César Kuzma – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Mon, 05 Apr 2021 14:38:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 César Kuzma – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Entre cruzes e esperanças: olhando a pandemia a partir da teologia de Jürgen Moltmann https://observatoriodaevangelizacao.com/entre-cruzes-e-esperancas-olhando-a-pandemia-a-partir-da-teologia-de-jurgen-moltmann/ Mon, 05 Apr 2021 14:38:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=39135 [Leia mais...]]]> A pandemia já não é algo distante que acompanhamos pelas redes sociais e pela televisão, ela se faz bem próxima e nela perdemos amigos, parentes, pessoas do nosso convívio, pessoas que tinham um nome, uma família, uma razão e uma história. Passado um ano, todos somos afetados por ela, de uma forma ou de outra. Na ausência de respostas, buscamos perguntas; no silêncio e na dor, buscamos um sentido, uma razão, um porquêDiante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta semana santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?… para compreender um Deus que seja solidário com o sofrimento humano, Moltmann nos convida a observar a atitude depositada pelo homem de Nazaré. Nesta atitude, Jesus (Deus-Homem) não olhava o outro apenas como outro, não o via como alguém estranho a si mesmo, mas sim se aproximava dele, tornando-se próximo, colocando-se junto, ao lado, sendo solidário (cf. Lc 10,25-37). Nisso consiste a atitude cristã que decorre da prática de Jesus. Aí ele é solidário, e também sofredor, pois faz da nossa vida algo importante a ele, vive-a em seu ser, sofre conosco, é solidário. Por isso nos liberta e por isso nos redime e nos salva. É a obra do amor, que é participativo e convidativo, que enche de esperança… A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento… É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude.


Cesar Kuzma é teólogo leigo, doutor em teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia. Ele é o atual presidente da SOTER. Ele participou do Ciclo de Conferências da Páscoa IHU 2021 “A questão do mal e do sofrimento no mundo (pós)pandêmico à luz do mistério pascal” proferindo a conferência intitulada “A teologia da cruz e a esperança cristã num mundo pandêmico. Contribuição teológica de J. Moltmann”.

 

Confira o artigo:

Entre cruzes e esperanças: olhando a pandemia a partir da teologia de Jürgen Moltmann

No momento em que celebramos esta Semana Santa e nela fazemos a memória da Paixão de Jesus, vivemos, enquanto país, um dos momentos mais difíceis e dolorosos da nossa história. A pandemia da Covid-19, que já nos assombra há um ano, parece não dar espaço e avança fortemente pelo nosso território, de casa em casa, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, deixando marcas profundas em nossas famílias e ceifando vidas por onde passa. Dia após dia, os números aumentam drasticamente, e a morte, com força, bate a nossa porta. A pandemia já não é algo distante que acompanhamos pelas redes sociais e pela televisão, ela se faz bem próxima e nela perdemos amigos, parentes, pessoas do nosso convívio, pessoas que tinham um nome, uma família, uma razão e uma história. Passado um ano, todos somos afetados por ela, de uma forma ou de outra. Na ausência de respostas, buscamos perguntas; no silêncio e na dor, buscamos um sentido, uma razão, um porquê.

Há uma semana, o Brasil superou o triste recorde de 300 mil mortes e ultrapassou em 12 milhões o número de pessoas que já foram infectadas. Em plena Semana Santa, na vigília da Paixão, chegamos perto de 4 mil mortes diárias, com mais de 320 mil mortes no total, numa onda crescente, que segue rápida e que nos assusta. Segundo alguns analistas, estamos muito perto do limite de um não retorno, e isso é profundamente preocupante. Assumimos a triste marca de sermos o epicentro da pandemia, pois somos o país em que se concentram mais casos, mais contaminações, mais mortes e onde o surgimento de novas variantes do coronavírus arrisca fazer desta tragédia algo ainda maior em nível global. As fronteiras vão sendo fechadas para o Brasil e vamos ficando completamente isolados de tudo e de todos. Por falta de diplomacia da parte brasileira e pelo negacionismo assumido, as vacinas não chegam na proporção desejada e o volume de pessoas vacinadas parece ser insuficiente para frear os dados da Covid.

Não bastassem estes dados, vivemos o colapso do nosso sistema de saúde, a falta de insumos e produtos médicos e hospitalares, a falta de oxigênio e um total despreparo dos órgãos federais do governo, em especial no executivo, no Ministério da Saúde, um desrespeito, podemos dizer, um verdadeiro descaso para com a vida humana, principalmente para com aqueles que são mais pobres e vulneráveis e que são, portanto, mais dependentes de políticas públicas. O Brasil, hoje, sofre e se torna vítima de um vírus letal e sofre ainda mais pela irresponsabilidade de um governo que apostou em um projeto de morte, um governo que, desde o início, ironizou o problema, banalizou o mal e fez a aposta no caos. De forma impotente, vimos pessoas sofrendo, morrendo nas UPAs e hospitais, sem vagas em UTIs, outras agonizavam em ambulâncias a espera de um leito hospitalar, enquanto o governo, na pessoa do presidente, incentivava aglomerações e criticava o uso de máscaras e de métodos de prevenção e proteção. Vimos o esforço de médicos e profissionais da saúde, no arriscar da própria vida, enquanto o governo negava a ciência e induzia a população a consumir medicamentos sem eficácia e sem comprovação científica. Vimos o esforço da pesquisa em produzir vacinas capazes de salvar vidas, enquanto isso soubemos que o governo brasileiro, por meio do presidente da República, recusou a compra das mesmas e não assumiu a imunização da população como uma prioridade.

Depois de um ano de pandemia, muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitos abraços poderiam ainda ser esperados e muitos olhares poderiam seguir existindo, mas os homens da morte partiram com tudo e fizeram e seguem fazendo as suas vítimas, vítimas que avançam para o caminho de um calvário doloroso, cruel e que parece não ter fim. São os Pilatos e Herodes de ontem e de hoje, que lavam as mãos, que zombam de quem sofre e jogam o povo à própria sorte, cercados por aqueles que riem de quem agoniza na cruz desta pandemia. É o que se vê nas aglomerações, nas festas clandestinas e naqueles que seguem com a indiferença e levam a vida como se o mal (pandêmico) não existisse e não os tocasse diretamente, seguem com as viagens, os passeios, as praias, com o consumo, com a indiferença que mata e que deixa a outros sofrerem ainda mais. Somos vendidos por outras trinta moedas, engolidos por um mercado que parece querer a sua vez e se diz mais importante que a vida, já que a economia não pode parar; e, mais uma vez, o caminho que temos é o caminho da cruz, do abandono, do sofrimento, do isolamento e da morte, das novas cruzes de nosso tempo, um tempo pandêmico.

Frente a esta situação, não existem respostas prontas, mas tentativas de entendimento e de aproximação, propostas que nos fazem olhar para nós mesmos, para a nossa condição de fé e com ela, a partir dela, buscar um espaço de vida e de esperança. Nas linhas que seguem, mesmo que de forma breve, queremos oferecer uma reflexão a partir da teologia de Jürgen Moltmann, que pela sua teologia da cruz nos fala de esperança e nos possibilita um entendimento e uma atenção.

Jürgen Moltmann

Moltmann é um teólogo que, em sua juventude, viveu de perto o sofrimento causado pela Segunda Guerra Mundial e fez daquele espaço de medo um caminho para um espaço vasto e aberto para a presença de Deus, capaz de gerar vida, futuro e esperança. Não como uma fuga da realidade e da história, mas de modo a enfrentar os dramas e as tramas de nossa existência e no convite para a construção de uma nova sociedade, onde todos possam fazer parte e a justiça reine e traga a paz.

Em 1964, Moltmann escreve o livro “Teologia da esperança” e, por ele, oferece um novo entendimento da escatologia cristã, como crítica da história e como proposta antecipatória de um Reino que se abre e nos convida a um futuro novo. O chamado de um Deus promitente nos convida à ação, à missão, à missão da esperança.

Nesta obra, a atenção se concentrava no ressuscitado e como que ele inaugurava este novo tempo. A esperança entra como força ativa e mobiliza toda a ação.

Em 1972, em um desenvolvimento de sua teologia, Moltmann nos apresenta uma segunda obra, com um olhar mais crítico à teologia, à sociedade e à postura das igrejas cristãs frente a esta sociedade. Abre caminho para um discernimento político e dá atenção ao sofrimento presente, que é sentido pelo próprio Deus que, em Cristo, assume toda a condição humana. Se na primeira obra a atenção estava mais para o ressuscitado (da cruz para a ressurreição), o olhar teológico agora se concentra na cruz do crucificado (da ressurreição para a cruz), no caminho que a antecede e que é marcado por opções concretas, realizadas pelo homem de Nazaré em favor da justiça e dos últimos da história.

Nesta obra, chamada “O Deus crucificado”, Moltmann abre diálogo com as teologias da libertação que surgiam naquele momento e traz para a sua reflexão teológica uma percepção mais crítica, mais atenta a realidades que nos interpelam e nos questionam nas dimensões humanas, políticas e de fé.

Não iremos aqui trazer um panorama completo da teologia de Jürgen Moltmann. De certa forma, já fiz isso em meu livro de 2014 e que é fruto de minha tese doutoral (O futuro de Deus na missão da esperança, Paulinas). Moltmann é um autor muito estudado, de grande abertura ecumênica e não é difícil encontrar textos e estudos a seu respeito. De modo recente, indico também as obras de Alonso Gonçalves (Jürgen Moltmann e a teologia pública no Brasil, Garimpo, 2017) e de Rogério Guimarães de A. Cunha (A escatologia do amor: a esperança na compreensão trinitária de Deus em Jürgen Moltmann, Vozes, 2020), que tratam de aspectos atuais e centrais no pensamento do autor.

