reino. Sabendo que a fé cristã e a opção fundamental são concretizadas e alimentadas pelo cultivo da intimidade com Palavra de Deus e a Eucaristia, numa vida em comunidade de fé e partilha de vida, comprometida com a transformação da sociedade pelos valores do Evangelho. Assim o seja!

Sobre o autor:

Pe. Matias Soares

Pe. Matias Soares é pároco da paróquia de Santo Afonso/Natal-RN e é colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (3) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-3/ Wed, 20 Nov 2019 20:28:31 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33341 [Leia mais...]]]> O Reino de Deus, de promessa no Primeiro Testemento, se fez realidade com Jesus de Nazaré. O Messias esperado o inaugura e o anuncia ao  povo de Israel e aos gentios. Sobretudo por meio de parábolas, o Reino ocupa um lugar central e hegemônico na pregação e na obra do Nazareno.

Entretanto, com sua morte e ressureição, a mensagem por ele propagada é colocada num novo contexto. Como se tem agora de reafirmar que Jesus era o Messias prometido e que ele vive, o pregador tende a tornar-se o pregado e o Reino passará a ser identificado com a Igreja, quando na realidade ela é seu sacramento e mediação.

Da centralidade do Reino à centralidade das virtudes

Diferente dos evangelhos sinóticos, em cujo centro da mensagem cristã está o Reino de Deus inaugurado e pregado por Jesus, particularmente em João e em Paulo, o centro tende a ser o Cristo ressuscitado e a vivência das virtudes.

Prova disso é que o Reino de Deus, colocado na boca de Jesus mais de 100 vezes nos evangelhos, em todos os escritos paulinos aparece apenas 11 vezes. Além disso, foi-se interpretando o Reino segundo a cultura dos interlocutores do anúncio. Por exemplo, além de Paulo deslocar o Reino para o “futuro último”, para além da história (1Cor 6,10), o compreende a partir de categorias “moralizantes” – segundo uma lista de virtudes e vícios, enfatizada pela filosofia popular grega, especialmente o estoicismo. Para Paulo, os que não vencerem tais vícios, “não herdarão o Reino dos céus” (1Cor 6,9).

Enquanto que para Jesus a centralidade da mensagem está no Reino de vida e felicidade para todo o gênero humano já a partir desta vida, em Paulo o centro da mensagem cristã é o pecado e a vitória sobre os vícios, acompanhados de forte apelo ao desprezo da matéria, do corpo, do amor humano e da sexualidade. Com isso, se dá o deslocamento da centralidade do Reino (tema dos evangelhos sinóticos) para a centralidade da virtude (tema da filosofia helenista). 

Isso não quer dizer que Paulo adulterou a mensagem de Jesus. Mas, a passagem do cristianismo do mundo judeu ao mundo helênico contribuiu para uma interpretação do Reino segundo o contexto dos novos interlocutores. E esta compreensão não só entrará no cristianismo, como se tornará preponderante. Isso mostra que a fé transmitida e que chegou até nós, não vem só de Jesus, mas é uma mescla de mensagem evangélica, tradições judaicas do Primeiro Testamento e de fortes doses de cultura helenista ou greco-romana. 

De uma Igreja servidora a uma Igreja absorvedora do Reino

A Igreja no Oriente, conforme atestam os escritos dos Santos Padres, ainda que tenha colocado em evidência uma compreensão do Reino de Deus com traços espiritualistas, sempre o distinguiu da Igreja. Já a Igreja no Ocidente, ao trazer o Reino para a intra-história, tenderá a identificá-lo com a Igreja.

Santo Agostinho vai falar da Igreja como regnum Christi (reino de Cristo) e regnum coelorum (reino dos céus), que neste mundo é regnum militiae (reino militante) e, portanto, aguarda sua consumação na escatologia final. Para ele, a Igreja se identifica com o reino milenário do Apocalipse (Ap 20,4), sendo a última forma da civitatis Dei peregrinans (cidade de Deus peregrinante).

