Christoph Theobald – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 08 Jan 2019 19:10:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Christoph Theobald – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 O ensino social da Igreja segundo o papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/o-ensino-social-da-igreja-segundo-o-papa-francisco-2/ Tue, 08 Jan 2019 19:10:18 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=29720 [Leia mais...]]]> Evangelii Gaudium (2013) e Laudato Si’ (2015) completam-se mutuamente… Estes documentos apelam à experiência concreta e unificam a esfera social com a mensagem evangélica. Nesse sentido, expressam um novo jeito de compreender o ensino social da Igreja, ao congregar os processos de transformação social com conversão espiritual.

Pela sua importância pastoral, o Observatório da Evangelização compartilha novamente aqui e na íntegra o importante artigo do teólogo Christoph Theobald da Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres (Tradução: Vanise Dresch), publicado nos Cadernos de Teologia Pública do IHU. Vale a pena ler…

O ensino social da Igreja segundo o papa Francisco

O ensino social da Igreja ocupa lugar decisivo nos dois grandes textos do papa Francisco de que dispomos atualmente; ocupa um capítulo inteiro da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013) – o capítulo 4, que se intitula “A dimensão social da evangelização” – e encontra-se no centro da Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, que, em seu número 15, afirma explicitamente que “esta carta encíclica se insere no magistério social da Igreja”. Esses dois textos completam-se um ao outro, como veremos, e o segundo remete diversas vezes ao primeiro.

Lanço a hipótese de que, nos escritos de Francisco, a expressão comum “ensino social da Igreja” ou “magistério social da Igreja” muda de significado. Ao dirigir-se, em Evangelii Gaudium, a “cada cristão, onde quer que esteja” (EG, 3), e, em Laudato Si’, a “cada pessoa que habita neste planeta” (LS, 3), o Papa adota um estilo inédito: dá atenção à experiência concreta dos crentes e dos humanos que somos; não faz um apelo apenas à nossa inteligência, mas também à nossa afetividade, aos nossos sentidos e ao nosso coração, possibilitando assim verdadeiras decisões e ações individuais e coletivas. Em suma, graças ao estilo de seus textos, tão semelhante à sua maneira de se dirigir oralmente aos seus interlocutores, ele nos faz trilhar um verdadeiro percurso “espiritual”, um percurso de conversão.

Essa mudança de estilo não faz parte de um simples cenário, se assim posso dizer; também não é uma simples concessão ao nosso espírito pós-moderno. Ela está refletida nos próprios textos. O emprego frequente do vocábulo “estilo” – vinte e duas vezes em Evangelii Gaudium e dezoito vezes em Laudato Si’ – demonstra que, com Francisco, essa noção entra no próprio ensino social e, tornando-se nele um elemento essencial, lhe confere uma nova forma.

Proponho-me então, daqui em diante, a explicar e embasar essa tese. Veremos, primeiramente, que a forma ou o estilo dos textos – seu modo de nos implicar num percurso de conversão – exige uma unificação, até mesmo uma concentração teológica do ensino social da Igreja; esse é o primeiro aspecto que abordarei. Passarei, em seguida, ao ensino propriamente dito, cuja admissibilidade universal requer, hoje, um interesse novo por aquilo que, em nossa existência social, é infinitamente concreto, portanto, diverso e plural. É justamente nesses pontos que a Exortação e a Encíclica se distanciam da Constituição Gaudium et Spes do Vaticano II, que, até agora, determinava todo o ensino social da Igreja. Por último, mostrarei o sentido efetivo que o Papa dá à expressão “ensino” ou “magistério social” da Igreja, conteúdo das evoluções que terei explicado.

I. O Evangelho do Reino de Deus

O “social” como dimensão intrinsecamente ligada ao Evangelho

O primeiro gesto do Papa consiste, então, em unificar o ensino da Igreja, sentido por muitos de nossos contemporâneos como muito complexo, e concentrá-lo no único anúncio do Evangelho do Reino de Deus. Embora Evangelii Gaudium trate disso em dois capítulos sucessivos – os capítulos 3 e 4 da Exortação –, o ponto decisivo e original é o fato de que a dimensão social não é acrescentada ao Evangelho, mas tem com ele uma relação interna e lhe é intrínseca.

Isso se destaca claramente nos nº 177 e 180. O primeiro – trata-se do segundo número do capítulo 4 – estabelece essa relação de maneira principial e partindo do querigma neotestamentário: “O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros” (nº 177). O nº 180 fundamenta esse compromisso em maior medida na matriz bíblica: “Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. […]A proposta é o Reino de Deus (Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.” O essencial da dita doutrina social da Igreja é recapitulado nessa breve passagem e remete ao cerne mesmo do Evangelho do Reino de Deus.

Precisamos então nos perguntar como esse Evangelho do Reino pode penetrar efetivamente em nossa realidade social, econômica e política. É exatamente aqui que surge o vocábulo “estilo”. Em Evangelii Gaudium, o vocábulo encontra-se em vários campos de significação, sendo o dos “estilos de vida” que formam o núcleo de nossas “culturas” o mais frequente e o mais importante. Essa noção é definida no texto nos seguintes termos: “Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus” (EG, 115). Observemos desde já a função estrutural atribuída aqui a um triplo jogo relacional entre os humanos, as outras criaturas e Deus; jogo relacional esse que só terá seu pleno significado na Encíclica Laudato Si’ (LS, 66). Retomarei isso mais adiante.

Na pluralidade cultural – o texto distingue, por exemplo, os “estilos das cidades” dos “estilos rurais” (EG, 72) –, introduz-se logo uma diferença discriminatória entre, de um lado, um “estilo de vida que exclui os outros” (EG, 54), “que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares” (EG, 67), em suma, “um estilo individualista” próprio dos pagãos (EG, 195), e, de outro lado, “um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra” (EG, 208). O critério de discernimento é claramente apresentado no que Evangelii Gaudium chama de “estilo de vida do Evangelho” (EG, 168), em cujo cerne encontra-se a gratuidade ou “o princípio da primazia da graça” (EG, 112), portanto, a alegria (2). Esse estilo encontra sua forma última no itinerário de Jesus, evocado várias vezes, “a entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida” (EG, 269).

Evangelii Gaudium distingue, portanto, dois planos diferentes: de um lado, nossos “estilos de vida”, constitutivos de nossas culturas, e, de outro, sua especificação cristã – “o estilo de vida do Evangelho”. Retomando a mesma distinção, a Encíclica Laudato Si’ radicaliza seu diagnóstico: em conformidade com sua finalidade ecológica, ela distingue um “estilo consumista” (LS, 204), com seu “modo de produção e consumo” (LS, 23 e 59), de um “novo estilo de vida” (LS, 16) que, em relação ao paradigma dominante da tecnologia, adquire feições necessariamente anticulturais (LS, 108).

A análise torna-se aqui mais sutil, especialmente no capítulo 3 de Laudato Si’, que examina “a raiz humana da crise ecológica”. Inspirando-se muito no filósofo e teólogo alemão Romano Guardini (3) e, sem dúvida, embora sem nomear, em Ivan Illich e a Escola de Frankfurt, o Papa critica “o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento num paradigma homogêneo e unidimensional” (LS, 106). O reducionismo que ele denuncia tem suas raízes na relação que mantemos com nossos objetos: “É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder” (LS, 107). O resultado disso é “a imposição de um estilo de vida hegemônico ligado a um modo de produção” (LS, 145), a dominação tecnocrática global exercida por um pequeno número até mesmo “sobre a economia e a política” (LS, 109), de modo que: “Tornou-se anticultural a escolha de um estilo de vida cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador” (LS, 108).

Cuidar da fragilidade

É nesse contexto conflituoso que, voltando então ao Evangelho do Reino de Deus, o Papa explica a especificidade cristã do estilo de vida alternativo que ele implica. Podemos resumir suas palavras no apelo a cuidar da fragilidade” (EG, 209-216), pois esse apelo diz respeito à dupla fragilidade apontada por Francisco, a dos pobres e a da terra; e em Evangelii Gaudium, é justamente a figura de São Francisco que orienta todo o seu discurso, desde suas reflexões bíblicas e históricas sobre o ensino social da Igreja, no início do capítulo 4 (EG, 183) e no fim do desenvolvimento sobre a integração social dos pobres (EG, 216). Tudo está contido nesses trinta números, inclusive o cuidado com a casa comum, que será tratado em maior amplitude em Laudato Si’: “Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados – são os termos com os quais o Papa resume seu percurso – a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos” (EG, 216).