Nossa intenção aqui é aproximar a teologia que ele propõe do cenário pandêmico que nós nos encontramos e verificar se esta expressão teológica pode nos oferecer caminhos de discernimento e de orientação. É evidente que os contextos são diferentes e que o discurso produzido por Moltmann não foi direcionado para esta pandemia. Estamos diante de algo novo, algo que nos interroga e que vai marcar o caminho da humanidade. Contudo, olhando a sua noção de esperança, o modo contextual como desenvolve o seu pensamento, a percepção de Deus em meio ao sofrimento humano e a sua teologia crítica da cruz, entendemos que sim é possível propor um espaço de diálogo e de aproximação; contribuições a partir de seu pensamento.

Diante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta Semana Santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?

Cesar Kuzma

Isso nos leva a começar com perguntas, com questionamentos, a fim de perceber o quanto e de que forma esta realidade pandêmica nos interpela e de que forma a teologia da cruz de Moltmann pode nos ajudar nesta reflexão. Diante deste tempo, de dor e sofrimento, é necessário se perguntar: há espaço para a esperança? Há espaço para a vida? Há espaço para a esperança e é possível esperar algo novo a partir deste ponto, algo que possa trazer vida, que traga uma nova chance de vida em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança em um mundo marcado pela morte? Como ter esperança e falar de esperança em meio a tantas cruzes que se enfileiram em nossa história? Como olhar para cada cruz e ver nela uma vida, uma história, um caminho que foi interrompido por um mal sistêmico que parece nos dominar e nos deixar sem saída? Como que, nesta semana santa, ao meditarmos a Paixão de Jesus, ao olharmos para a sua cruz e nela vermos as suas opções e vida (pelo Reino), podemos ver as muitas cruzes que nos cercam e nela encontrar espaço de resistência, de acolhimento, de justiça, de protesto, de luz e de esperança?

Cada vida perdida é uma perda da humanidade, uma chaga que se abre, uma ferida aberta em uma sociedade que não consegue encontrar caminhos de sobrevivência e de resistência, de amor e solidariedade. Diante do sofrimento e mortes prematuras e injustas, usamos aqui uma frase do teólogo Gustavo Gutiérrez (2000, p. 19), tirada de seu livro “Beber em seu próprio poço”, e perguntamos com ele: “como cantar quando a dor de um povo parece sufocar dentro do peito?”. Gutiérrez faz este questionamento na Páscoa de 1983, o que nos leva hoje, em meio a Páscoa de 2021, seguir pela mesma intenção. Nós nos interrogamos: como viver quando nossos irmãos e irmãs padecem em leitos de hospitais, na espera em ambulâncias, morrendo em silêncio, no escuro, sem ar, sem vida, sem afeto e carinho? Como sobreviver quando outros padecem? Como esperar na ressurreição, se a nossa frente só vemos dor, sofrimento e morte? Entre as cruzes e as esperanças, como posicionar a nossa fé e a nossa reflexão sobre ela?

Como viver quando nossos irmãos e irmãs padecem em leitos de hospitais, na espera em ambulâncias, morrendo em silêncio, no escuro, sem ar, sem vida, sem afeto e carinho? Como sobreviver quando outros padecem? Como esperar na ressurreição, se a nossa frente só vemos dor, sofrimento e morte? Entre as cruzes e as esperanças, como posicionar a nossa fé e a nossa reflexão sobre ela?

Cesar Kuzma

Neste espaço difícil e solitário, muitos são os Cireneus que aparecem no caminho, pessoas que se aproximam e estendem a mão, de modo livre e solidário. São pessoas que tentam oferecer um pouco de vida em meio a morte e que na estrada gritam e passam a esperar por aqueles que já não têm mais forças nem esperança. No entanto, eles não podem ir até o final, eles apenas caminham conosco e nos acompanham por uma parte do caminho, dividem o peso da nossa cruz, mas também a sua força é limitada. O destino de quem padece é isolado, solitário, doloroso, silencioso e de morte. No abandono da vida e na indiferença que mata, clamamos como Jesus na cruz: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Clamamos ainda: por que fomos abandonados por aqueles que deveriam nos ajudar, nos cuidar e nos salvar?… É claro que não há o abandono daqueles que nos amam, embora possamos sentir como se ele existisse.

O que temos é a impotência, o limite divino-humano diante do mal que nos arranca todas as forças e que nos faz sentir como se estivéssemos sós. Sentimos e choramos, sofremos e nos entregamos a um fim que parece estar perto e que nos amedronta. Da mesma forma aqueles que nos amam e da mesma forma os profissionais da saúde, que mesmo na impotência frente a este mal, no limite do que podem fazer, se entregam totalmente, se fazem solidários, seguram a mão de quem está só e tentam fazer com que cada segundo possa ser pulsado como um sinal de vida e esperança, um sinal de amor e de entrega total. Também eles sofrem, também eles se sentem sozinhos e impotentes diante de uma doença que domina e faz com que a morte siga mais perto.

Esta pandemia nos fez perceber pessoas e espaços entre as cruzes, pois todos somos vítimas e todos somos tocados por este estado de dor que nos deixa impotentes, sem ação, com medo, sem razão e sem voz. Há aqueles que padecem e há aqueles que padecem com eles. Há aqueles que morrem e há aqueles que morrem com eles, numa relação que revela a humanidade e a amplitude dos limites e das relações existentes entre nós. Se, por um lado, sofremos o descaso do Estado, tomado pela arrogância e com pessoas insensíveis diante da morte, por outro lado, as atitudes daqueles que se entregam e se doam aos outros fazem com que possamos perceber que a vida ainda resiste, que a esperança insiste e que o amor persiste. Em seu livro, O Deus crucificado, Moltmann dirá que “através dessa dor desperta um amor que não pode ser mais indiferente a tudo, mas que procura o outro, o feio, o indigno de amor para amá-lo. Na dor, cessa aquela apatia, na qual tudo é desinteressante, porque, na dor, sempre há o encontro com o igual e com o conhecido” (2011, p. 62). Esta pandemia nos possibilitou o encontro com a humanidade, com os limites do humano. Ela desperta o pior e o melhor de nós, e a cruz, ao ser sentida em meio ao limite humano, favorece o encontro que pode libertar e nos conduz a uma nova humanidade, na sensibilidade, na solidariedade, na entrega, na vida.

“através dessa dor desperta um amor que não pode ser mais indiferente a tudo, mas que procura o outro, o feio, o indigno de amor para amá-lo. Na dor, cessa aquela apatia, na qual tudo é desinteressante, porque, na dor, sempre há o encontro com o igual e com o conhecido”

Jürgen Moltmann

Esta é uma tese central na teologia da cruz de Moltmann, que é o grito do Cristo abandonado que soa como um grito de todos os abandonados da história, das vítimas de nosso tempo. Este grito, ao ser refletido por Moltmann, questiona a nossa imagem de Deus, a nossa percepção do Cristo e nossa atitude enquanto humanidade e igreja. Neste momento pandêmico, quando morte e solidão se entrecruzam, esta é uma percepção válida e ela nos faz olhar com profundidade a esta questão. Que Deus buscamos e a que Deus clamamos? Que Cristo esperamos? E que Igreja somos, que humanidade construímos e fazemos parte? Muitos são os abandonados, muitas são as vítimas, muitas são as cruzes que se enfileiram nesta pandemia e que acusam a nossa falta de amor e de sentimento para com o outro, de quem deveríamos nos fazer próximos. A cruz, de que fala Moltmann, não deve ser adorada e não deve ser sinal de conformação. Não se assume o sofrimento passivamente, mas ativamente, na luta para superá-lo e no enfrentamento do mal que nos ameaça. A cruz nos abraça e no abraço nos acolhe. Tudo aponta para ela, toda dor, todo pecado, todo o mal, todo sofrimento; tudo aponta para a cruz, mas a cruz transcende para a vida e aponta para a ressurreição. A cruz nos faz olhar a nós mesmos e nos convida a percorrer o caminho daquele que deu à cruz um sentido novo, que fez da justiça a causa de um Reino, que no amor nos reuniu e que na esperança nos libertou para uma vida que se faz sempre nova. A cruz nos consola, mas também nos liberta e nos convida a protestar contra toda a injustiça. Na cruz protestamos contra os agentes do mal, contra o poder que oprime e exigimos vida e liberdade.

Sobre este ponto, fizemos uma reflexão em nosso livro (O futuro de Deus na missão da esperança), que reproduzimos abaixo:

[…] para compreender um Deus que seja solidário com o sofrimento humano, Moltmann nos convida a observar a atitude depositada pelo homem de Nazaré. Nesta atitude, Jesus (Deus-Homem) não olhava o outro apenas como outro, não o via como alguém estranho a si mesmo, mas sim se aproximava dele, tornando-se próximo, colocando-se junto, ao lado, sendo solidário (cf. Lc 10,25-37). Nisso consiste a atitude cristã que decorre da prática de Jesus. Aí ele é solidário, e também sofredor, pois faz da nossa vida algo importante a ele, vive-a em seu ser, sofre conosco, é solidário. Por isso nos liberta e por isso nos redime e nos salva. É a obra do amor, que é participativo e convidativo, que enche de esperança (2014, p. 89).