Com isso, a Igreja, em lugar de “sacramento do Reino” e mediadora da salvação de Jesus, passa a ser “absorvedora” e não “servidora” do Reino de Deus. 

Na Idade Média, é a teologia de Santo Agostinho que no plano sócio-político dará suporte ao modelo de cristandade, no qual se vai fazer uma interpretação política do Reino de Deus: na Igreja, o imperador é o “novo Davi”, que toma “as rédeas do senhorio régio”; já o papa é o “novo Moisés”, cuja soberania deriva da participação na realeza de Cristo. Com isso, a Igreja, ao absorver o Reino, se torna autorreferencial, reafirmando que fora dela não há salvação.

Na Reforma protestante, a doutrina de Lutero assume a teologia de Agostinho, enfatizando a existência de dois reinos: o Reino de Deus, um reino espiritual, essencialmente invisível, no seio do qual se dá a justificação pela fé; e, o reino mundano, que é a lei, do qual o cristão deve tomar distância. Por sua vez, para a contra-Reforma, tal como concebe Inácio de Loyola, o Reino de Cristo se identifica com a Igreja, por isso, ela é santa e divina, não peca e não erra: “é sem dúvida impossível que Cristo permita alguma vez em sua Igreja um juízo propriamente errôneo sobre alguma coisa discutida” (Exercícios Espirituais, n. 35). 

Na Idade moderna, como a teologia fica atrelada à concepção de Santo Agostinho, são a cultura e as ciências, em especial a filosofia, que tentam trazer o Reino de Deus do espiritual para o concreto da história. Afirma-se que religião é alienação e que  felicidade e a vida em plenitude dependem de uma nova sociedade fundada na justiça, na paz e no amor, a qual o ser humano deve fazer acontecer com seu trabalho. Crê-se que o futuro está ao alcance da humanidade, nesta vida. O Reino não é de Deus, mas do ser humano e está ao seu alcance, por sua intervenção na história. 

Na Idade contemporânea, a teologia se renova, passa a distinguir novamente Igreja de Reino de Deus e colocar em evidência que o Reino é espiritual e concreto; tem sua plenitude na outra vida, mas começa nesta vida; tem uma dimensão transcendente, mas é também imanente; tem um “ainda não” e também um “já”. 

A teologia latino-americana dirá que o Reino é plenitude de vida e salvação, já a partir desta vida, pois  o fim que se espera, deve-se ir antecipando, o máximo possível na história, cujos destinatários privilegiados, na perspectiva das bem-aventuranças, são os pobres e os excluídos. 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (2) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-2/ Tue, 19 Nov 2019 01:53:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33259 [Leia mais...]]]> O Reino de Deus

Na abordagem do tripé da concepção de Igreja na perspectiva da renovação do Vaticano II – Reino-Igreja-Mundo – comecemos pelo Reino de Deus.

Neste primeiro momento, vamos nos limitar ao que se entende por Reino de Deus na Bíblia. O Reino está bem presente no Primeiro Testamento, desde o tempo da monarquia. Mas, é no Segundo Testamento que o Reino de Deus é apresentado de modo mais claro e consequente para a Igreja.

Nos evangelhos sinóticos, a evocação do Reino de Deus é onipresente. Aparece quase cem vezes na boca de Jesus, enquanto que a Igreja só é mencionada duas vezes e apenas em Mateus (cf. Mt 16,18; 18,17), o que mostra sua preponderância em relação à Igreja. Jesus não pregou Deus, mas o Reino de Deus. O Deus de Jesus é o Deus do Reino.

O Reino de Deus no Primeiro Testamento 

No antigo Oriente, a designação de um deus como “rei” estava muito propagada. A divindade exerce sua soberania sobre seu povo e seu território. Deus é dono do país, outorga prosperidade e bem-estar, corrige e castiga. A queda do reino terreno era a prova de que aquele deus não existia. O reino terrestre é a epifania ou manifestação do deus daquele reino.