1. No que diz respeito à primeira ênfase, o papa Francisco se posiciona numa conscientização que já remonta ao início do Concílio Vaticano II, quando ela foi defendida por um grupo de bispos denominado “Igreja dos Pobres”, em que estes deviam ser considerados pela Igreja os destinatários e sujeitos privilegiados da evangelização (4). O Cardeal Lercaro, com Dom Helder Câmara e o patriarca Máximos IV, um dos fundadores desse grupo conciliar, queria até mesmo ter feito disso o eixo do Concílio, como se depreende de seu longo discurso de 06 de dezembro de 1962 (5). Isso não aconteceu, mas esse grupo formado por cerca de 40 bispos conseguiu, ao menos, incluir esse tema em vários textos conciliares, principalmente em Lumen Gentium, n° 8, em Gaudium et Spes, n° 1, e em Ad gentes, n° 3. O mesmo tema será explicitamente retomado em 1975 pela Exortação de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (n° 6s.), que pode ser considerado o texto “mãe” da Exortação Evangelii Gaudium.

A cena messiânica de Lucas 4, que mostra Jesus, o ungido, anunciando o Evangelho aos pobres, é a matriz principal dessa intuição que liga, segundo Lercaro, o Evangelho eterno à maior atualidade histórica. É essa mesma visão que Evangelii Gaudium retoma em seu capítulo 4. Cabe ressaltar, no entanto, que a Exortação inverte a orientação da evangelização, convidando os cristãos, já no capítulo anterior, a aceitar “que os outros nos evangelizem” (nº 121). Isso se concretiza destacadamente quando é preciso “ouvir o clamor dos pobres”, integrá-los plenamente na sociedade e reservar-lhes um lugar privilegiado no meio do povo de Deus (Nº  187-196).

2. Iniciando com o cântico de Francisco de Assis, Laudato Si’ pretende promover a mesma experiência de escuta: “‘Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verdor’. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (LS, 1 e 2). A relação entre essas duas experiências, a escuta do clamor dos pobres e a do clamor da terra, dá à Encíclica sua especificidade, preparada pelos números já citados de Evangelii Gaudium: “Hoje, não podemos deixar de reconhecer – destacando o primeiro capítulo de Laudato Si’ que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS, 49).

Do Evangelho do Reino de Deus ao Evangelho da Criação

Sem fazer qualquer antecipação acerca da intervenção de Grégoire Catta, que trata justamente dessa relação decisiva no pensamento social do papa Francisco, observemos que é novamente e em primeiro lugar a Escritura que possibilita estabelecer essa relação. Enquanto Evangelii Gaudium parte do “Evangelho do Reino de Deus”, Laudato Si’ dedica todo o segundo capítulo ao “Evangelho da Criação”. Na verdade, o primeiro – o Evangelho do Reino de Deus – não pode existir sem o segundo – o da Criação –, que o antecede ligeiramente, pois Deus reina no mundo, na terra que ele mesmo criou, e quando for efetivamente recebido pelos homens, a vida social “será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG, 180).

Já no Gênesis, na verdade, encontramos uma prefiguração da ligação intrínseca entre nossas relações com a natureza e com a fraternidade e a justiça. Francisco ilustra isso com a narração de Caim e Abel e a de Noé: “O descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo” (LS, 70).

Nesse número decisivo, encontramos a estrutura relacional do ser humano em sua pluridimensionalidade, já mencionada no início, em inter-relação com a compreensão da cultura. Sejam três (EG, 115 e LS, 66) ou quatro tipos de relação, como no comentário das narrações de Caim, Abel e Noé, em que é acrescentada a relação consigo mesmo, o essencial está na ideia de que o “rompimento dessas relações” ou sua deterioração, ao que se denomina “pecado”, espera por uma cura e uma restauração, para as quais Francisco apresenta o caminho em seus dois textos.

Para concluir esta primeira parte de minha apresentação:

O primeiro gesto do papa Francisco foi, portanto, promover uma unificação teológica do ensino social da Igreja pela sua inserção na narrativa bíblica entre a Criação e o Reino de Deus estabelecido nesse mundo criado. A dimensão social está aí inserida desde o início: ela consiste na tripla ou na quádrupla relação do homem, sendo que sua relação com a terra é com muita frequência esquecida pelos próprios cristãos. A perversão dessa relação vital pelo homem está em “estilos de vida” unidimensionais que se tornaram, hoje, hegemônicos. A Escritura nos conclama a denunciá-los, a introduzir o “estilo de vida do Evangelho” em nossas culturas como alternativa vital e a fazer isso numa perspectiva de cura da vida.

Isso nos leva agora a dar um segundo passo.

II. Dar espaço ao que é “concreto” e diverso: da dimensão social do Evangelho ao ensino social da Igreja

Não basta, de fato, permanecer no plano da Escritura, é necessário, também, tirar dela um ensino que possa ser ouvido e recebido por todas as mulheres e por todos os homens “de boa vontade, como já dizia João XXIII em sua Encíclica Pacem in Terris, de 1963 (citada por Francisco já no início de Laudato Si’, 3). Para isso, ainda no mesmo capítulo 4 de Evangelii Gaudium e na transição entre as duas partes desse capítulo, o Papa propõe quatro princípios que (cito textualmente o número 221) “orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro”. Esses quatro princípios, todos eles retomados em diversas passagens de Laudato Si’, permitem compreender a distância que nos separa hoje da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Vaticano II e de seu antropocentrismo subjacente, fornecendo, ao mesmo tempo, uma base para o “diálogo social como contribuição para a paz”, tema tratado na segunda parte do mesmo capítulo 4. Retomo sucintamente esses três pontos.

Quatro princípios

Os quatro princípios inserem-se, na verdade, no que acaba de ser dito acerca da tripla ou da quádrupla relacionalidade do ser humano, inevitavelmente permeada por “tensões bipolares” (EG, 212 s.) e conflitos. Eis os quatro princípios:

  • 1. O tempo é superior ao espaço.
  • 2. A unidade se sobrepõe ao conflito.
  • 3. A realidade é mais importante que a ideia.
  • 4. O todo é superior à parte.

Essas formulações um tanto abstratas têm, nos dois textos pontificais, ilustrações muito concretas que mereceriam um longo comentário, o qual não poderei tecer aqui. Não retomarei o segundo nem o terceiro princípio, de fácil compreensão, pois expressam ao mesmo tempo a finalidade messiânica de nossa criação – o Reino de paz de Deus, que consiste em superarmos nossos conflitos – e o risco de confundir nossas ideologias ou utopias com o real de nosso cotidiano em que nosso futuro está concretamente em jogo. Reservarei o comentário do primeiro princípio sobre o tempo e o espaço para a última parte deste trabalho e tratarei agora do quarto princípio: “o todo é superior à parte” (EG, 234-237).

Este princípio é acompanhado por uma comparação entre duas metáforas, comparação essa que nos faz compreender a escolha consciente e pensada do vocabulário estilístico. São as metáforas da esfera e do poliedro, que Evangelii Gaudium considera como duas maneiras de representar as relações entre um “todo” e suas “partes”; nesse sentido, elas nos permitem entender tanto a mutação do “doutrinal” numa concepção estilística da fé como a distância tomada pelo Papa em relação à Gaudium et Spes:

O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, […] é necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. […] Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.

Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. […]

A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. […] O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino (EG, 235-237).

Para ilustrar o que foi dito, podemos comparar a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual com a Exortação. Os diferentes capítulos da segunda parte de Gaudium et Spes representam dimensões do humano que formam um todo; são, por assim dizer, projetadas sobre uma esfera – “a antroposfera” ou “antropoceno” (segundo Gaudium et Spes, 2 § 2) – onde se encontram lado a lado, desde o casamento até a paz em todo o planeta, a Igreja estando no meio dessas realidades, logo, na superfície, mas também no centro da esfera, equidistante de cada nível do real, projetando a partir do interior “a luz e a energia” do Evangelho (Gaudium et Spes, 10§ 2) sobre cada realidade e propondo uma regulação doutrinal de sua orientação global, fundamentada na primeira parte do texto que trata da “Igreja e da vocação humana”. O singular, tal ou qual indivíduo, tal ou qual cultura ou língua, tal ou qual povo, não encontra lugar aí, ou melhor dizendo, não é aí considerado objeto de interesse. Estamos antes num universo homogêneo e unidimensional, de acordo com o vocabulário de Laudato Si’, universo dominado não pelo paradigma tecnocrático, mas por uma “doutrina”, embora os dois possam conviver e fortalecer-se mutuamente.