Nesta citação acima, temos o olhar e a ação solidária de Jesus, ao assumir a dor e o sofrimento, que indica, consequentemente, como deve ser a nossa ação e atitude cristãs, a nossa postura frente a este tempo que nos interpela e nos convida a um momento novo. Esta percepção se faz presente na teologia da cruz de Moltmann, pois a cruz, de Cristo, torna-se ponto de interrogação para as igrejas cristãs, para a prática que assumem e para a postura que se deve ter frente ao mal presente na sociedade. Na cruz mostramos a identidade e a relevância de nossa fé. Ao sermos interrogados pela cruz, poderemos perceber se estamos pertos ou distantes da prática de Jesus e se a nossa atitude humana-cristã é capaz de produzir vida e esperança. Em meio ao tempo pandêmico que estamos vivendo, onde os prédios eclesiásticos se tornam vazios e quando todos somos convidados a um novo entendimento do ser cristão, do ser Igreja, esta provocação feita por Moltmann ganha toda relevância. A cruz da Igreja nem sempre se assemelha a cruz de Jesus, principalmente quando a Igreja (e sua cruz) insistem em se manter firmes em um mundo que padece e agoniza no sofrimento. A cruz pela cruz se torna vazia de conteúdo e significado.

A cruz só tem sentido por Aquele que nela se fez presente, que a assumiu com a própria vida e que no percurso até a cruz deixou um caminho de seguimento. É por este caminho que deve seguir o cristão, e nele é que se encontra a cruz que deve ser assumida e que dá sentido à fé e que nos faz ser igreja, é onde se encontra nossa identidade e relevância. Esta cruz não é um adorno religioso, mas uma proposta de vida, uma opção que tem base nas opções de Jesus, capazes de gerar vida, justiça e libertação. O tempo pandêmico nos convida a este caminho e as cruzes que vemos nos desafiam na esperança, para que a vida renasça e que o mundo se abra a vida em sua plenitude.

Mas a cruz não é fim em si mesma. Ela pertence a história, ao tempo, ela está ligada a este mundo. Por esta razão todas as dores, sofrimentos, doenças, pecados e morte apontam para a cruz. Mas a cruz recebe tudo isso e transforma em vida, em ressurreição, abre o tempo para um espaço novo. Este é o sentido da Páscoa e este é o fundamento da nossa esperança. Não se trata de ignorar a cruz e o sofrimento, mas ao assumi-los criticamente, tentar ver além deles, no desabrochar de uma vida que não pode ser vencida, onde a morte já não existe e o sorriso enxuga toda lágrima. A vigília da Semana Santa nos faz recordar os passos de Jesus, seu caminho e proposta, sua práxis e opções e meditar com ele a experiência da cruz. Cruz que é consequência de uma vida, de uma vocação assumida e que traz a nós um espaço de liberdade. Mas a vigília da Semana Santa, onde o pão é repartido e a paixão é assumida, tem o sábado da espera, do silêncio, do tempo que irrompe e que abre a Páscoa da ressurreição. Este é o sentido e é aqui que repousa toda esperança.

É desta forma que devemos entender este tempo pandêmico, quando a dor e a morte batem a nossa porta e aqueles que nos são próximos, aqueles que amamos são levados e se tornam estatísticas de uma triste realidade. Nunca serão esquecidos e nunca esqueceremos. A experiência da cruz não nos deixará passivos frente a esta dor, mas nos dará forças para resistir e enfrentar. Aquele que morreu solitário também se fez solidário para que ninguém se sinta solitário e que aprendamos, com ele, a viver de modo solidário, levando vida e esperança para todos. As muitas mortes que temos, as muitas cruzes que vemos questionam a nossa vida e a nossa sociedade. Que possamos viver, resistir e sentir. A esperança é mais. Na linha teológica de Moltmann, ele dirá que a teologia da cruz não nos apresenta um Deus morto, mas um Deus que se fez vida, que se fez pão, que se fez justiça, que se entregou a todos e que se fez solidário. A teologia da cruz nos convida à fraternidade com o Deus de Jesus Cristo, ao encontro do crucificado-ressuscitado, na abertura ao Espírito que nos renova e nos liberta e reacende em nós a chama da esperança.

Entre as cruzes e esperanças vemos um Deus que nos liberta e que nos enche de sentido.

(Os grifos sãos nossos)

Cesar Kuzma é teólogo leigo, casado e pai de dois filhos. Doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia. É o atual presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER e autor de livros e artigos sobre a teologia do laicato. Dentre eles: O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica (2014), um estudo sobre a obra do “teólogo da esperança”, o protestante Jürgen Moltmann, e Leigos e Leigas – força e esperança da Igreja no mundo (2009).

Fonte:

www.ihu.unisinos.br

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Desafios de uma Igreja em saída: avanços e resistências em sete anos de papa Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/desafios-de-uma-igreja-em-saida-avancos-e-resistencias-em-sete-anos-de-papa-francisco/ Sun, 15 Mar 2020 11:15:26 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=34343 [Leia mais...]]]> Francisco nos permite sonhar com coisas maiores, cuja concretização destes sonhos depende de todos nós; e é aí que entra o chamado para uma nova percepção e responsabilidade eclesial, uma maturidade que deve ser buscada, construída, sem a qual não haverá qualquer condição para uma Igreja em saída“, escreve Cesar Kuzma, teólogo leigo, casado e pai de dois filhos, doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde atua como professor-pesquisador do Departamento de Teologia, atual presidente da SOTER e autor de livros e artigos sobre a teologia do laicato, como Leigos e Leigas, Ed. Paulus, 2009.

Confira o artigo: 

Desde o início do seu Pontificado, Francisco tem surpreendido a todos com sua postura e coragem. Desta forma, Francisco mostra um novo dinamismo para enfrentar situações que interpelam a Igreja em sua caminhada e, assim, abrir novas saídas e perspectivas, sejam elas em diretrizes concretas sejam elas em oportunidades que permitem a liberdade de um pensar e de um questionar da própria posição eclesial, bem como de sua relação com o mundo, sua mensagem e seus desafios. Depois de um inverno rigoroso em tempos eclesiais e que culminaram com a renúncia de Bento XVI, a eleição de Francisco e a novidade que ele trazia, desde o primeiro instante, nos fazia crer numa primavera [e muitos escreveram a respeito disso], em um momento novo, e, ao mesmo tempo, com grandes indicações de que este processo seria desafiador. 

Pela primeira vez na história tínhamos em Roma um Papa que vinha de fora do grande centro, vinha da periferia, “do fim do mundo”, maneira como ele mesmo disse na Praça São Pedro, e apenas este fato já questionava o status europeu e a eclesiologia que este modelo vinha sustentando há séculos. É necessário dizer e entender que algo mudou na Igreja na noite do dia 13 de março e esta mudança não pode ser compreendida como mera casualidade, pois ela traz algo mais profundo, já que oferece outro caminho e outra resposta, segue atenta a novas urgências que exigem uma nova agenda e atitude eclesiais. 

Se pegarmos o itinerário de Bergoglio, percebemos que ele era alguém estranho aos grandes círculos eclesiásticos e distante de toda forma de disputa de poder que perpassava e que ainda perpassa em muitas estruturas eclesiásticas ao redor do mundo, sobretudo no Vaticano. Por ser de fora, por ser da periferia eclesial, Francisco se torna alguém livre para questionar toda uma condição de Igreja que, em grande parte, serve a si mesma e que muitas vezes não se sente amedrontada ou inibida em se manter distante do Evangelho, quando, em algumas situações, esta mesma Igreja se faz permissiva com atrocidades e práticas abusivas e de corrupção. São muitos os escândalos e eles revelam uma face pecadora de uma Igreja que deveria ser sinal e sacramento do próprio Evangelho. Por esta razão que, para muitos que vivem e sobrevivem das estruturas clericais/de poder, é mais fácil criar/manter um retrato teológico que tenha Jesus como simples objeto de culto e/ou adorno religioso de uma prática de fé que se percebe em grande parte vazia, ou sem um sentido real, convidativo a algo novo, já que a práxis de Jesus e o Evangelho que dela provém questionam o poder dominante; logo, a indiferença e o foco no institucionalizar da fé garantem aos que se cercam ao poder a manutenção do próprio sistema, afastando todo e qualquer profetismo. 

Não é à toa que Francisco questiona esta estrutura e se torna um grande crítico do clericalismo, o qual classifica como uma ‘enfermidade’ que destrói a Igreja por dentro e que está impregnada com muitos rostos e de muitas formas. Então, Bergoglio, ao ser eleito e ao se chamar Francisco, revela algo novo e este novo interrompe um processo que havia sido implantado nas três últimas décadas e abre espaço para uma nova etapa, algo diferente que reclama toda uma atenção de quem observa e passa a perceber o avançar destes movimentos. Ao interromper o processo vigente, Francisco resgata o espírito do Concílio Vaticano II e começa a colocar em prática as suas questões, muitas delas ignoradas ou interrompidas, chamando todo o povo a uma nova etapa evangelizadora (EG 17) e a uma nova responsabilidade: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). 

Observando Francisco, podemos perceber estas inclinações pelo seu modo de ser e estar, pela tomada de posições que faz e pelas decisões que toma em determinadas circunstâncias; da mesma forma podemos perceber esta intenção pela simplicidade como se apresenta e pelo trato que tem com as pessoas, pelo discernimento que acompanha o seu caminhar [muitas vezes solitário pelos corredores e ruelas do Vaticano, pelas palavras simples e diretas que atingem pontos concretos da fé cristã e/ou da vivência de muitas pessoas e que desafiam a Igreja a uma nova direção, a novas respostas, em saída, rumo a novos horizontes que os sinais dos tempos de hoje nos querem interpelar. Por esta razão que, neste 13 de março, ao celebrarmos sete anos de sua eleição, ainda podemos dizer que estamos diante de um novo tempo, e que este ‘novo tempo’ produz um ‘canto novo’, como diz o salmista (Sl 96), e isso muda toda a dinâmica do que estamos vivendo e do que podemos esperar. Francisco diz: 

Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! […] prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. […]. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6,37)” (EG 49). 