No povo de Israel, que vivia neste contexto cultural, é somente a partir do período da monarquia que se começa a chamar Javé de “Rei”. Com a elevação de Jerusalém como sede régia, o titulo “rei” irá substituir títulos mais antigos como “Deus Pai”. Por influência da concepção cananeia, segundo a qual é com a construção de um templo que se demonstra a dignidade régia de Deus, no seio do povo de Israel logo os Salmos irão cantar a realeza de Javé (cf. Sl 47; 93; 96;99), cuja ação criadora é expressão de sua soberania sobre o mundo (cf. Sl 24, 1ss; 96, 5-10). 

Com os profetas, o Reino de Deus passa a ser compreendido como menos terreno e mais escatológico. Em lugar de templo e território, os profetas anunciam o Reino como salvação universal. Isaías alimenta a esperança do povo em um reinado de paz, de um novo Davi sobre Sião. Jeremias fala do Reino como uma nova aliança, pela qual serão transformados os corações (Jr 31,31ss). Outros descrevem o novo reinado de Javé como felicidade consumada, que através de Israel será oferecida a todos os povos (Ez 34, Miq 4; Is 9, 25). Por fim, do Reino de Javé faz parte a supressão da morte (Is 25, 6ss), pois se trata de um Reino escatológico.

No judaísmo tardio, a esperança no reinado de Deus adquire três configurações distintas:

  • a) uma escatologia nacional, em que o Messias esperado aparece como o libertador e fundador político de um Israel novo e justo, como acreditavam os zelotes;
  • b) uma realeza recebida por Israel e oferecida aos gentios, conforme a tradição rabínica;
  • c) o reino como o universo transladado ao céu, tal como apregoava a apocalíptica, em que se calculam as semanas dos anos até o “dia de Javé” (Dn 2,37-45). 

O Reino de Deus no Segundo Testamento 

No Segundo Testamento, o Reino de Deus, que “está próximo” (Mc 1,15; Mt 4,17) ou que está “no meio de nós” com a presença de Jesus, é a realização da promessa do Primeiro Testamento.

Na pregação de Jesus, a soberania de Deus não é o domínio do Criador, mas o reinado escatológico de Deus que, no seio da história, sem transformação cósmica e sem nova constituição política de Israel, já começou. Ele se destina a todos – publicanos e meretrizes, aos enfermos, crianças e pobres (cf. Mc 2,15; 10, 15-16). O Reino de Deus é salvação e não juízo, pois a alegria de Deus é perdoar os pecadores arrependidos (cf. Lc 15). A separação entre bons e maus, só terá lugar no juízo final (cf. Mt 13,24ss). 

As obras de Jesus mostram que o Reino de Deus está presente, no meio de nós. As curas e os exorcismos são sinais da presença histórica do Reino – “Ide dizer a João: os cegos veem, os coxos andam…” (Mt 11,4; Lc 14,18). Consequentemente, Jesus não só anuncia o Reino de Deus como o torna presente. Os discípulos são chamados bem-aventurados, porque ouvem e veem o que muitos profetas e reis desejaram ver e não viram (Mt 13,16). Jesus convida a acolher este Reino que, entretanto, não lhe pertence, mas ao Pai (Lc 12,32; 22,29ss). Só o Pai conhece a hora (Mt 24,36). O Reino tem um caráter consumador da história, definitivo e, como tal, as realidades históricas só podem ser dele sinais imperfeitos, ainda que dele estejam impregnadas. Nem mesmo o grupo dos discípulos e o círculo dos Doze se identificam com a grande família de Deus no Reino dos Céus, pois será integrada por gente vinda “do Oriente e do Ocidente” e que “se sentarão à mesa com Abraão, Isaac e Jacó” (Mt 8,11). 