Em compensação, a visão do mundo da Exortação Evangelii Gaudium pode ser compreendida de acordo com o modelo do poliedro. O discurso doutrinal que enfatiza os princípios não perde sua necessária função reguladora, mas nunca conseguirá alcançar “cada cristão, onde quer que esteja” (EG, 3), nem mesmo “cada pessoa que habita nesse planeta” (LS, 3) de acordo com a singularidade de cada um que se relaciona, integrada em conjuntos sociais e ambientais cada vez maiores, mas mantendo sua “originalidade”, segundo a expressão do texto. Somente uma abordagem estilística permite isso, pois é sensível à confluência de todas as partes num dado singular em que essas partes mantêm sua originalidade, sendo, ao mesmo tempo, habitadas pelo todo que é a “plenitude da riqueza do Evangelho”.

O fim do antropocentrismo

Há ainda outra razão, no entanto, na passagem da esfera ao poliedro, que leva o Papa a conceber a realidade de um modo diferente da Constituição Gaudium et Spes: a oposição, hoje necessária, a um “antropocentrismo despótico” ou “desviado” (LS, 68, 69, 118, 119 e 122), que se manifesta especialmente na onipresença do paradigma “tecnocrático” e do “mito do progresso” (LS, 60 e 78), como já foi mencionado anteriormente. É particularmente o terceiro capítulo de Laudato Si’ sobre “a raiz humana da crise ecológica” que se refere a isso. Ele marca com o maior rigor a distância tomada em relação à Constituição pastoral do Vaticano II, que mantinha uma relação mais positiva com o antropocentrismo moderno. Essa distância pode ser resumida nas duas formulações que seguem: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes”, lemos em Gaudium et Spes, 12 § 1. Laudato Si’, 93 faz a seguinte correção: “Hoje, crentes e não crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”.

A Encíclica situa-se, de fato, entre duas posições consideradas extremas, o mito do progresso e aquele que consiste em querer impedir qualquer intervenção do ser humano no ecossistema (LS, 60), entre um antropocentrismo desviado e seu contrário, o biocentrismo (LS, 118): “Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros […]” (LS, 60). Fruto do antropocentrismo moderno e de suas consequências científicas e técnicas, a tomada de consciência da “autonomia legítima” das realidades terrestres (GS, 36 e LS, 80 e 99) não é negada, e sim reposicionada em novo marco, fornecido por uma teologia da criação mais equilibrada. Esta corrige os mal-entendidos resultantes de uma compreensão errada da prescrição feita ao homem de “dominar a terra” (Gn 1, 28), como se essa passagem “favorecesse a exploração selvagem da terra”, ao passo que se trata, na Bíblia, de “cultivar e guardar o jardim do mundo” (Gn 2, 15; LS, 67) (6). A Encíclica não nega que “o pensamento judaico-cristão desmistificou a natureza”, mas não tira a conclusão (que poderíamos atribuir à Constituição pastoral, às voltas com todos os contenciosos entre ciência moderna e fé) de um antropocentrismo unilateral. Ela tenta antes articular o respeito pela fragilidade da terra com “a responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo, com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades (LS, 78).

Pluralismo e diálogo social

A ênfase na pluralidade das culturas e estilos de vida, bem como naquilo que é infinitamente concreto e diverso, sem jamais renunciar ao “todo”, compreendido de maneira poliédrica (se assim posso dizer), leva-nos diretamente à segunda parte do capítulo 4 de Evangelii Gaudium, que trata naturalmente do “diálogo social como contribuição para a paz”. Encontramos ali, certamente, os três ou quatro tipos de relação vital que nos constituem e, sobretudo, os dois planos – nossos “estilos de vida”, constitutivos de nossas culturas, e sua especificação cristã (“o estilo de vida do Evangelho”) – já abordados na primeira parte deste trabalho. Pois falar de diálogo social é algo que exige que nos perguntemos como estabelecer um diálogo, com o que somos, com os outros membros, religiosos ou não, da sociedade. A questão levantada desde o início deste trabalho – como o Evangelho do Reino pode introduzir-se efetivamente em nossa realidade social, econômica e política – aparece novamente de uma forma mais específica.

Francisco a aborda de uma maneira espantosamente nova: não pelo vértice da verdade (embora essa perspectiva apologética não seja negada), mas fazendo advir o “estilo de vida do Evangelho” dentro dos “recursos” dos quais dispõe a humanidade para atravessar a crise social e ecológica que enfrenta. Essa maneira de situar a fé fica especialmente nítida no início do capítulo 2 de Laudato Si’, sobre o Evangelho da criação. O Papa reconhece perfeitamente que “alguns relegam para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer” (LS, 62), mas também mostra que a complexidade da crise exige uma pluralidade de interpretações e aportes: “É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade” (LS, 63). Ele acrescenta que “as convicções da fé oferecem aos cristãos – e também a outros crentes – grandes motivações para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (LS, 64).

No entanto, a ideia de “recurso” supõe que adotemos uma visão multidimensional do homem no seio da criação e que, por conseguinte, todos os atores envolvidos, todas as disciplinas intelectuais e todas as sabedorias – não apenas as ciências e a técnica – tenham voz ativa no diálogo social. É justamente a “sabedoria” que liga aquilo que move a todos e os “recursos” oferecidos pelas religiões e pela tradição cristã, pois a “sabedoria” se insere, por um lado, na “cultura” tomada em toda a sua complexidade e envolve, por outro lado, o conjunto das tradições religiosas, com a especificidade, ao mesmo tempo, da narrativa bíblica.

Essa abordagem espantosamente nova confere todo o seu peso teológico ao reconhecimento do “movimento ecológico” e do fato de ele já ter uma longa história. O “espiritual”, portanto, não é absolutamente reservado aos cristãos, mas já se revela como o fruto do trabalho da sabedoria no seio da humanidade. A sabedoria também se expressa nos textos citados pela Encíclica, não somente nos das diferentes conferências episcopais nacionais e continentais, mas também, e principalmente, na Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, reconhecida como “profética” pela Laudato Si’ (LS, 167 e 186), e na Carta da Terra de Haia (LS, 207).

Espero que possamos ter compreendido a postura ao mesmo tempo humilde e exigente que a Igreja assume, pela voz do papa Francisco, no diálogo social: “nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos”, é o que podemos ler no final da longa introdução, no capítulo 4, de Evangelii Gaudium (EG, 184). E em Laudato Si’, Francisco repete duas vezes que a Igreja “compreende que deva ouvir e promover o debate… (LS, 46 e 188) (7).

Para concluir esta parte convido-os então a ter em mente isto:

Os dois textos do papa Francisco não se contentam absolutamente com uma argumentação bíblica, mas desenvolvem um verdadeiro ensino social particularmente atento à sua admissibilidade universal. A Exortação e a Encíclica vencem esse desafio graças a um novo interesse pela narrativa da criação e por uma nova filosofia social, ambos expostos à distância da abordagem antropocêntrica e homogênea da Constituição Gaudium et Spes. A diferença diz respeito à maneira de dar espaço à alteridade e àquilo que é diverso e plural – significado pela metáfora do poliedro –, portanto, ao diálogo social que, se for verdadeiramente conduzido, não deixará de introduzir a fé cristã como “recurso” vital ou como estilo de vida, baseado no princípio de “gratuidade”.

Isso me encaminha para uma breve e última parte.

III. A mutação do ensino social da Igreja: um estilo profético e contemplativo

Consideradas as evoluções que acabo de explicitar, qual sentido o papa Francisco dá, afinal, à expressão “ensino” ou “magistério social” da Igreja? Tudo o que antecede mostra que a expressão clássica “Ensino social da Igreja” ou “Magistério social da Igreja” mudou de significado. Embora empregue diversas vezes o termo “Doutrina Social da Igreja”, Francisco nunca dá a esse termo o sentido de “corpus doutrinal”, evolutivo certamente, mas “objetivo”, como se existisse fora de sua interpretação, de sua recepção ou de sua aplicação concreta, de certa maneira, “em posição superior” à aventura sempre concreta da humanidade.