Francisco nos permite sonhar com coisas maiores, cuja concretização destes sonhos depende de todos nós; e é aí que entra o chamado para uma nova percepção e responsabilidade eclesial, uma maturidade que deve ser buscada, construída, sem a qual não haverá qualquer condição para uma Igreja em saída. 

No entanto, nem tudo são flores neste caminho de Pontificado, o que nos permite trazer, tendo já passado sete anos, uma incômoda indagação: quem são aqueles que realmente apoiam e aqueles que apenas dizem apoiar Francisco, mas que na realidade não o fazem?… E este questionamento busca atingir a todos: leigos, leigas, religiosos e religiosas, sacerdotes, bispos e cardeais. O que é de verdade e o que é apenas aparência?… 

Creio que é importante fazer esta interrogação, pois esta postura de Francisco que passou a encantar a muitos, dentro e fora da Igreja, começou também, já em seu início, a deixar um rastro de insegurança e de inquietude para ‘outro grupo’, formado por ‘aqueles’ que estavam acomodados nas estruturas de poder e nos diversos privilégios que a tradição foi alargando e construindo ao longo dos tempos. Esta recusa a Francisco tem se ampliado muito nos últimos anos e a agressividade como partem os ataques e a surpresa por serem eles de pessoas tão próximas e de posições de serviço e poder eclesial, leva-nos a questionar a razão de tais ataques. Estaria Francisco, pelo seu jeito de ser e de conduzir a Igreja, questionando alguns privilégios e posturas, que em si, nada possuem de evangélicas e de serviço ao Reino? Seria este também um preconceito quanto a origem latino-americana do papa, que aliás, traz consigo o jeito de ser e de fazer Igreja deste continente, marcado por uma teologia própria e por um recepcionar criativo do Vaticano II, pelas Conferências Episcopais, principalmente em Medellín? Haveria em Roma um assombro por uma perspectiva decolonizadora que surge com Francisco, chamando a atenção da Igreja para as periferias e para a força que elas produzem, para um novo modo de ser Igreja? É evidente que um pouco de tudo isso ajuda a responder que sim. No entanto, este questionar e propor de mudanças toca em algo mais profundo que não se limita a gestos externos, a ditos e a vestimenta simples adotada por Francisco. Vai mais além. 

Estes privilégios e vícios estruturais tornaram-se mais fortes nos últimos anos, praticamente ignorando os avanços que foram apresentados pela eclesiologia do Vaticano II, que pedia uma Igreja mais sinodal, descentralizada e em respeito à dinamicidade do Povo de Deus, que constitui e que é Igreja em sua totalidade. Sem a compreensão de uma Igreja Povo de Deus não se torna possível a dimensão de communio, que é fundamental à eclesiologia conciliar, para que Cristo possa ser o centro e que, com a doação de seu Espírito, possa oferecer dons e carismas para a toda a Igreja, a fim de edificá-la como proposta de construção do Reino de Deus. Esta categoria Povo de Deus é bem cara à teologia/eclesiologia de Francisco e totalmente fiel ao que decidiu o Concílio, tanto que na Evangelii Gaudium Francisco resgata esta posição (EG 111), ao dizer que se trata de um “povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional”. 

Esta realidade teológica trazida pelo Vaticano II continua sendo uma busca, algo a ser construído, pois, de fato, salvo alguns exemplos, a Igreja, em suas estruturas, parece permanecer [e assim desejam alguns!] presa a um passado que diz muito pouco ou quase nada ao nosso tempo. Torna-se doentio. Trata-se de uma orientação eclesiológica centralizada em um modelo já passado e que está marcado fortemente por normas, posturas, práticas e vestimentas que carregam estruturas e privilégios enrijecidos e que, naquilo que se pretende, decide por se manter fechada e isolada de toda e qualquer novidade que avança e que atualiza a Palavra do Evangelho, que deve ser sempre boa notícia. Incrível, mas este ‘grupo’, que se opõe, ao invés de se abrir e se inculturar numa experiência de Cristo vivo e que a cada tempo responde e oferece uma Boa Nova ao ser humano concreto, opta por moldar um Jesus dogmatizado, num estereótipo intocável, numa liturgia já fria, numa teologia não responsável e num desencarnar-se da própria história, sendo que esta foi assumida por Deus integralmente. 

Se a proposta que se teve com o Vaticano II foi de avançar e dialogar, entendendo as grandes questões do mundo moderno, a ideia que este grupo [que se opõe] defende é avançar para conquistar, para enfrentar, para manter e impor um contexto e postura religiosos que já não garantem nada, não acrescentam e tampouco oferecem algo concreto e libertador. No dizer de Francisco na Evangelii Gaudium, parecem peças de museus (EG 95). O triste é que elas estão mais presentes do que imaginamos e estão espalhadas por todos os lados. Estão de alto a baixo, de um lado a outro, em vários espaços e ocupam setores estratégicos que impedem um avançar de uma Igreja em saída, ao mesmo tempo em que dispersam as pessoas com uma suposta eclesialidade e catolicidade que dizem ou mostram ter, mas que na verdade se faz apenas aparente. 

É evidente, então, que as atitudes de Francisco passam a incomodar a este grupo que se vê orientado por esta outra eclesiologia, pois ele, Francisco, em seu ministério, dá menos valor a estas tradições, chamando a atenção da Igreja a outra razão, por certo mais importante, que é o anúncio do ressuscitado de forma coerente e em atenção aos sinais dos tempos, aos clamores do povo, aos gritos dos empobrecidos e injustiçados pelo sistema e em resgate de todas as vítimas de nossa sociedade que exclui, agride e mata. Francisco torna-se incômodo, porque o Evangelho assim o é, e a Igreja deve seguir por aí. 

Nestes anos que se seguiram com o seu Pontificado, podemos dizer que muita coisa se tornou mais clara e outras que eram demasiadamente carregadas se tornaram mais leves. A Igreja respira um novo ar, um ar fresco. Discursos que eram impensáveis passam a ser dialogados, um novo modo de pastorear a Igreja vai tomando corpo, expectativas vão sendo geradas, propostas antes pensadas e rechaçadas são novamente colocadas à mesa e passam a entrar na pauta de uma Igreja que sabe que precisa se reformar, caso queira ser fiel ao Evangelho e caso pretenda – ainda – dizer algo concreto e verdadeiro ao mundo de hoje. Por certo, isso anima a muitos de nós. Mas, também, por outro lado, incomoda e gera revolta em outro grupo, um grupo que já não se esconde e que parece ferir com rebeldia e agir com deslealdade, já que a grande recusa a Francisco e às suas reformas vem de dentro, da própria estrutura, do alto e baixo clero, de leigos fundamentalistas, por parte de alguns bispos e cardeais, de pessoas mais preocupadas em se manter como patrimônio religioso histórico do que acolher e ouvir o que o Espírito vem dizendo à Igreja (cf. Ap 2,11). 

Por certo, o tecido do que estou expondo aqui é mais complexo e merece uma análise mais detalhada, todavia, minha intenção neste momento é de apenas dizer que há algo de novo na proposta de Francisco e que esta novidade, em meu entender, é um despertar do Espírito sobre toda a Igreja, um chamar Daquele [Cristo] que é o nosso pastor. 

Ainda sobre o movimento de recusa e de oposição, alguns pontos nos servem de exemplo e merecem nossa atenção, pois estes são apenas o ponto visível de algo que é ainda mais vasto e tem várias expressões: 

1) A postura do Cardeal R. Burke logo no início, após a publicação da Evangelii Gaudium, ao dizer que a Igreja estava sem rumo é um grande exemplo disso. O mesmo cardeal se une a outros na elaboração das famosas dubias sobre a Amoris Laetitia, numa tentativa mais de desestabilizar e desunir, do que de interesse em qualquer resposta. Tentou-se colocar Francisco em prova, questionando até mesmo sua fé e autoridade, assim como os fariseus fizeram com Jesus. Sem contar o fato de que Burke passou a peregrinar pelo mundo, inclusive no Brasil, mostrando-se totalmente contrário ao documento e às conclusões sinodais. 

2) Podemos colocar nesta lista o Cardeal G. Muller, que, desde o Pontificado de Bento XVI estava a frente da Congregação para a Doutrina da fé, mas que passou a ser um ponto de desequilíbrio dentro da estrutura do Pontificado de Francisco. Ao deixar o cargo, provavelmente por ressentimentos, passa a agredir e a convocar o Papa para um debate teológico, para um debate público. E o fez insistentemente, mais de uma vez. Müller também passou a viajar pelo mundo com conferências em arquidioceses e universidades que mostravam mais simpatia por seu discurso e certa indiferença ao que vem de Francisco. Ele também esteve presente no Brasil, onde lançou livros e fez conferências. 

3) Podemos mencionar as dificuldades que se seguiram nos dois Sínodos sobre a família, em 2014 e 2015. Ali, o que mais se discutiu foi a eclesiologia de Francisco, muito mais do que os grandes temas que circulam as realidades das famílias e as questões de sacramentalidade e sexualidade, que eram assuntos Sinodais. Ainda assim, mesmo com limites que se fizeram presentes, o documento Amoris Laetitia conseguiu avançar no âmbito da pastoral, da misericórdia e da moral, abrindo novas perspectivas. Seguramente, a recepção e a aplicabilidade deste documento fazem e farão repensar aspectos teológicos fundamentais. 