Na pregação de Jesus, três são as características principais do Reino de Deus:

  • 1. Ele é Boa Nova de luz e vida, é uma semente, um tesouro, uma pérola, em resumo, ele é plenitude para o ser humano, felicidade, o desabrochar total prometido àqueles que viverem segundo as bem-aventuranças (cf. Mt 5), aqui e agora.
  • 2. Ainda que devamos trabalhar para construí-lo (Cl 4,11), não podemos edificá-lo com nossas próprias mãos, pois ele é sempre dom, do qual Deus tem sempre a iniciativa. Ainda que o Reino esteja no meio de nós, sua plenitude é uma realidade escatológica, que começa aqui e se consuma na outra vida.
  • 3. O Reino de Deus é uma realidade coletiva. Ainda que a conversão pessoal seja a porta de entrada, ele tem uma dimensão comunitária. Ele é “paz de Deus”, justiça e amor oferecidos a todos. É comunhão sem fronteiras – “amai vossos inimigos” (Mt 5,44). Consequentemente, nenhum grupo em particular, nem a comunidade dos discípulos, são destinatários únicos das promessas do Reino.  Ele é oferecido a todos, tanto que os que o integram – “virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul…” (Lc 13,29). 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

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O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (1) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-tripe-da-concepcao-de-igreja-do-concilio-vaticano-ii-reino-igreja-mundo-1/ Sat, 16 Nov 2019 00:13:11 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=33230 [Leia mais...]]]> Em uma série de dez artigos, vamos nos debruçar sobre a concepção de Igreja (eclesiologia) do Concílio Vaticano II. É importante revisitar o Concílio, pois, como denunciaram os bispos da América Latina em Aparecida, nos dias atuais, há “algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Vaticano II” (DAp 100b). É um alerta sério, pois estão ao nosso redor modelos de Igreja e modelos de pastoral esclerosados, expressão de um passado sem retorno.

O Concílio Vaticano II não mudou a Igreja, em sua volta às fontes bíblicas e patrísticas, apenas resgatou o modelo de Igreja neotestamentário, que se havia perdido de vista, desde o início da Idade Média, situando-o no tempo presente. 

Não vamos abordar, aqui, a eclesiologia do Vaticano II como um todo. Vamos nos restringir ao tripé que lhe dá fundamento, que é o trinômio Reino-Igreja-Mundo. Concretamente, faremos uma abordagem teológica e pastoral de cada uma destas categorias, para depois relacionar a Igreja com o Reino de Deus e também com o Mundo. 

A Igreja como “gérmen e princípio” do Reino

Depois do Concílio Vaticano II, já não se pode conceber o “ser” e a “missão” da Igreja, fora do trinômio Reino-Igreja-Mundo. A Igreja, em seu modelo neotestamentário, está intrinsicamente unida ao Reino de Deus e ao Mundo. Por um lado, a Igreja é sacramento do Reino e, por outro, está inserida no mundo, onde precisa torná-lo presente. Não é o Reino e o mundo que estão na Igreja, mas é a Igreja que está no Reino de Deus e no mundo.

Com relação à Igreja enquanto parte do Reino, diz o Vaticano II:

… a Igreja, enriquecida com os dons de seu fundador, observando fielmente seus preceitos de caridade, de humildade e de abnegação, recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em meio a todas as pessoas, e constitui na terra o gérmen e o princípio deste Reino” (LG 5,2).

E, enquanto parte do mundo, afirma o Concílio:

… a Igreja existe neste mundo e com ele vive e age” […] “composta de pessoas membros da cidade terrestre, chamadas a formarem já na história do gênero humano a família dos filhos de Deus” (GS 40, 1-2). 

Assim, dado que o Reino é símbolo dos desígnios do Criador para toda a Criação, a Igreja também se remete ao mundo, para nele contribuir com a edificação de um Reino que a transcende. Da mesma forma que não há Igreja sem Reino de Deus, também não há Igreja fora do Mundo. Pretender colocar-se fora do Mundo, é continuar dentro dele de forma alienada. E mais que isso, além de não poder sair do Mundo, a Igreja existe para a “salvação do mundo”. Segundo o papa Francisco, a Igreja existe para evangelizar, que consiste em “tornar presente o Reino de Deus no mundo” (EG 72).

O eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo

Foi no tripé Reino-Igreja-Mundo que nasceu a Igreja de Jesus, sob o dinamismo do Espírito em Pentecostes, e deste modo se fez presente em seu caminhar histórico, até o final do século IV. Entretanto, por razões que veremos mais adiante, a partir do século V, gradativamente, deu-se na Igreja o eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo (fuga mundi), que se prolongou até a realização do Vaticano II.  

Com a volta às fontes bíblicas e patrísticas, o Concílio resgatou o modo de ser Igreja segundo o modelo normativo neotestamentário. De uma Igreja servidora do Reino no mundo, a Igreja tinha se tornado absorvedora do Reino e também do mundo. Tornou-se uma Igreja auto-referencial, quando na realidade ela é o sacramento histórico-salvífico de um Reino que não acontece somente na Igreja como comunidade socialmente constituída pelos batizados. Menos ainda na interioridade secreta da consciência, mas se produz na concretude da realização do amor ao próximo, já a partir deste mundo, apesar da ambiguidade da história, em suas objetivações empiricamente perceptíveis. 

Reino e mundo são constitutivos da Igreja

O Concílio Vaticano II pôs em evidência que o Reino de Deus é mais amplo do que a Igreja e está presente para além de suas fronteiras. A Igreja é uma de suas mediações, ainda que privilegiada, pois dispõe dos sacramentos e da Palavra Revelada, mas não a única. Consequentemente, enquanto servidora de um Reino que ultrapassa suas fronteiras, seu raio de atuação vai além do espaço intra-eclesial, abarca o mundo.  A Igreja existe para testemunhar e edificar o Reino de Deus no mundo, juntamente com outras Igrejas, religiões e pessoas de boa-vontade. 

Assim, como gérmen e princípio do Reino de Deus na concretude da história, a missão da Igreja não é deste mundo, mas se dá “no” mundo e “para” o mundo. O cristão não é tirado do mundo, ao contrário, é chamado e enviado para a salvação do mundo. Dado que Deus enviou seu Filho para salvar o mundo, a Igreja só é mediação da salvação de Jesus Cristo no mundo, na medida em que, com sua ação evangelizadora, o assume e contribui com sua redenção. Consequentemente, o mundo não é indiferente ao cristão, nem exterior ou separado de uma suposta “vocação celestial”, pois é no mundo que acontece a salvação. Só quando a Igreja se encarna no mundo, torna-se sacramento da salvação do mundo, que é o Reino de Deus, que começa neste mundo e encontra sua plenitude no outro mundo vindouro. 

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org

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Sinodalidade é a grande novidade e também o desafio de Francisco. Ele assumiu a “teologia pastoral” de João XXIII e do Concílio Vaticano II. https://observatoriodaevangelizacao.com/sinodalidade-e-a-grande-novidade-e-tambem-o-desafio-de-francisco-ele-assumiu-a-teologia-pastoral-de-joao-xxiii-e-do-concilio-vaticano-ii/ https://observatoriodaevangelizacao.com/sinodalidade-e-a-grande-novidade-e-tambem-o-desafio-de-francisco-ele-assumiu-a-teologia-pastoral-de-joao-xxiii-e-do-concilio-vaticano-ii/#comments Fri, 11 Oct 2019 21:16:27 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32329 [Leia mais...]]]> Entrevista com o teólogo alemão Peter Hünermann

O teólogo Peter Hünermann analisa que o Papa busca claramente constituir as conferências episcopais de forma que realmente ponha em prática o Concílio Vaticano II

(Por João Vitor Santos | Tradução: Luís Marcos Sander)