Parece-me que o primeiro dos quatro princípios, mencionados na segunda parte, confere-lhe seu novo “status”: “O tempo é superior ao espaço”.

Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. […]. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes (EG, 223).

Ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços.” Além do governo pontífice de Francisco, essa fórmula designa também o status de seu ensino social que não se apresenta sob a forma de um ensino a ouvir e a aplicar, mas como uma via ou iniciação de um processo aberto que terá êxito se implicar outros sujeitos capazes de se deixar interpelar pelos acontecimentos do momento ou de maior envergadura. É, pois, a forma ou o estilo desse ensino que me parece decisivo.

Três aspectos desse estilo me parecem peculiares:

1. Os dois textos do papa Francisco propõem um caminho de conversão em que a questão fundamental é a atitude espiritual determinante da “saída de si mesmo”. Assim inicia o percurso bíblico do primeiro capítulo da Exortação Evangelii Gaudium, que trata da “transformação missionária da Igreja” (Uma Igreja “em saída”, nº 20-23), e o último capítulo de Laudato Si’ sobre “Educação e Espiritualidade Ecológica” começa nos seguintes termos: “Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro […]”, diz o Papa para tranquilizar seus interlocutores – não somente os cristãos. “A atitude basilar de se autotranscender, rompendo com a consciência isolada e a autorreferencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reação moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade” (LS, 208).

Para possibilitar essa conversão “espiritual”, não basta permanecer num plano intelectual ou exibir a lei; é preciso falar uma linguagem experimental e tentar alcançar o coração e a sensibilidade afetiva e já espiritual dos interlocutores. O Papa consegue isso graças à linguagem direta e aos gestos que ele adota, envolvendo-se de maneira muito pessoal. Em suma, é a “coerência” e a exigência ética e espiritual de “coerência” que são o motor das análises apresentadas e das soluções propostas. E se Francisco se dirige, a partir desse centro espiritual, à inteligência e à capacidade de análise de todos e dos especialistas desta ou daquela disciplina, é sempre com a consciência de que eles são diversos, situados dentro de uma diversidade de culturas e situações concretas, e de que precisa, portanto, adaptar uma forma ou um estilo poliédrico (se assim posso dizer) para dirigir-se a eles.

2. Francisco caracteriza esse estilo também, e, sobretudo, em termos “proféticos e contemplativos”, nunca um sem o outro; e, primeiramente, como “profético”, desde que não se usurpe esse adjetivo, que o Papa aplica, por exemplo, como vimos, à Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento. Não preciso insistir nesse aspecto bastante crítico, pois já foi amplamente tratado na minha primeira referência ao vocabulário estilístico e à maneira “alternativa” de inserir o Evangelho em nossos estilos de vida.

O fato de considerar o Evangelho como um “recurso” vital na crise atual não impede de levar em consideração o seu potencial crítico e alternativo. Ao contrário, é no exercício dessa crítica a um antropocentrismo desviado que descobrimos que o Evangelho é primeiramente um “recurso” de bondade radical já operante nas sabedorias humanas. É por essa razão que o profetismo formulado pela Laudato Si’ não se reveste de um tom catastrofista ou “apocalíptico”. Por certo, o insustentável nunca é negado ou atenuado, mas a denúncia é imediatamente posta a serviço de uma esperança inalienável que repousa na criação como “dádiva” (LS, 76): “[…] os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto” (LS, 205 e 61).

3. Esse ato de esperança anuncia o terceiro aspecto do estilo cristão, que não se reduz jamais à denúncia profética, mas se expressa primeiramente e em última instância através de um olhar contemplativo “capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (LS, 222).

A unidade última do ensino social reside nessa capacidade de perceber a profundidade das relações vitais que nos constituem como seres criados que se põem eventualmente à escuta do Evangelho do Reino de Deus, e o terreno privilegiado da contemplação cristã se constitui por nossa relação cordial com o que é mais frágil, com todos os pobres e com a terra. Nos dois textos, Francisco atravessa todas as camadas profundas do real, concentrando sempre, contudo, o seu olhar no que é mais concreto. Termino citando um exemplo, dentre muitos outros, que ilustra perfeitamente o que caracteriza a abordagem estilística do Papa: um “senso” contemplativo do essencial da vida e uma consciência apurada e crítica de sua complexidade:

Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles que projetam edifícios, bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é suficiente a busca da beleza no projeto, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. […] É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de «estar em casa» dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros. Toda a intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos juntos (LS, 150 e 151) (8).

Aqui termino, esperando ter conseguido mostrar que os dois textos do papa Francisco mudaram a partir do seu interior o próprio conceito de ensino social da Igreja:

  • 1. por sua unificação teológica, graças à sua inscrição na globalidade de nossas Escrituras;
  • 2. pela maneira de lhe conferir admissibilidade universal;
  • 3. e, por fim, por sua capacidade já efetiva de iniciar “processos” de conversão social, em vez de propor uma síntese definitiva (cf. LS, 121).

Resta-nos, portanto, a indagação: como tornar possíveis, de nossa parte, esses processos, tanto na sociedade francesa como em outras?

Notas:

  1. Este artigo é a íntegra da conferência proferida pelo Prof. Dr. Theobald, no Centro Sèvres de Paris, no dia 19 de setembro de 2015, e publicado originalmente em: THEOBALD, Christoph. L’enseignement social de l’Église selon le pape François. Nouvelle revue théologique, 2016/2, tomo 138, p. 273-288.
  2. O texto propõe, nesse aspecto, uma transformação significativa do adágio thomista gratia suponit naturam (a graça supõe a natureza) em “a graça supõe a cultura” (EG, 115).
  3. Romano Guardini. La fin des temps modernes (1950), Paris, Ed. du Cerf, 1952. (com 7 citações!)
  4. Cf. Georges COTTIER et aliiÉglise et pauvreté. Préfaces de Sa Béatitude le Patriarche Maxilos IV et de Son Éminence le Cardinal Lercaro, US 57, Le Cerf, Paris, 1965; cf. também, mais recentemente, Kurt APPEL et Sebastian PITTLE, « Das Konzil am Grab. Das Grabmal Pauls VI. und der “Pakt der Katakomben” als Verständnishilfen für den ästhetischen Perspektivenwechsel des Konzils», in Jan-Heiner TÜCK (Éd.), Erinnerung an die Zukunftop. cit., 371-384.
  5. AS I/4, 327-330.
  6. Essa interpretação unilateral poderia ser encontrada em Gaudium et Spes, 12 § 3: “A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído (tamquam) senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir (eisque uteretur), dando glória a Deus. Também em 34 § 1: “Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar (subiciens) a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade.”
  7. Trata-se de uma alusão a Gaudium et Spes, 33 § 2.
  8. Ver também LS, 44 e seguinte (degradação das cidades); EG, 71-75.

(Os grifos são nossos.)

Sobre o autor: 

Christoph Theobald, teólogo jesuíta, é professor de Teologia Fundamental e Dogmática na Faculdade de Teologia do Centre-Sèvres, em Paris, e especialista em questões de teologia fundamental e de história da exegese. É redator- chefe adjunto da revista Recherches de Science Religieuse. Possui trabalhos em história da exegese (séculos XIX e XX, Modernismo) e em história dos dogmas, em teologia fundamental e dogmática (cristologia, trindade, criação, antropologia, eclesiologia), no campo da estética e em teologia pastoral.

Algumas publicações do autor

THEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II. I. Acesso à fonte. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015.

______. “Dans les traces…” de la constitution “Dei Verbum” du concile Vatican II. Paris: Les Éditions du Cerf, 2009.

______. Le christianisme comme style. Une manière de faire de la theologie en postmodernité. Vol. 1 e 2. Paris: Les Éditions du Cerf, 2009.
______. Transmitir um Evangelho de liberdade. São Paulo: Loyola, 2009.
______. L’univers n’est pas sourd. Sciences et foi en quête de sens, avec Bernard Saugier et d’autres. Bayard, 2006.
______. L’Eglise sous la Parole de Dieu, chap. IV dans Histoire du Concile Vatican II. 1959-1965. Tome V: Concile de transition. La quatrième session et la conclusion du Concile. Paris-Leuven: Le Cerf-Peeters, 2005.