4) Podemos colocar nesta lista as manifestações recentes do Cardeal R. Sarah sobre a liturgia, principalmente a confusão gerada em torno do livro produzido por ele, que diz ser também, elaborado em parceria e em consentimento por Ratzinger, o que gerou um desiquilíbrio e uma tentativa de usar o papa emérito para desautorizar Francisco e contrapor os dois papas. Inclusive este é um ponto que une a muitos dos que se opõem a Francisco, o uso da figura do papa emérito como segurança da verdade e da ortodoxia. Trata-se de uma intenção baixa e injusta, uma vez que a renúncia colocou Bento em uma situação diferente e, pelo menos abertamente, nunca se viu uma disputa de espaço e uma oposição entre os dois papas, mesmo que eles tenham perspectivas teológicas e modo de pastorear muito diferentes. Na ocasião do livro, a grande questão levantada por Sarah dizia respeito ao celibato e o entendimento litúrgico e sacramental que isso traz, todavia, este pretexto esconde algo mais sério, que é a dificuldade de entendimento de algo que se faz novo e que exige uma nova postura e atitude. Contudo, é provável que este livro e a discussão gerada por ele, também pela tentativa de contrapor os dois papas, tenha causado um freio na Exortação Querida Amazônia, algo a se analisar profundamente, e por aí vai… 

5) Ainda neste quadro, podemos nos questionar sobre as posturas de muitos bispos frente ao papa Francisco, e isso em diversas localidades. Se por acaso, a postura e oposição de muitos deles não se tornam tão públicas como a destes cardeais listados acima, podemos olhar a Igreja em suas localidades e verificar o que de Francisco e da Evangelii Gaudium e dos demais documentos foram, efetivamente, assumidos em cada local. Vamos pensar que em sete anos de Pontificado, muita coisa poderia ter sido feita, mas será que aconteceu? Será que houve mudanças? Será que houve interesse? Será que estão sendo tomadas medidas contra o clericalismo e contra fechamentos institucionais? Ou será que Francisco é apenas um adorno religioso que nos dá certa referência católica, mas que das suas palavras, propostas e atitudes, se tem feito muito pouco?… Para pensar…

Logo, não bastam palavras de apoio ou referências ao papa Francisco, que por certo são importantes [!], não há dúvida, mas é necessário atitude e compromisso com a causa do Evangelho e com o horizonte desta “saída” que ele propõe, que tem endereços bem determinados: a todas as periferias, existenciais e sociais. Assim, um olhar para muitas Igrejas locais nos fará perceber a verdade sobre esta realidade, questionando-nos sobre o que mudou nestes sete anos com Francisco, já com orientações do Magistério muito bem colocadas e com exemplos de atitudes que poderiam (pra não dizer, deveriam) ser seguidos. E não dizemos isso apenas na intenção de um executar de cima para baixo, até porque esta não é a proposta de Francisco, mas sim no exercício da sinodalidade, de um caminhar juntos como povo, com verdade e coragem frente aos desafios. Esta atenção dada aos bispos irá se refletir nos demais membros da comunidade, nos demais ministérios e expressões eclesiais. 

6) Ainda há toda a tentativa de desestabilizar Francisco moralmente e politicamente, e esta foi a tática de Carlo Maria Viganò, ex-núncio norte-americano, que fez acusações contra o papa, dizendo que ele teria conhecimento de situações de abusos sexuais contra menores nos Estados Unidos e que não tomou providências, e isso levou Viganò a pedir a renúncia de Francisco. A denúncia se tornou infundada e apressa o fato de que Francisco deu passos mais sólidos em relação aos abusos sexuais do que deram seus antecessores. Este ainda é um mal que existe na Igreja e é um mal que envergonha a todos. Há que agir com rigor e seriamente. Mas a denúncia se mostrou infundada e revelou toda uma articulação política para desestabilizar Francisco, tendo para isso o apoio de grupos e empresários, como Steve Bannon, estrategista e especulador político ligado ao governo Trump, que também tem influência nos pleitos políticos de outros países, como no Brasil, onde também Bannon articulou a campanha de Bolsonaro, sobretudo pela manipulação das redes sociais. 

7) O Sínodo da Amazônia oferece dois momentos com Francisco: um primeiro, a percepção de que ele estava em paz e se sentindo bem com toda a proposta que estava sendo desenhada. Estava envolvido e fazia pulsar seu ardor missionário. O Sínodo foi profético e com coragem tocou em pontos centrais e objetivos, não apenas para pensar a Amazônia, mas para pensar toda a Igreja. No entanto, há uma dificuldade de a Igreja se entender sinodal, de aprender a caminhar junto e de se abrir e oferecer novas respostas. Isso fez com que este evento fosse alvo de especulação e de inúmeras ofensas ligadas a grupos mais conservadores, que acusavam Francisco de ferir pontos centrais da fé cristã e católica. O Sínodo produziu um documento final profético, que tem o seu valor magisterial e deve ser estudado e aplicado (QA 2,3), e também ofereceu uma exortação [Querida Amazônia-QA], a qual nos chama a atenção para quatro sonhos, sendo que um deles era o sonho eclesial, e neste sonho, a pressão estrutural que ainda pesa na Igreja se tornou mais forte e muito do que era esperado não ocorreu. A chave agora, é o retomar do Relatório Final, que tem sua autoridade e que vai exigir uma postura criativa e ousada da parte da Igreja que está na Amazônia, e que pode oferecer um caminho. É o que se espera e um ponto que devemos trabalhar para ajudar. O processo sinodal não se encerrou. 

É fácil de perceber que estes poucos exemplos [são muito mais e maiores] estão na alta estrutura e representam uma dimensão da Igreja que não quer sair. Chega a ser irônico e este é um paradoxo interessante, porque faz sete anos que Francisco insiste em uma Igreja em saída, porém, esta Igreja, na estrutura que está não quer sair. Faz-se necessário questionar então qual deve ser a Igreja dessa saída, para que se possa avançar e caminhar com liberdade e profetismo, uma vez que o peso institucional coloca obstáculos que nos impedem de ver o que o Espírito quer nos mostrar, insistentemente. Penso que três perguntas podem ser colocadas aqui e elas podem ajudar este discernimento: Por que saímos? Por quem saímos? Para onde saímos?… Por que, por quem e para onde?… Se estas três perguntas não forem bem respondidas, corre-se o risco de sair com a estrutura e esta não apresentar o rosto do Evangelho, que é convidativo e esperançoso, transfigurado num Cristo ressuscitado que é alcançado pelo caminho do crucificado, que pode ser seguido na ótica do Reino, que se traduz por um caminho de amor, justiça e paz, como anunciou a Conferência de Medellín, em 1968. Portanto, é necessário sair e rever toda a estrutura, já que esta que temos conosco não quer sair e está fechada em si mesma. 

É o que nos leva a descer ainda mais na nossa reflexão, já que Francisco insiste muito contra o clericalismo, sendo este um dos grandes males da Igreja. E, por certo, os outros problemas e pecados eclesiais decorrem deste ou são alimentados por este. Perguntamos: será que nestes sete anos de Francisco conseguimos avançar para uma Igreja menos clerical? Obviamente que não, é notório, pois esta enfermidade está entranhada na estrutura, vem sendo solidificada há muitos anos, ela alimenta o modelo de formação dos atuais e futuros sacerdotes e se alimenta da pouca e dificultosa formação de nossos leigos e leigas. A Igreja communio que foi pensada no Vaticano II torna-se utópica, já que se insiste, em várias matrizes, e em vários ângulos, com a proposta hierárquica, firmando pé em um modelo institucional que já não responde aos desafios e que ficou preso em um passado. E o pior é que não se entende aqui a hierarquia como proposta de serviço [que é e deveria ser a sua função], mas como espaço de poder, e é daí que surgem todos os problemas. Como consequência, a dimensão Povo de Deus, que foi a grande novidade conciliar, deixa de acontecer. 

Ora, se entendemos que a Igreja é povo, Povo de Deus, é necessário se questionar: quem é este Povo? Que voz ele tem? E por que, de dentro deste Povo, alguns insistem em levantar a voz mais forte, não com autoridade gerada pela comunidade, mas num posicionar-se com status de poder, dominando e tornando pequenos os demais? Perde-se o valor do batismo e anula-se, em parte, a proposta de um Reino que deve ser construído a partir da promoção humana, do resgate dos últimos e da autêntica opção pelos pobres, pelo resgate das vítimas e pela palavra profética que a Igreja deve ter contra os poderosos que, ao contrário do Evangelho, deixam cada vez mais os nossos pobres de mãos vazias, destronados de seus direitos e rebaixados na sua dignidade. 

Sim, há muito o que celebrar com Francisco em seus sete anos de Pontificado. Não há dúvidas de que ele é um dom, um presente para a Igreja e para o mundo. Por certo há limites na sua pessoa e na sua interpretação dos fatos, no seu modo de gerir a Igreja, na sua condição de pastor e de humano. Ele não responde a todos os nossos anseios e isso se faz compreensível. Ele se assume como pecador, ele mesmo o diz, e é bom também que Francisco nos ajude a dessacralizar o papado, sendo um com o povo, mesmo sabendo de sua importância e responsabilidade na condução de todos nós. Cristo deve ser o centro e é o seu Espírito que nos conduz à realidade do Reino, que nos é oferecido, prometido, mas para o qual também somos chamados a construir, como resposta, como atitude responsável de fé e de esperança. Isso se faz com caminhos, isso se faz com encontros, isso se faz na abertura. 