Desde que assumiu o trono de Pedro, Jorge Mario Bergoglio vem trabalhando para dessacralizar e retirar o tom absolutista da figura do pontífice. “A monarquia moderna, ‘pura’, isto é, absoluta, leva ao caos”, diz o teólogo Peter Hünermann, ao afirmar que Francisco tem clareza disso. Por isso, na sua opinião, o atual Papa vem trabalhando para demonstrar que o líder da Igreja não precisa estar envolto numa áurea mítica. É verdade que o Papa adota vestes e acessórios mais modestos, evita desperdícios, mas…

Para Hünermann, a grande marca, a novidade em Bergoglio, é a sinodalidade. Conceito que, aliás, traz do Concílio Vaticano II e que insiste em trabalhar com o episcopado:

Em sua grande alocução para o jubileu em torno da instalação do Sínodo dos Bispos em Roma em outubro de 2015, o papa Francisco tratou extensamente da sinodalidade na Igreja, mostrou seu fundamento teológico e falou da necessidade de introduzi-la em todos os níveis da Igreja… [Para o Papa] é impossível tratar o povo de Deus como sujeito meramente passivo a ser instruído por ministros”.

O problema é que mexer nas formas institucionalizadas gera desacomodações e, logo, resistências. “Claramente os maiores desafios com que o papa Francisco se depara: trata-se das formas de institucionalização das inovações”, avalia o teólogo na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E adverte:

No episcopado mundial e entre os cardeais existe um pequeno grupo de bispos que defendem uma teologia semelhantemente tacanha e tradicionalistaSe as conferências episcopais não estiverem constituídas de forma sinodal e dotadas das respectivas competências, a Igreja atual não pode trilhar o caminho pelo qual a vontade de Deus quer guiar a Igreja hoje em dia… O número de escândalos eclesiásticos vai continuar na Igreja se não se implementar a sinodalidade junto com suas competências de controle e decisão”.

Confira a entrevista:

1. Como o senhor tem apreendido esses cinco anos do pontificado de Francisco? Quais temas avançaram e quais ainda não evoluíram o quanto se esperava?
Peter Hünermann – O papa Francisco deu impulsos espirituais, pastorais e teológicos substanciais e reavivou o espírito do evangelho. Isso se mostra bem claramente na atuação pública do Papa, como nos documentos publicados. Menciono apenas Evangelii Gaudium, Amoris Laetitia , Laudato Si‘ , a grande alocução por ocasião do jubileu do Sínodo dos Bispos em Roma sobre o tema da sinodalidade como caminho da Igreja no terceiro milênio, o texto recente sobre a santidade. A isso se acrescentam decisões práticas: a nomeação do conselho de nove cardeais, a consulta ao povo de Deus sobre o Sínodo dos Bispos em Roma etc. Aconteceu muitíssima coisa, e o papel do Papa assumiu uma outra forma.

2. O que reside dos pontificados anteriores em Francisco? E que novidades de fato ele traz?
Peter Hünermann – O papa Francisco assumiu a “teologia pastoral” de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Ele já a tinha defendido de modo muito incisivo publicamente em Aparecida: “Pastoral não constitui o oposto de ‘doutrinal’, mas compreende a dimensão doutrinal, e tampouco é uma mera aplicação de um tipo prático e contingente de teologia. A própria revelação – e por isso toda a teologia – é pastoral no sentido de que ela é a palavra da salvação, palavra de Deus para a vida do mundo.

Neste sentido, para o Papa – assim como para o Concílio Vaticano II – as doutrinas teológicas transmitidas devem ser submetidas a uma avaliação crítica no respectivo contexto pastoral contemporâneo. “Ao observarmos a história, vemos que as formas religiosas do catolicismo se modificaram de modo evidente. Basta pensar, por exemplo, no Estado eclesiástico, em que o poder secular estava indissoluvelmente ligado com o poder espiritual. Isso era uma deformação do cristianismo, não correspondendo nem ao que Jesus queria e nem ao que Deus queria. Se ao longo da história a religião pode passar por mudanças tão grandes, por que não se haveria, então, de pensar que ela pode se adaptar à cultura dos tempos também no futuro?