Outras contribuições

THEOBALD, Christoph. A exortação apostólica Evangelii Gaudium. Esboço de uma interpretação original do Concílio Vaticano II. Cadernos Teologia Pública, ano XII, n. 104, São Leopoldo, 2015.
______. As potencialidades de futuro da Constituição Pastoral Gaudium et spes: por uma fé que sabe interpretar o que advém – Aspectos epistemológicos e constelações atuais. Cadernos Teologia Pública, ano XII, n. 96, São Leopoldo, 2015.

______. As grandes intuições de futuro de Concílio Vaticano II: a favor de uma “gramática gerativa” das relações entre Evangelho, sociedade et Igreja. Cadernos Teologia Pública, ano X, n. 77, São Leopoldo, 2013.
______. As narrativas de Deus numa sociedade pós-metafísica: o cristianismo como estilo. Cadernos Teologia Pública, ano VIII, n. 58, São Leopoldo, 2011.

______. Música e Teologia em Johann Sebastian Bach. Cadernos Teologia Pública, ano IV, n. 27, São Leopoldo, 2007.

Cadernos Teologia Pública é uma publicação impressa e digital quinzenal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que busca ser uma contribuição para a relevância pública da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pública pretende articular a reflexão teológica e a participação ativa nos debates que se desdobram na esfera pública da sociedade nas ciências, culturas e religiões, de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Os desafios da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje, constituem o horizonte da teologia pública.

Fonte:

Cadernos de Teologia Pública do IHU

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O ensino social da Igreja segundo o Papa Francisco (3ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/10831-2/ Sat, 17 Sep 2016 10:00:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=10831 [Leia mais...]]]>

Christoph Theobald

Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres

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III. A mutação do ensino social da Igreja: um estilo profético e contemplativo

Consideradas as evoluções que acabo de explicitar, qual sentido o Papa Francisco dá, afinal, à expressão “ensino” ou “magistério social” da Igreja? Tudo o que antecede mostra que a expressão clássica “Ensino social da Igreja” ou “Magistério social da Igreja” mudou de significado. Embora empregue diversas vezes o termo “Doutrina Social da Igreja”, Francisco nunca dá a esse termo o sentido de “corpus doutrinal”, evolutivo certamente, mas “objetivo”, como se existisse fora de sua interpretação, de sua recepção ou de sua aplicação concreta, de certa maneira, “em posição superior” à aventura sempre concreta da humanidade.

Parece-me que o primeiro dos quatro princípios, mencionados na segunda parte, confere-lhe seu novo “status”: “O tempo é superior ao espaço”.

Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. […]. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos 16 que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes (EG, 223).

“Ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços.” Além do governo pontífice de Francisco, essa fórmula designa também o status de seu ensino social que não se apresenta sob a forma de um ensino a ouvir e a aplicar, mas como uma via ou iniciação de um processo aberto que terá êxito se implicar outros sujeitos capazes de se deixar interpelar pelos acontecimentos do momento ou de maior envergadura. É, pois, a forma ou o estilo desse ensino que me parece decisivo. Três aspectos desse estilo me parecem peculiares:

1. Os dois textos do Papa Francisco propõem um caminho de conversão em que a questão fundamental é a atitude espiritual determinante da “saída de si mesmo”.

Assim inicia o percurso bíblico do primeiro capítulo da Exortação Evangelii Gaudium, que trata da “transformação missionária da Igreja” (Uma Igreja “em saída”, nos 20-23), e o último capítulo de Laudato Si’ sobre “Educação e Espiritualidade Ecológica” começa nos seguintes termos: “Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro […]”, diz o Papa para tranquilizar seus interlocutores – não somente os cristãos. “A atitude basilar de se autotranscender, rompendo com a consciência isolada e a autorreferencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reação moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada ação e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade” (LS, 208).

Para possibilitar essa conversão “espiritual”, não basta permanecer num plano intelectual ou exibir a lei; é preciso falar uma linguagem experimental e tentar alcançar o coração e a sensibilidade afetiva e já espiritual dos interlocutores. O Papa consegue isso graças à linguagem direta e aos gestos que ele adota, envolvendo-se de maneira muito pessoal. Em suma, é a “coerência” e a exigência ética e espiritual de “coerência” que são o motor das análises apresentadas e das soluções propostas. E se Francisco se dirige, a partir desse centro espiritual, à inteligência e à capacidade de análise de todos e dos especialistas desta ou daquela disciplina, é sempre com a consciência de que eles são diversos, situados dentro de uma diversidade de culturas e situações concretas, e de 17 que precisa, portanto, adaptar uma forma ou um estilo poliédrico (se assim posso dizer) para dirigir-se a eles.

2. Francisco caracteriza esse estilo também, e, sobretudo, em termos “proféticos e contemplativos”, nunca um sem o outro; e, primeiramente, como “profético”, desde que não se usurpe esse adjetivo, que o Papa aplica, por exemplo, como vimos, à Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento.

Não preciso insistir nesse aspecto bastante crítico, pois já foi amplamente tratado na minha primeira referência ao vocabulário estilístico e à maneira “alternativa” de inserir o Evangelho em nossos estilos de vida.

O fato de considerar o Evangelho como um “recurso” vital na crise atual não impede de levar em consideração o seu potencial crítico e alternativo. Ao contrário, é no exercício dessa crítica a um antropocentrismo desviado que descobrimos que o Evangelho é primeiramente um “recurso” de bondade radical já operante nas sabedorias humanas. É por essa razão que o profetismo formulado pela Laudato Si’ não se reveste de um tom catastrofista ou “apocalíptico”. Por certo, o insustentável nunca é negado ou atenuado, mas a denúncia é imediatamente posta a serviço de uma esperança inalienável que repousa na criação como “dádiva” (LS, 76): “[…] os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto” (LS, 205 e 61).

3. Esse ato de esperança anuncia o terceiro aspecto do estilo cristão, que não se reduz jamais à denúncia profética, mas se expressa primeiramente e em última instância através de um olhar contemplativo “capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (LS, 222).

A unidade última do ensino social reside nessa capacidade de perceber a profundidade das relações vitais que nos constituem como seres criados que se põem eventualmente à escuta do Evangelho do Reino de Deus, e o terreno privilegiado da contemplação cristã se constitui por nossa relação cordial com o que é mais frágil, com todos os pobres e com a terra. Nos dois textos, Francisco atravessa todas as camadas profundas do real, concentrando sempre, contudo, o seu olhar no que é mais concreto. Termino citando um exemplo, dentre muitos outros, que ilustra perfeitamente o que caracteriza a abordagem estilística do Papa: um “senso” contemplativo do essencial da vida e uma consciência apurada e crítica de sua complexidade:

Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles que projetam edifícios, bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é suficiente a busca da beleza no projeto, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. […] É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento de «estar em casa» dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros. Toda a intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos juntos (LS, 150 e 151). (8)

Aqui termino, esperando ter conseguido mostrar que os dois textos do Papa Francisco mudaram a partir do seu interior o próprio conceito de ensino social da Igreja:

1. por sua unificação teológica, graças à sua inscrição na globalidade de nossas Escrituras;

2. pela maneira de lhe conferir admissibilidade universal;

3. e, por fim, por sua capacidade já efetiva de iniciar “processos” de conversão social, em vez de propor uma síntese definitiva (cf. LS, 121).

Resta-nos, portanto, a indagação: como tornar possíveis, de nossa parte, esses processos, tanto na sociedade francesa como em outras?

Notas:

(8) Ver também LS, 44 e seguinte (degradação das cidades); EG, 71-75.

Fonte: IHU

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O ensino social da Igreja segundo o Papa Francisco (2ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-ensino-social-da-igreja-segundo-o-papa-francisco-2a-parte/ Fri, 16 Sep 2016 14:01:59 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=10768 [Leia mais...]]]>

Christoph Theobald

Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres

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II. Dar espaço ao que é “concreto” e diverso: da dimensão social do Evangelho ao ensino social da Igreja

Não basta, de fato, permanecer no plano da Escritura, é necessário, também, tirar dela um ensino que possa ser ouvido e recebido por todas as mulheres e por todos os homens “de boa vontade”, como já dizia João XXIII em sua Encíclica Pacem in Terris, de 1963 (citada por Francisco já no início de Laudato Si’, 3). Para isso, ainda no mesmo capítulo 4 de Evangelii Gaudium e na transição entre as duas partes desse capítulo, o Papa propõe quatro princípios que (cito textualmente o número 221) “orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro”. Esses quatro princípios, todos eles retomados em diversas passagens de Laudato Si’, permitem compreender a distância que nos separa hoje da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Vaticano II e de seu antropocentrismo subjacente, fornecendo, ao mesmo tempo, uma base para o “diálogo social como contribuição para a paz”, tema tratado na segunda parte do mesmo capítulo 4. Retomo sucintamente esses três pontos.