Na proposta de Igreja em saída de Francisco, ele nos encoraja a sair, a ousar, a se envolver, a se rebaixar e a celebrar (EG 24), e isso se faz necessário. O mundo hoje precisa de um novo pulsar, de uma nova referência e de um novo encontro. Que possamos ser este sinal e favorecer o encontro de realidades, numa cultura do encontro, onde o fraco se torna forte, onde o perdido é encontrado e o que é morto volta a viver. Hoje, o mundo nos traz descrença e desesperança, ele nos divide e não permite uma mesa comum, onde o pão é repartido. Penso que a novidade do Evangelho e que se pulsa em alegria entra justamente aí, como resposta, como amor que transforma e nos impele a uma ação. É o transformar e o florescer de um mundo novo, trazido pelo Cristo que ressuscitou e que penetrou na trama da história humana (EG 278). Que possamos sentir esta esperança e que possamos realmente sair, sair ao encontro de uma esperança viva. 

Parabéns, Francisco! São sete anos que nos interpelam e nos questionam no ser Igreja. Que possamos ter coragem para sair e que o Espírito nos impulsione e nos alimente, sempre.

Fonte:

IHU

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O que é mais cruel: a violência que mata o corpo ou a que, covardemente, tenta destruir o nome e o legado da vítima? https://observatoriodaevangelizacao.com/o-que-e-mais-cruel-a-violencia-que-mata-o-corpo-ou-a-que-covardemente-tenta-destruir-o-nome-e-o-legado-da-vitima/ Tue, 20 Mar 2018 12:16:28 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27625 [Leia mais...]]]> Ficamos impactados eticamente ante o esforço cruel e desumano de tantos, pelas redes sociais, dedicados à covarde e imoral tarefa de destruir o nome e o legado da vereadora Marielle Franco, vítima da barbárie de nossa sociedade.

A reflexão do teólogo César Kuzma, “A segunda morte de Marielle, lança um facho de luz nas trevas desses tempos sombrios que insistem em ameaçar e violentar a dignidade da vida.

Evangelizar é, em primeiro lugar, acolher, de tal modo e profundamente, a boa nova do amor de Deus anunciada e testemunhada com fidelidade até o extremo por Jesus de Nazaré, que nos transformamos e nos comprometemos com a defesa incondicional da vida.

 

A segunda morte de Marielle

 

Há um sistema que mata! Mas há um fundamentalismo e conservadorismo (político e religioso) que insistem em matar ainda mais, mesmo depois, tem que sangrar. Incrível!

Há limite para o ódio? Chega a ser assustador.

Interessante como alguns rótulos colocados tentam definir e marcar as pessoas. Não se vê mais nada além, são respostas impostas de fora, taxativas e preconceituosas. Triste! Absurdo!

Enquanto alguns choram a morte de Marielle, sendo ela simbólica pela forma como aconteceu e por ser ela a pessoa que era (pela história, vida e opções que a precederam), outros, sem compaixão, ou com um pseudo-autoritarismo, até cristão, dizem: mulher, negra, pobre, de esquerda, feminista, defensora dos Direitos Humanos, lésbica…. Ofensas que matam! De novo! E outra vez!

Estes jargões atirados são na verdade causas de luta e protesto contra uma sociedade que “mata” mulheres, negando e abusando de seus direitos, ainda mais se forem negras e pobres, quanto mais vindas de comunidades carentes que denunciam qualquer “bom costume” perante a violência e injustiça que são submetidas diariamente. Para ter e ser voz tem que lutar, tem que sair sem abandonar a casa e a causa, sem negar a si mesma, na sua condição de mulher. Negra mulher, preta na cor.

Triste pecado de ser mulher, negra, pobre, de esquerda, feminista e homoafetiva! “Pecado” que gera indignação em alguns, escândalo em outros, silêncio de instituições, mas força em todos aqueles e aquelas que acreditam, que vivem e tem esperança. Sim, pode ser diferente!

É, nossas opções custam caro, paga-se com a vida! Esta atitude deveria pautar o sentimento cristão, e não jargões pré-concebidos, retirados de uma guerra fria requentada. Obriga-se a um olhar mais atento e um calçar os sapatos do outro, da outra, para seguir o caminho trilhado e entender, mesmo que de longe, as opções tomadas e a luta buscada.

Diante da morte temos duas atitudes: reverência e clamor. Reverência pelo mistério, e justiça pelo sangue das vítimas que pulsa em nós e que espera a ressurreição.

Esta deveria ser a mensagem cristã para a Páscoa, frente aos novos crucificados e crucificadas de hoje, mortos pelos tiranos da história, na esperança de um novo dia, onde reine a justiça, o amor e a paz, para todos, e todas!

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Cesar Kuzma é doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde é professor e pesquisador, e presidente da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião). Assessor da Comissão do Laicato da CNBB e do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal da América Latina (CELAM). Autor, entre outros, de O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica (2014), um estudo sobre a obra do “teólogo da esperança”, o protestante Jürgen Moltmann, e Leigos e Leigas – força e esperança da Igreja no mundo (2009).

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Entrevista com o teólogo César Kuzma – 2ª parte https://observatoriodaevangelizacao.com/entrevista-com-o-teologo-cesar-kuzma-2a-parte/ Sat, 02 Dec 2017 09:00:48 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=27006 [Leia mais...]]]> Na abertura do Ano do Laicato, dia 26/11/2017, o teólogo César Kuzma, assessor da Comissão do Laicato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal da América Latina – CELAM, presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER, concedeu entrevista ao Caminho Pra Casa, a Mauro Lopes e ao padre Luís Miguel Modino, pároco na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na qual explicita importante reflexão para alimentar os horizontes do Ano Nacional do Laicato.

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O Observatório publica, a seguir, a 2ª parte desta entrevista:

 

10. Há um eixo Conferência de Aparecida-Papa Francisco que vê a Igreja como de todos, como Povo de Deus, que pode tornar-se hegemônico ou isto é sonho?

R.: Francisco resgata a Conferência de Aparecida e tenta levar a dimensão “discípulo missionário” para toda a Igreja. Resgatar a Conferência de Aparecida é resgatar aspectos importantes do Vaticano II e da tradição da Igreja latino-americana. Francisco faz isso com muita naturalidade, é uma práxis que está com ele. Nesta visão de Igreja “todos” fazem parte, “todos” são responsáveis, “todos” são chamados e “todos” são sujeitos da fé que professam. Diante disso, vejo Francisco como um Papa que cria processos. Isso é importante: processos. Ele sabe que não mudará a Igreja e que as reformas são lentas, que há muita resistência, mas está se criando processos e se abrindo a mesma para outras visões. Eu tenho esperança nisso!

11. Jesus era leigo, como você ressalta em seu livro…

R.: Eu gosto desta afirmação, e a uso com frequência em meus textos, palestras e conferências, embora saiba que alguns bispos não gostam desta colocação, e até já me falaram isso… Contudo, é evidente que o termo “leigo” não existia no tempo de Jesus, o termo vem com o surgimento da comunidade cristã, sendo empregado pela primeira vez para distinguir o simples fiel daqueles que presidiam o culto, e isso no final do primeiro século. Em grego, Laikós vem de Laós, aquele que pertence ao Povo (neste caso, Laós de Deus, Povo escolhido de Deus).

No entanto, ao reforçar ou “forçar” esta categoria em Jesus tenho a intenção de demonstrar que Jesus não era membro de nenhuma hierarquia religiosa e nem mesmo de grupos de elite. Ele era alguém do povo e sujeito de seu tempo. Pobre com os pobres, ele vivia nas ruas e nas praças, frequentava casas e lugares alheios aos padrões religiosos.

A religião de seu tempo (e alguns de seus líderes) estava corrompida pelo poder, então Jesus não vê na religião um caminho, o que não anula a sua religiosidade/espiritualidade, mas ele a destina a outros horizontes e a outras pessoas, que a religião da época ignorava ou não alcançava. Os títulos que trazem Jesus como Senhor, Rei e Sumo Sacerdote são expressões pós-pascais, isto é, construídas pela comunidade primitiva a partir da experiência da ressurreição. Historicamente, ele era um homem comum de seu tempo, um sujeito.

Perceber Jesus como leigo é resgatar a laicidade do Evangelho, isto é, a relação de Jesus com as aflições, buscas, tristezas e esperanças daquele povo. Ele era alguém atento e preocupado, deixando-se tocar pela ternura da vida, desprendendo-se a um serviço que restitui e chama a uma vida diferente. Acho que isso diz muito para nós hoje, para o nosso ser cristão, e a melhor maneira de ser leigo ou leiga dentro deste nosso contexto é se espelhar na proposta e práxis de Jesus.

Eis o grande modelo, seja pela experiência mística com Deus seja pela crítica às estruturas religiosas, políticas e sociais; seja pelo caminhar solitário seja pela busca de uma comunidade; seja pelo acolhimento seja pelo profetismo. Jesus se faz sempre novo e atualizar a sua mensagem a partir dos Evangelhos, interrogando-se pela verdade, é uma tarefa do cristianismo de cada tempo e lugar. Há uma expressão de Francisco que me acompanha há algum tempo e que ele usou no Sínodo sobre as Famílias (2015): o olhar atento a Jesus de Nazaré sempre nos abre novas perspectivas. Sim, ele era leigo, no melhor sentido do termo!…

12. E a questão da mulher? Há uma comissão para estudar o diaconato feminino, mas o tema da ordenação das mulheres parece congelado e, como diz Ivone Gebara, a questão da ordenação das mulheres talvez nem seja tão central assim. O problema a ser enfrentado é o lugar da mulher na Igreja como mão-de-obra gratuita para o clero. Haverá ruptura nessa visão?