3. Quais as fragilidades dessa sua teologia?
Peter Hünermann – No tocante aos pontos fracos de sua “teologia pastoral” – isto é, de sua atividade doutrinal e sua “política eclesiástica” ou prática de direção da Igreja –, sente-se falta da necessária “consolidação institucional” de suas iniciativas. Existem muitos exemplos disso:

a) O Conselho dos oito cardeais tem, juridicamente, a forma de uma comissão ad hoc. Sua tarefa e função foram esboçadas à mão pelo papa Francisco em um bloco de anotações. Será que, do ponto de vista do direito eclesiástico, uma decisão importante é “institucionalizada” dessa maneira? Já durante o pontificado de João Paulo II , e mais concretamente ainda no pontificado de Bento XVI , todo observador via claramente que o Papa não pode dirigir a administração do Vaticano sem um Consistório permanente – o paralelo histórico ao Santo Sínodo dos patriarcas orientais. A monarquia moderna, “pura”, isto é, absoluta, leva ao caos.

b) Em Amoris Laetitia, o papa Francisco apresentou uma visão da compreensão sacramental do matrimônio apoiada no Vaticano II e, assim, corrigida em termos teológicos e pastorais. Essa não é mais a visão de Pio XI, Pio XII e Paulo VI, que se ativeram todos à Casti Connubii e à doutrina lá proposta. João Paulo II só trouxe um pequeno aprofundamento em Familiaris Consortio, mas, assim como Bento XVI, ateve-se a um conceito natural de matrimônio que é, a rigor, fundamentalista, por ser a-histórico. Com isso, o cerne de Casti Connubii ficou intocado. Esta encíclica nega todo desenvolvimento sociocultural e a história do matrimônio. As afirmações do Antigo Testamento sobre a poligamia não são levadas a sério, e as diversas passagens neotestamentárias são niveladas. Essa compreensão marca as afirmações do CIC – Código de Direito Canônico, de 1983. Neste ponto seria preciso mudar as afirmações do CIC.

4. Quais os desafios do pontificado?
Peter Hünermann – Os exemplos acima aduzidos na área doutrinal e jurídico-prática mostram claramente os maiores desafios com que o papa Francisco se depara: trata-se das formas de institucionalização das inovações. Que no episcopado mundial e entre os cardeais existe um pequeno grupo de bispos que defendem uma teologia semelhantemente tacanha e tradicionalista como a do arcebispo condenado Lefebvre, é um fato com o qual o papa Francisco tem de contar.

5. Qual o papel de Joseph Ratzinger nos processos de reforma da Igreja Católica do século XX? E em que medida esse seu papel incide sobre o pontificado de Francisco?
Peter Hünermann – No tocante à recepção do Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger está alinhado com Paulo VI e João Paulo II. Todos eles são de opinião que o Vaticano II complementa a tradição doutrinária do Segundo Milênio, de modo que o antigo e o novo coexistem. Isso se manifesta claramente – para Paulo VI – no Credo do povo de Deus . Ele foi esboçado por Maritain a pedido de Paulo VI e revisado pelo próprio Papa. Também deveria ampliar a Professio fidei que estava em vigor e fora enriquecida por acréscimos do Vaticano I . Entretanto, esse credo não é recebido.

Por ocasião da abertura do grande Sínodo de Cracóvia para a implementação do Concílio em 1972, Karol Wojtyla declara expressamente que “o Concílio não se ocupou com todo o conteúdo de nossa fé e não reuniu todas as verdades e as formulou em um credo. Isso só aconteceu depois do Concílio por parte de Paulo VI, que, em 30 de junho de 1968, proclamou o Credo do povo de Deus fazendo explicitamente referência ao magistério conciliar. Esse credo mostra claramente que a doutrina do Concílio Vaticano II, concentrada na realidade da Igreja, deve ser inserida de modo orgânico em toda a herança da fé e, consequentemente, na doutrina de todos os concílios precedentes e ensinamentos papais”. Essa hermenêutica também determina a ação magisterial e político-eclesiástica do Papa polonês.