Quatro princípios

Os quatro princípios inserem-se, na verdade, no que acaba de ser dito acerca da tripla ou da quádrupla relacionalidade do ser humano, inevitavelmente permeada por “tensões bipolares” (EG, 212 s.) e conflitos. Eis os quatro princípios:

1. O tempo é superior ao espaço.

2. A unidade se sobrepõe ao conflito.

3. A realidade é mais importante que a ideia.

4. O todo é superior à parte.

Essas formulações um tanto abstratas têm, nos dois textos pontificais, ilustrações muito concretas que mereceriam um longo comentário, o qual não poderei tecer aqui. Não retomarei o segundo nem o terceiro princípio, de fácil compreensão, pois expressam ao mesmo tempo a finalidade messiânica de nossa criação – o Reino de paz de Deus, que consiste em superarmos nossos conflitos – e o risco de confundir nossas ideologias ou utopias com o real de nosso cotidiano em que nosso futuro está concretamente em jogo. Reservarei o comentário do primeiro princípio sobre o tempo e o espaço para a última parte deste trabalho e tratarei agora do quarto princípio: “o todo é superior à parte” (EG, 234-237).

Este princípio é acompanhado por uma comparação entre duas metáforas, comparação essa que nos faz compreender a escolha consciente e pensada do vocabulário estilístico. São as metáforas da esfera e do poliedro, que Evangelii Gaudium considera como duas maneiras de representar as relações entre um “todo” e suas “partes”; nesse sentido, elas nos permitem entender tanto a mutação do “doutrinal” numa concepção estilística da fé como a distância tomada pelo Papa em relação à Gaudium Spes:

O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, […] é necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. […] Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.

Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. […]

A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. […] O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino (EG, 235-237).

Para ilustrar o que foi dito, podemos comparar a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual com a Exortação. Os diferentes capítulos da segunda parte de Gaudium et Spes representam dimensões do humano que formam um todo; são, por assim dizer, projetadas sobre uma esfera – “a antroposfera” ou “antropoceno” (segundo Gaudium et Spes, 2 § 2) – onde se encontram lado a lado, desde o casamento até a paz em todo o planeta, a Igreja estando no meio dessas realidades, logo, na superfície, mas também no centro da esfera, equidistante de cada nível do real, projetando a partir do interior “a luz e a energia” do Evangelho (Gaudium et Spes, 10§ 2) sobre cada realidade e propondo uma regulação doutrinal de sua orientação global, fundamentada na primeira parte do texto que trata da “Igreja e da vocação humana”. O singular, tal ou qual indivíduo, tal ou qual cultura ou língua, tal ou qual povo, não encontra lugar aí, ou melhor dizendo, não é aí considerado objeto de interesse. Estamos antes num universo homogêneo e unidimensional, de acordo com o vocabulário de Laudato Si’, universo dominado não pelo paradigma tecnocrático, mas por uma “doutrina”, embora os dois possam conviver e fortalecer-se mutuamente.

Em compensação, a visão do mundo da Exortação Evangelii Gaudium pode ser compreendida de acordo com o modelo do poliedro. O discurso doutrinal que enfatiza os princípios não perde sua necessária função reguladora, mas nunca conseguirá alcançar “cada cristão, onde quer que esteja” (EG, 3), nem mesmo “cada pessoa que habita nesse planeta” (LS, 3) de acordo com a singularidade de cada um que se relaciona, integrada em conjuntos sociais e ambientais cada vez maiores, mas mantendo sua “originalidade”, segundo a expressão do texto. Somente uma abordagem estilística permite isso, pois é sensível à confluência de todas as partes num dado singular em que essas partes mantêm sua originalidade, sendo, ao mesmo tempo, habitadas pelo todo que é a “plenitude da riqueza do Evangelho”.

O fim do antropocentrismo

Há ainda outra razão, no entanto, na passagem da esfera ao poliedro, que leva o Papa a conceber a realidade de um modo diferente da Constituição Gaudium et Spes: a oposição, hoje necessária, a um “antropocentrismo despótico” ou “desviado” (LS, 68, 69, 118, 119 e 122), que se manifesta especialmente na onipresença do paradigma “tecnocrático” e do “mito do progresso” (LS, 60 e 78), como já foi mencionado anteriormente. É particularmente o terceiro capítulo de Laudato Si’ sobre “a raiz humana da crise ecológica” que se refere a isso. Ele marca com o maior rigor a distância tomada em relação à Constituição pastoral do Vaticano II, que mantinha uma relação mais positiva com o antropocentrismo moderno. Essa distância pode ser resumida nas duas formulações que seguem: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes”, lemos em Gaudium et Spes, 12 § 1. Laudato Si’, 93 faz a seguinte correção: “Hoje, crentes e não crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”.

A Encíclica situa-se, de fato, entre duas posições consideradas extremas, o mito do progresso e aquele que consiste em querer impedir qualquer intervenção do ser humano no ecossistema (LS, 60), entre um antropocentrismo desviado e seu contrário, o biocentrismo (LS, 118): “Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros […]” (LS, 60). Fruto do antropocentrismo moderno e de suas consequências científicas e técnicas, a tomada de consciência da “autonomia legítima” das realidades terrestres (GS, 36 e LS, 80 e 99) não é negada, e sim reposicionada em novo marco, fornecido por uma teologia da criação mais equilibrada. Esta corrige os mal-entendidos resultantes de uma compreensão errada da prescrição feita ao homem de “dominar a terra” (Gn 1, 28), como se essa passagem “favorecesse a exploração selvagem da terra”, ao passo que se trata, na Bíblia, de “cultivar e guardar o 13 jardim do mundo” (Gn 2, 15; LS, 67) (6) . A Encíclica não nega que “o pensamento judaico-cristão desmistificou a natureza”, mas não tira a conclusão (que poderíamos atribuir à Constituição pastoral, às voltas com todos os contenciosos entre ciência moderna e fé) de um antropocentrismo unilateral. Ela tenta antes articular o respeito pela fragilidade da terra com “a responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo, com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades” (LS, 78).

Pluralismo e diálogo social

A ênfase na pluralidade das culturas e estilos de vida, bem como naquilo que é infinitamente concreto e diverso, sem jamais renunciar ao “todo”, compreendido de maneira poliédrica (se assim posso dizer), leva-nos diretamente à segunda parte do capítulo 4 de Evangelii Gaudium, que trata naturalmente do “diálogo social como contribuição para a paz”. Encontramos ali, certamente, os três ou quatro tipos de relação vital que nos constituem e, sobretudo, os dois planos – nossos “estilos de vida”, constitutivos de nossas culturas, e sua especificação cristã (“o estilo de vida do Evangelho”) – já abordados na primeira parte deste trabalho. Pois falar de diálogo social é algo que exige que nos perguntemos como estabelecer um diálogo, com o que somos, com os outros membros, religiosos ou não, da sociedade. A questão levantada desde o início deste trabalho – como o Evangelho do Reino pode introduzir-se efetivamente em nossa realidade social, econômica e política – aparece novamente de uma forma mais específica.

Francisco a aborda de uma maneira espantosamente nova: não pelo vértice da verdade (embora essa perspectiva apologética não seja negada), mas fazendo advir o “estilo de vida do Evangelho” dentro dos “recursos” dos quais dispõe a humanidade para atravessar a crise social e ecológica que enfrenta. Essa maneira de situar a fé fica especialmente nítida no início do capítulo 2 de Laudato Si’, sobre o Evangelho da criação. O Papa reconhece perfeitamente que “alguns relegam para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer” (LS, 62), mas também mostra que a complexidade da crise exige uma pluralidade de interpretações e aportes: “É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade” (LS, 63). Ele acrescenta que “as convicções da fé oferecem aos cristãos – e também a outros crentes – grandes motivações para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (LS, 64).