R.: Gostaria de concordar com a Ivone nesta questão. Ela é uma referência e é alguém que luta pela causa já há bastante tempo e tenho por ela grande admiração e respeito. Sem dúvida, a ordenação feminina e qualquer avanço que se possa projetar nesta direção será uma conquista, podendo acontecer na questão das diaconisas ou ainda em outros pontos mais firmes, que eu diria que é um aspecto mais do que necessário e até urgente, em algumas realidades. Porém, o central não é este ponto, como disse a Ivone, mas a valorização e o lugar da mulher na Igreja. No entanto, não quero dizer com isso que a ordenação (por ora, a possibilidade e ainda em estudo) seja algo de segunda espera, alguma coisa assim. Não, é preciso tratar isso com seriedade e agilidade. Sou um defensor. Por isso espero seguramente que haja uma ruptura nesta condição e neste comportamento.

Porém, quero chamar a atenção para algo que precisa mudar e, salvo algumas ações isoladas, as mulheres ainda sofrem muita discriminação, cerceamento, policiamento, diferença em direitos e até, como diz a pergunta, servem de mão-de-obra barata para um clero dominante e machista. Ressalto ainda a dificuldade e até, em alguns lugares, a proibição para os estudos teológicos e a falta de espaço para trabalhar e atuar na docência em institutos e faculdades teológicas, ou mesmo para assumir papel de liderança e de destaque em coordenações pastorais, mesmo elas sendo a maioria do corpo eclesial.

Se ser leigo já é difícil, ser leiga, mulher, é ainda mais. Os preconceitos são grandes. As portas se fecham com mais força e frequência. Entra aí toda a discussão de gênero, que alguns ficam arrepiados apenas de ouvir esta palavra e chamam de ideologia (o que é uma total falta de percepção e de conhecimento, um absurdo!).

Quero dizer com isso que a falta de uma valorização da mulher na Igreja decorre também de uma falta de valorização da mulher na sociedade. Um fato. Por mais que tenhamos visto avanços nesta perspectiva, com direitos e até mesmo à emancipação da mulher, com conquista de espaços e também quanto a sua sexualidade, vivemos numa sociedade cada vez mais intolerante e preconceituosa, que insiste em padrões culturais ultrapassados e que submetem as mulheres a situações desonrosas. Em pleno século XXI e com todo o discurso em defesa dos Direitos Humanos, a violência doméstica contra a mulher ainda é um alarmante gravíssimo e nem sempre as nossas posturas eclesiais se acordam ou se manifestam quanto a isso.

Podemos observar que os que gritam “ideologia de gênero” parecem calar a voz perante esta violência. Por quê?… Talvez porque alguns acham que a emancipação da mulher e o “tornar-se mulher” fora dos padrões culturais estabelecidos é uma ideologia, e não é. É necessário coragem para mudar esta postura e, honestamente, acho que a Igreja daria um passo muito importante e um grande recado à sociedade com a valorização da mulher e com a abertura de novos espaços. Isso é algo que deveria ser pensado seriamente.

É preciso recuperar o feminino e valorizar o antropológico que nos garante na fé. Quero dizer: se uma mulher é capaz de gerar a vida em seu ser e em seu amor, e se uma mulher foi capaz de gerar o Filho de Deus e ofereceu este Filho a todos nós, num gesto sacerdotal de doação e consagração, o que impede hoje a mulher (as mulheres) de assumir dignamente e com liberdade as riquezas do seu chamado e de sua vocação, algo tão próprio e tão particular?… O olhar de Maria, tão caro a nós católicos, deveria nos mostrar este lado e este profetismo, que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, pois Deus olha e se coloca ao lado de Maria, e com ela, ao lado de todas as mulheres (cf. Lc 1,47-55). Devemos mudar!

13. Em seu livro, você pontua que, a partir da Declaração Ad Gentes(Vaticano II), a Igreja assumiu-se como por excelência missionária. O Papa atualizou essa noção, com a expressão “Igreja em saída”. É possível essa missionariedade, essa saída, sem o protagonismo dos leigos e leigas?

R.: De jeito nenhum! Acredito seriamente que o futuro da Igreja só pode ser pensado com esta adesão e com esta abertura e inclusão. Sem a ação dos leigos não há uma ação de Igreja em saída. Esta estrutura que nos cerca está carregada e dominada por vícios que nos impedem de sair. Veja o clericalismo e a dificuldade que temos de sair dele. As pessoas parecem estar em outro mundo, estranho, não? Mesmo quando se tenta justificar uma inclusão dos leigos, fazem isso dizendo que ele deve estar com a Igreja, como se ele não fosse parte, ou insistem na sua presença com a comunidade para o acesso aos sacramentos e a comunhão eclesial, mas que na verdade se traduz numa dominação da vocação, ou subordinação/infantilização, pois ao insistirem na Eucaristia e na Reconciliação, por exemplo, coloca-se o leigo submisso a outro e com pouca liberdade de agir e de fazer manifestar a sua autonomia de fé.

Não estou aqui negando a questão sacramental da Igreja e a eficácia salvífica da Eucaristia e o que ela representa, quero deixar isso bem claro, nem a justa tarefa do ministério ordenado no exercício dos mesmos. Mas gostaria de ir mais além e penso que a vocação/missão laical não pode se resumir neste ponto, pois a graça batismal deve ser vivida na vida, na história, no chamado, onde somos provocados a dar razões de nossa fé e de nossa esperança. É uma experiência que deve nos fortalecer em toda uma vida, em cada passo, em cada direção; é uma opção, uma decisão por Cristo e pelo seu Reino. A Eucaristia deve ser uma comunhão com um Cristo que nos encoraje num seguimento e nos faça olhar o caminho do seu Reino e na adesão de sua cruz. E isto está além de uma celebração. Isso traz a liturgia para a vida (como Jesus viveu!) e é o que torna cristã a ação dos leigos no mundo, onde são sal e luz, força e esperança, como tentei defender no livro.

14. Você integra as comissões sobre o laicato da CNBB e do CELAM. Como estão as discussões? Estão havendo avanços efetivos?

R.: Eu já participo dos trabalhos da Comissão do Laicato da CNBB já faz alguns anos, em um grupo de reflexão. No último ano atuei também com o CELAM, no Departamento de Vocações e Ministérios e também trabalho com o CNLB (Conselho Nacional para o Laicato do Brasil), na parte da formação. Acho que há avanços em várias frentes e a percepção para a vocação/missão dos leigos é algo latente.

O que não quer dizer que seja um trabalho fácil e que todos tenham adesão a isso. Temos dioceses e comunidades abertas a esta questão e outras fechadas. Em alguns lugares o leigo tem voz, mas em outros alguns padres insistem em ser a voz do leigo, até mesmo para falar sobre ele. É necessária uma conversão e uma mudança de postura, em muitos lugares, também entre os leigos. Mas há avanços.

Com a CNBB e com o CNLB pensou-se o Ano do Laicato, que tem início agora e vai até novembro de 2018. É uma chamada à reflexão e à ação, com iniciativas que favoreçam e fortaleçam os leigos como sujeitos na Igreja e na sociedade, resultado do Documento n. 105 (que trata dos leigos como sujeitos/2016), primeiramente respeitando a sua vocação, e depois, permitindo o que lhes é de direito: a formação, a atuação, a organização, a autonomia e a representatividade eclesial e social. Insisto neste último ponto, na representatividade social, pois em alguns lugares temos leigos sendo cerceados e perseguidos pela sua posição política, pelo seu engajamento e por suas lutas por direitos. Isso é grave. Jogando com as palavras, posso dizer que o leigo tem “direito de ter dever” e faz parte de seu dever, de sua vocação/missão a sua atuação na sociedade, também o seu envolvimento político. Eu mesmo sofri isso na pele.

Com o CELAM tive a oportunidade de conhecer a realidade da América Latina, da Argentina ao México. Quem são e onde estão os nossos leigos? O que fazem e como fazem? Percebi que há pontos e lutas de caminhada que se aproximam, já outros que são diferentes, mas que no fundo há uma tentativa de caminhar junto.

É importante ressaltar que o CNLB, a partir do Departamento de Vocações e Ministério do CELAM, pelas mãos de nossa presidenta Marilza Schuina, começou uma articulação com os outros Conselhos de Leigos da América Latina, na ideia de se formar uma rede. Este foi um feito importante e que deve dar frutos. O foco do CELAM é a formação e esta teve a intenção de atender um chamado do Papa Francisco para que o leigo possa assumir o seu lugar e o seu espaço, com liberdade e competência, de modo urgente. O Papa volta a insistir na “hora dos leigos”! De minha parte, quero somar com ele. É a hora!

15. O teólogo basco Xabier Pikaza, que foi religioso da Ordem de Nossa Senhora das Mercês e renunciou a seus votos por conta da perseguição da hierarquia conservadora espanhola, escreveu recentemente sobre um tipo especial de leigos e leigas: “Pois bem, neste momento, princípios do século 21, há um tipo de cristãos que não são simplesmente seculares, mas ‘secularizados’, que deixaram por diversas razões as ‘ordens’  sagradas, deixaram de ser sacerdotes ou freiras, e estão (ou foram obrigados) a se tornarem ‘secularizados’. Estes não são simplesmente leigos, mas ‘laicizados’, um tipo de gente que é mal vista na Igreja, como tipos que não ‘resistiram’… ou mesmo que ‘apostararam’”. Como a hierarquia trata deste tema? Há sinais de que o Papa Francisco de fato reverá esta situação de verdadeiros párias que pesa sobre eles e elas?