Em muitas de suas decisões político-eclesiásticas e textos magisteriais, Bento XVI corroborou essa forma “aditiva” de lidar com a tradição doutrinal do Segundo Milênio e os novos enunciados do Vaticano II. Basta pensar na maneira como ele lidou com a Fraternidade de São Pio e na coexistência de dois ritos litúrgicos na Igreja latina.

Dimensão trágica

Existe uma dimensão trágica profunda no fato de que, até o fim de seu pontificado, Bento XVI não percebeu como o Concílio Vaticano II fez resplandecer de maneira nova o mistério de Cristo, a origem instituidora da Igreja. Como? Pela forma como leu o Antigo e o Novo Testamentos e incluiu a teologia do 1º e do 2º Milênios em suas reflexões críticas. Com isso, o Concílio introduziu uma reflexão moderna e, ao mesmo tempo, autêntica da fé.

Não há necessidade de comentar que esse legado representa uma dificuldade para o papa Francisco, assim como o grande esforço que Francisco faz para destacar constantemente textos de João Paulo II e Bento XVI em sua importância e seu significado. Ele atribui grande valor à demonstração da continuidade no marco da visão geral modificada. Por outro lado, causou uma impressão estranha na Alemanha o fato de que, no réquiem pontifical na catedral de Colônia por ocasião da morte do Cardeal Meisner – após a leitura da carta de condolências do papa Francisco por parte do núncio – o Sr. Arcebispo Gänswein leu em voz alta uma carta de Bento XVI . Essa carta foi vivamente aplaudida por muitos dos dignitários de postura tradicionalista presentes, como, p. ex., o ex-bispo de Limburg, Tebartz van Elst .

6. Quais os maiores desafios de Francisco no que diz respeito à Cúria Romana? E como compreender as resistências ao pontífice dentro da Cúria e no episcopado de diversos lugares do mundo?
Peter Hünermann – Em sua grande alocução para o jubileu em torno da instalação do Sínodo dos Bispos em Roma em outubro de 2015, o papa Francisco tratou extensamente da sinodalidade na Igreja, mostrou seu fundamento teológico e falou da necessidade de introduzi-la em todos os níveis da Igreja. Segundo ele, é impossível tratar o povo de Deus, que foi distinguido pelo Espírito Santo com o sensus fidei, que não se engana, e tem parte na missão profética de Jesus Cristo, como sujeito meramente passivo a ser instruído por ministros.

Nesse sentido, o Papa faz referência especial às conferências episcopais. Em seu peso prático, elas substituíram as antigas províncias eclesiásticas dirigidas por seu respectivo arcebispo. Se as conferências episcopais não estiverem constituídas de forma sinodal e dotadas das respectivas competências, a Igreja atual não pode trilhar o caminho pelo qual a vontade de Deus quer guiar a Igreja hoje em dia. Este é um claro ponto programático do Papa para seu pontificado, e eu vejo nisso uma forma bem fundamental de realização do Concílio Vaticano II. Permito-me apontar que o número de escândalos eclesiásticos vai continuar na Igreja se não se implementar a sinodalidade junto com suas competências de controle e decisão.

7. Deseja acrescentar algo?
Peter Hünermann – Oro para que o papa Francisco tenha colaboradores realmente competentes e dotados de lealdade e perspicácia crítica e que ele próprio ainda possa atuar de modo abençoado durante alguns anos para fazer com que as iniciativas de seu pontificado amadureçam de maneira adequada.

Sobre o entrevistado:

Prof. dr. pe. Peter Hünermann

Peter Hünermann é teólogo alemão, professor aposentado de Dogmática Católica na Universidade Eberhard Karls de Tübingen, na Alemanha. Também lecionou Dogmática na Westphalian Wilhelms, em Münster. É autor de muitos livros de teologia.

Fonte:

IHU

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