No entanto, a ideia de “recurso” supõe que adotemos uma visão multidimensional do homem no seio da criação e que, por conseguinte, todos os atores envolvidos, todas as disciplinas intelectuais e todas as sabedorias – não apenas as ciências e a técnica – tenham voz ativa no diálogo social. É justamente a “sabedoria” que liga aquilo que move a todos e os “recursos” oferecidos pelas religiões e pela tradição cristã, pois a “sabedoria” se insere, por um lado, na “cultura” tomada em toda a sua complexidade e envolve, por outro lado, o conjunto das tradições religiosas, com a especificidade, ao mesmo tempo, da narrativa bíblica.

Essa abordagem espantosamente nova confere todo o seu peso teológico ao reconhecimento do “movimento ecológico” e do fato de ele já ter uma longa história. O “espiritual”, portanto, não é absolutamente reservado aos cristãos, mas já se revela como o fruto do trabalho da sabedoria no seio da humanidade. A sabedoria também se expressa nos textos citados pela Encíclica, não somente nos das diferentes conferências episcopais nacionais e continentais, mas também, e principalmente, na Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, reconhecida como “profética” pela Laudato Si’ (LS, 167 e 186), e na Carta da Terra de Haia (LS, 207).

Espero que possamos ter compreendido a postura ao mesmo tempo humilde e exigente que a Igreja assume, pela voz do Papa Francisco, no diálogo social: “nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos”, é o que podemos ler no final da longa introdução, no capítulo 4, de Evangelii Gaudium (EG, 184). E em Laudato Si’, Francisco repete duas vezes que a Igreja “compreende que deva ouvir e promover o debate…” (LS, 46 e 188) (7) .

Para concluir esta parte, convido-os então a ter em mente isto: os dois textos do Papa Francisco não se contentam absolutamente com uma argumentação bíblica, mas desenvolvem um verdadeiro ensino social particularmente atento à sua admissibilidade universal. A Exortação e a Encíclica vencem esse desafio graças a um novo interesse pela narrativa da criação e por uma nova filosofia social, ambos expostos à distância da abordagem antropocêntrica e homogênea da Constituição Gaudium et Spes. A diferença diz respeito à maneira de dar espaço à alteridade e àquilo que é diverso e plural – significado pela metáfora do poliedro –, portanto, ao diálogo social que, se for verdadeiramente conduzido, não deixará de introduzir a fé cristã como “recurso” vital ou como estilo de vida, baseado no princípio de “gratuidade”. Isso me encaminha para uma breve e última parte.

Notas:

(6) Essa interpretação unilateral poderia ser encontrada em Gaudium et Spes, 12 § 3: “A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído (tamquam) senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir (eisque uteretur), dando glória a Deus. Também em 34 § 1: “Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar (subiciens) a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade.”

(7) Trata-se de uma alusão a Gaudium et Spes, 33 § 2. 15

Fonte: IHU

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O ensino social da Igreja segundo o Papa Francisco (1ª parte) https://observatoriodaevangelizacao.com/o-ensino-social-da-igreja-segundo-o-papa-francisco/ Thu, 15 Sep 2016 10:00:55 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=10755 [Leia mais...]]]>

Christoph Theobald

Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres

o Papa adota um estilo inédito: dá atenção à experiência concreta dos crentes e dos humanos que somos; não faz um apelo apenas à nossa inteligência, mas também à nossa afetividade, aos nossos sentidos e ao nosso coração, possibilitando assim verdadeiras decisões e ações individuais e coletivas.

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O ensino social da Igreja ocupa lugar decisivo nos dois grandes textos do Papa Francisco de que dispomos atualmente; ocupa um capítulo inteiro da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013) – o capítulo 4, que se intitula “A dimensão social da evangelização” – e encontra-se no centro da Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, que, em seu número 15, afirma explicitamente que “esta carta encíclica se insere no magistério social da Igreja”. Esses dois textos completam-se um ao outro, como veremos, e o segundo remete diversas vezes ao primeiro. (1)

Lanço a hipótese de que, nos escritos de Francisco, a expressão comum “ensino social da Igreja” ou “magistério social da Igreja” muda de significado. Ao dirigir-se, em Evangelii Gaudium, a “cada cristão, onde quer que esteja” (EG, 3), e, em Laudato Si’, a “cada pessoa que habita neste planeta” (LS, 3), o Papa adota um estilo inédito: dá atenção à experiência concreta dos crentes e dos humanos que somos; não faz um apelo apenas à nossa inteligência, mas também à nossa afetividade, aos nossos sentidos e ao nosso coração, possibilitando assim verdadeiras decisões e ações individuais e coletivas. Em suma, graças ao estilo de seus textos, tão semelhante à sua maneira de se dirigir oralmente aos seus interlocutores, ele nos faz trilhar um verdadeiro percurso “espiritual”, um percurso de conversão.

Essa mudança de estilo não faz parte de um simples cenário, se assim posso dizer; também não é uma simples concessão ao nosso espírito pós-moderno. Ela está refletida nos próprios textos. O emprego frequente do vocábulo “estilo” – vinte e duas vezes em Evangelii Gaudium e dezoito vezes em Laudato Si’ – demonstra que, com Francisco, essa noção entra no próprio ensino social e, tornando-se nele um elemento essencial, lhe confere uma nova forma. Proponho-me então, daqui em diante, a explicar e embasar essa tese.

Veremos, primeiramente, que a forma ou o estilo dos textos – seu modo de nos implicar num percurso de conversão – exige uma unificação, até mesmo uma concentração teológica do ensino social da Igreja; esse é o primeiro aspecto que abordarei. Passarei, em seguida, ao ensino propriamente dito, cuja admissibilidade universal requer, hoje, um interesse novo por aquilo que, em nossa existência social, é infinitamente concreto, portanto, diverso e plural. É justamente nesses pontos que a Exortação e a Encíclica se distanciam da Constituição Gaudium et Spes do Vaticano II, que, até agora, determinava todo o ensino social da Igreja. Por último, mostrarei o sentido efetivo que o Papa dá à expressão “ensino” ou “magistério social” da Igreja, conteúdo das evoluções que terei explicado.

I. O Evangelho do Reino de Deus

O “social” como dimensão intrinsecamente ligada ao Evangelho

O primeiro gesto do Papa consiste, então, em unificar o ensino da Igreja, sentido por muitos de nossos contemporâneos como muito complexo, e concentrá-lo no único anúncio do Evangelho do Reino de Deus. Embora Evangelii Gaudium trate disso em dois capítulos sucessivos – os capítulos 3 e 4 da Exortação –, o ponto decisivo e original é o fato de que a dimensão social não é acrescentada ao Evangelho, mas tem com ele uma relação interna e lhe é intrínseca.

Isso se destaca claramente nos nos 177 e 180. O primeiro – trata-se do segundo número do capítulo 4 – estabelece essa relação de maneira principial e partindo do querigma neotestamentário: “O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso 5 com os outros” (no 177). O no 180 fundamenta esse compromisso em maior medida na matriz bíblica: “Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. […]A proposta é o Reino de Deus (Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.” O essencial da dita doutrina social da Igreja é recapitulado nessa breve passagem e remete ao cerne mesmo do Evangelho do Reino de Deus.

Precisamos então nos perguntar como esse Evangelho do Reino pode penetrar efetivamente em nossa realidade social, econômica e política. É exatamente aqui que surge o vocábulo “estilo”. Em Evangelii Gaudium, o vocábulo encontra-se em vários campos de significação, sendo o dos “estilos de vida” que formam o núcleo de nossas “culturas” o mais frequente e o mais importante. Essa noção é definida no texto nos seguintes termos: “Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus” (EG, 115). Observemos desde já a função estrutural atribuída aqui a um triplo jogo relacional entre os humanos, as outras criaturas e Deus; jogo relacional esse que só terá seu pleno significado na Encíclica Laudato Si’ (LS, 66). Retomarei isso mais adiante.

Na pluralidade cultural – o texto distingue, por exemplo, os “estilos das cidades” dos “estilos rurais” (EG, 72) –, introduz-se logo uma diferença discriminatória entre, de um lado, um “estilo de vida que exclui os outros” (EG, 54), “que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares” (EG, 67), em suma, “um estilo individualista” próprio dos pagãos (EG, 195), e, de outro lado, “um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra” (EG, 208). O critério de discernimento é claramente apresentado no que Evangelii Gaudium chama de “estilo de vida do Evangelho” (EG, 168), em cujo cerne encontra-se a gratuidade ou “o princípio da primazia da graça” (EG, 112), portanto, a alegria. (2) Esse estilo encontra sua forma última no itinerário de Jesus, evocado várias vezes, “a entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida” (EG, 269).

Evangelii Gaudium distingue, portanto, dois planos diferentes: de um lado, nossos “estilos de vida”, constitutivos de nossas culturas, e, de outro, sua especificação cristã – “o estilo de vida do Evangelho”. Retomando a mesma distinção, a Encíclica Laudato Si’ radicaliza seu diagnóstico: em conformidade com sua finalidade ecológica, ela distingue um “estilo consumista” (LS, 204), com seu “modo de produção e consumo” (LS, 23 e 59), de um “novo estilo de vida” (LS, 16) que, em relação ao paradigma dominante da tecnologia, adquire feições necessariamente anticulturais (LS, 108).

A análise torna-se aqui mais sutil, especialmente no capítulo 3 de Laudato Si’, que examina “a raiz humana da crise ecológica”. Inspirando-se muito no filósofo e teólogo alemão Romano Guardini (3) e, sem dúvida, embora sem nomear, em Ivan Illich e a Escola de Frankfurt, o Papa critica “o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento num paradigma homogêneo e unidimensional” (LS, 106). O reducionismo que ele denuncia tem suas raízes na relação que mantemos com nossos objetos: “É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder” (LS, 107). O resultado disso é “a imposição de um estilo de vida hegemônico ligado a um modo de produção” (LS, 145), a dominação tecnocrática global exercida por um pequeno número até mesmo sobre a economia e a política” (LS, 109), de modo que: “Tornou-se anticultural a escolha de um estilo de vida cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador” (LS, 108).

Cuidar da fragilidade

É nesse contexto conflituoso que, voltando então ao Evangelho do Reino de Deus, o Papa explica a especificidade cristã do estilo de vida alternativo que ele implica. Podemos resumir suas palavras no apelo a “cuidar da fragilidade” (EG, 209-216), pois esse apelo diz respeito à dupla fragilidade apontada por Francisco, a dos pobres e a da terra; e em Evangelii Gaudium, é justamente a figura de São Francisco que orienta todo o seu discurso, desde suas reflexões bíblicas e históricas sobre o ensino social da Igreja, no início do capítulo 4 (EG, 183) e no fim do desenvolvimento sobre a integração social dos pobres (EG, 216). Tudo está contido nesses trinta números, inclusive o cuidado com a casa comum, que será tratado em maior amplitude em Laudato Si’: “Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados – são os termos com os quais o Papa resume seu percurso – a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos” (EG, 216).

1. No que diz respeito à primeira ênfase, o Papa Francisco se posiciona numa conscientização que já remonta ao início do Concílio Vaticano II, quando ela foi defendida por um grupo de bispos denominado “Igreja dos Pobres”, em que estes deviam ser considerados pela Igreja os destinatários e sujeitos privilegiados da evangelização (4). O Cardeal Lercaro, com Dom Helder Câmara e o patriarca Maximos IV, um dos fundadores desse grupo conciliar, queria até mesmo ter feito disso o eixo do Concílio, como se depreende de seu longo discurso de 06 de dezembro de 1962 (5). Isso não aconteceu, mas esse grupo formado por cerca de 40 bispos conseguiu, ao menos, incluir esse tema em vários textos conciliares, principalmente em Lumen Gentium, n° 8, em Gaudium et Spes, n° 1, e em Ad gentes, n° 3. O mesmo tema será explicitamente retomado em 1975 pela Exortação de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (n° 6 s.), que pode ser considerado o texto “mãe” da Exortação Evangelii Gaudium.

A cena messiânica de Lucas 4, que mostra Jesus, o ungido, anunciando o Evangelho aos pobres, é a matriz principal dessa intuição que liga, segundo Lercaro, o Evangelho eterno à maior atualidade histórica. É essa mesma visão que Evangelii Gaudium retoma em seu capítulo 4. Cabe ressaltar, no entanto, que a Exortação inverte a orientação da evangelização, convidando os cristãos, já no capítulo anterior, a aceitar “que os outros nos evangelizem” (nº 121). Isso se concretiza destacadamente quando é preciso “ouvir o clamor dos pobres”, integrá-los plenamente na sociedade e reservar-lhes um lugar privilegiado no meio do povo de Deus (nos 187-196).

2. Iniciando com o cântico de Francisco de Assis, Laudato Si’ pretende promover a mesma experiência de escuta: “‘Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verdor’. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (LS, 1 e 2). A relação entre essas duas experiências, a escuta do clamor dos pobres e a do clamor da terra, dá à Encíclica sua especificidade, preparada pelos números já citados de Evangelii Gaudium: “Hoje, não podemos deixar de reconhecer – destacando o primeiro capítulo de Laudato Si’ – que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS, 49).

Do Evangelho do Reino de Deus ao Evangelho da Criação

Sem fazer qualquer antecipação acerca da intervenção de Grégoire Catta, que trata justamente dessa relação decisiva no pensamento social do Papa Francisco, observemos que é novamente e em primeiro lugar a Escritura que possibilita estabelecer essa relação. Enquanto Evangelii Gaudium parte do “Evangelho do Reino de Deus”, Laudato Si’ dedica todo o segundo capítulo ao “Evangelho da Criação”. Na verdade, o primeiro – o Evangelho do Reino de Deus – não pode existir sem o segundo – o da Criação –, que o antecede ligeiramente, pois Deus reina no mundo, na terra que ele mesmo criou, e quando for efetivamente recebido pelos homens, a vida social “será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG, 180).

Já no Gênesis, na verdade, encontramos uma prefiguração da ligação intrínseca entre nossas relações com a natureza e com a fraternidade e a justiça. Francisco ilustra isso com a narração de Caim e Abel e a de Noé: “O descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo” (LS, 70).

Nesse número decisivo, encontramos a estrutura relacional do ser humano em sua pluridimensionalidade, já mencionada no início, em inter-relação com a compreensão da cultura. Sejam três (EG, 115 e LS, 66) ou quatro tipos de relação, como no comentário das narrações de Caim, Abel e Noé, em que é acrescentada a relação consigo mesmo, o essencial está na ideia de que o “rompimento dessas relações” ou sua deterioração, ao que se denomina “pecado”, espera por uma cura e uma restauração, para as quais Francisco apresenta o caminho em seus dois textos.

Para concluir esta primeira parte de minha apresentação: o primeiro gesto do Papa Francisco foi, portanto, promover uma unificação teológica do ensino social da Igreja pela sua inserção na narrativa bíblica entre a Criação e o Reino de Deus estabelecido nesse mundo criado. A dimensão social está aí inserida desde o início: ela consiste na tripla ou na quádrupla relação do homem, sendo que sua relação com a terra é com muita frequência esquecida pelos próprios cristãos. A perversão dessa relação vital pelo homem está em “estilos de vida” unidimensionais que se tornaram, hoje, hegemônicos. A Escritura nos conclama a denunciá-los, a introduzir o “estilo de vida do Evangelho” em nossas culturas como alternativa vital e a fazer isso numa perspectiva de cura da vida. Isso nos leva agora a dar um segundo passo.

Notas

(1) Este artigo é a íntegra da conferência proferida pelo Prof. Dr. Theobald, no Centro Sèvres de Paris, no dia 19 de setembro de 2015, e publicado originalmente em: THEOBALD, Christoph. L’enseignement social de l’Église selon le pape François. Nouvelle revue théologique, 2016/2, tomo 138, pp. 273-288.

(2) O texto propõe, nesse aspecto, uma transformação significativa do adágio thomista gratia suponit naturam (a graça supõe a natureza) em “a graça supõe a cultura” (EG, 115).

(3) Romano Guardini. La fin des temps modernes (1950), Paris, Ed. du Cerf, 1952. (com 7 citações!)

(4) Cf. Georges COTTIER et alii, Église et pauvreté. Préfaces de Sa Béatitude le Patriarche Maxilos IV et de Son Éminence le Cardinal Lercaro, US 57, Le Cerf, Paris, 1965; cf. também, mais recentemente, Kurt APPEL et Sebastian PITTLE, « Das Konzil am Grab. Das Grabmal Pauls VI. und der “Pakt der Katakomben” als Verständnishilfen für den ästhetischen Perspektivenwechsel des Konzils», in Jan-Heiner TÜCK (Éd.), Erinnerung an die Zukunft, op. cit., 371-384.

(5) AS I/4, 327-330.

Fonte: IHU

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