R.: Eu espero que o Papa Francisco trate com carinho este tema e esta é mais uma urgência. Cada caso é um caso, obviamente, e se deve olhar com atenção, mas é sabido que muitos religiosos deixam o ministério ou a consagração religiosa depois de forte discernimento ou também por perseguição, como você bem colocou. Muitos deles são detentores de uma grande práxis cristã, de profunda mística e grande conhecimento. Diante deles, temos lugares e bispos que os acolhem bem e valorizam os seus esforços, há um respeito; no entanto, temos lugares e bispos que não os olham com bons olhos, o que acho uma pena e uma atitude nada misericordiosa.

Eu, por exemplo, acho um absurdo que um ex-religioso que tenha integridade na sua vida pessoal e de fé seja impedido de ser professor de uma faculdade/universidade católica, por exemplo, ou de assessorar um trabalho pastoral, ou de dar catequeses, ou de assumir outros ministérios como leigo. Em pleno século XXI, com o que diz o Vaticano II?… Existem lugares onde este acesso ao trabalho é possível, mas em outros não. Absurdo, pois olham a lei e o código, mas não olham a pessoa, ignoram o que passou, o sofrimento e não valorizam a sua integridade, a sua honestidade. Vejo tudo como um processo e uma coisa que Francisco tem feito é permitir que cada Igreja local encontre uma solução, está descentralizando. Acho isso bom.

Assim como o caso dos casais recasados este é um caso que deve ser tratado com singularidade, respeito, urgência e misericórdia. Por vezes vemos a Igreja apenas como mestra, mas nos esquecemos de que ela também é mãe.

16. Nos papados de João Paulo e Bento XVI os teólogos foram hostilizados a ponto de sua participação ter sido proibida em Puebla e Santo Domingo e mal vista nas reuniões das conferências nacionais. O curioso é que houve um processo de “laicização” dos teólogos padres ou religiosos, que acabaram sendo tratados como “meros leigos”. Há oportunidade para uma nova relação entre a hierarquia e os teólogos com o Papa Francisco?

R.: Já está acontecendo. Recentemente eu estive em Puebla para um encontro da Ameríndia e os teólogos ali reunidos, inclusive alguns nesta condição, resolveram escrever uma carta de apoio ao Papa e esta carta, assinada por todos nós, foi entregue em mãos ao Papa Francisco recentemente. Você mesmo noticiou isso. Não podemos esquecer que Francisco é um papa do Vaticano II e é um papa da América Latina, marcado pelo espírito conciliar e pelo contexto da teologia latino-americana, que se faz da libertação.

Ele quer uma Igreja em saída, que não tenha medo de se sujar com a lama da história e não uma Igreja fechada em si mesma. Para esta saída ele convida a todos, e hoje, sabemos, ele encontra muitas aberturas junto aos teólogos, inclusive por muitos daqueles que foram silenciados e perseguidos pelo Papa João Paulo II e por Bento XVI. O que não quer dizer que não haja críticas dos teólogos também ao Papa, evidente, faz parte do caminhar.

Todavia, não como fazem Burke, Müller e outros, que não são nada respeitosos, mas ressentidos e violentos em atitudes e palavras. Mas insisto que estamos em outro tempo e a grande questão de Francisco são as causas da humanidade. É onde estão os teólogos que avançam às fronteiras das discussões, então, a proximidade e o diálogo vão se construindo. Alguns já se encontraram com ele, outros se corresponderam, outros ajudaram em seus textos (todos nós sabemos da influência de Leonardo Boff na Laudato Si, eis aí um grande exemplo!). Volto a dizer, um novo tempo, novos processos.

17. Uma última questão, que seria divertida se não fosse dramática – e atual. Um padre relatou-me recentemente a conversa com um bispo que lhe descreveu a Igreja assim: o coração e os pulmões da Igreja são os bispos; os padres são as pernas; e os leigos, as unhas, que precisamos cortar de tempos em tempos…

R.: Sério isso?… Ouço isso com muita tristeza e digo que este padre está tentando sustentar uma Igreja que não existe. Tenho pena! Talvez, esta noção e atitude possa até existir em alguns lugares, mas esta não é a Igreja de Jesus Cristo e em nada ela se assemelha ao que somos chamados a ser como novas criaturas e na ótica do Reino. Triste! É vergonhoso! Se eu fosse apenas um rebelde eclesial eu diria que existem padres que deveríamos cortar, talvez alguns bispos e cardeais também. Não é verdade?… Porém, a Igreja não é minha e sou apenas um servo inútil seguindo a minha fé, mesmo com fragilidade e limitado.

Acredito, seriamente, que a Igreja é mais do que a Igreja (instituição) e que o Reino é mais do que tudo. Diferente deste padre, prefiro acreditar que na Igreja Cristo é o centro e ao redor dele todos nós somos chamados e estamos circulando, recebendo dons e carismas que nos são dados para o benefício e edificação de todos. Diferente dele, prefiro acreditar que há um Reino a ser construído e que esta construção necessita do esforço de todos, do meu e do dele. Diferente dele, que acha que o coração e o pulmão da Igreja está apenas na hierarquia, ora, eu prefiro acreditar que somos um povo peregrino e que tudo o que vem é graça, uma graça que nos fortalece e nos alimenta, a cada dia e em cada passo.

E diferente de todos os que pensam assim, eu diria que estamos no caminho do Cristo ressuscitado que é o crucificado, e que na nossa pequenez nós não conseguimos ver o seu rosto, e que apenas seguimos os seus passos, pois apenas seguindo os seus passos é que poderemos um dia contemplar o seu rosto. Realmente eu acredito nisso e prefiro seguir caminhando. Mesmo que me cortem (como ele diz), é onde vou depositar a minha fé e a minha esperança.

Ser leigo, para mim, é saber dizer: “Mestre, onde moras?”, e saber ouvir: “vem e vê!”, e para isso, buscar o discernimento, no Espírito que nos fortalece.

Vamos seguindo! Na fé, na esperança e no amor!

Fonte:

Caminho Pra Casa

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Entrevista com o teólogo César Kuzma – 1ª Parte https://observatoriodaevangelizacao.com/entrevista-com-o-teologo-cesar-kuzma-1a-parte/ Fri, 01 Dec 2017 09:00:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=26994 [Leia mais...]]]> Na abertura do Ano do Laicato, dia 26/11/2017, o teólogo César Kuzma, assessor da Comissão do Laicato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal da América Latina – CELAM, presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER, concedeu entrevista ao Caminho Pra Casa, a Mauro Lopes e ao padre Luís Miguel Modino, pároco na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na qual explicita importante reflexão para alimentar os horizontes do Ano Nacional do Laicato.

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O Observatório publica, a seguir, a 1ª parte desta entrevista:

1. Para começar, recordamos uma expressão do papa Francisco, cujo conteúdo tem sido recorrente em seus discursos e pronunciamentos. No Ângelus do 21° Domingo do Tempo Comum (27/08/2017), o Papa fez uma afirmação ousada. Disse que a Igreja é de todos, e não só do clero. Como você avalia essa afirmação à luz da história de clericalismo que marca a Igreja Católica e neste início do Ano Nacional do Laicato?

R.: Bom, acredito que esta é uma grande pergunta para começarmos a nossa conversa, pois a abrangência do que se pede toca em questões fundamentais da nossa fé e da nossa tradição, mas também em aspectos práticos do que vivemos e sentimos hoje na Igreja.

E aí entra a pessoa de Francisco e tudo o que ele representa para nós, seja para aqueles que o apoiam (eu me incluo neste grupo) seja para aqueles que o agridem, e que já não se escondem. Também o problema do clericalismo, que é uma enfermidade grave (palavras do próprio Papa), de muitas proporções e que avança por muitas frentes. Francisco alerta a este mal e acho que todos devemos nos ater a esta questão, pois é séria. Agradeço, então, a oportunidade e gostaria de começar a responder por aqui.

De modo muito seguro e direto, posso dizer que o clericalismo é uma doença que impede a Igreja de ser serviço e, com isso, inibe as demais vocações, sobretudo os leigos, de assumirem o seu papel, a sua missão dentro do corpo eclesial, e também na sociedade.

O clericalismo traz e vive de uma imagem de Igreja que se quer garantir por si mesma, sem abertura ao novo e que busca sempre o poder, que quer estar acima, que vive “à parte” e agarra-se nas estruturas, na dureza das tradições, no enrijecimento da doutrina, na dominação de uma letra sem espírito e num autoritarismo eclesiástico/hierárquico doente. Trata-se de uma agressão à ministerialidade, é importante dizer isso, pois não abre espaço a outros/outras e fecha-se às novas questões, notadamente urgentes para o nosso tempo.

É uma noção/interpretação eclesiológica totalmente distante e incoerente com o Evangelho, mostrando na prática uma ausência total da ótica do Reino anunciado por Jesus, já que traduz comunhão por obediência e seguimento por doutrinação, ou até mesmo por sacramentalização.

Percebemos que se trata de uma tendência que percorre toda a Igreja, também entre leigos, é bem verdade, mas que avança principalmente entre o clero mais jovem, que se satisfaz em formalismos, panos e paramentos riquíssimos (até medievais) e em ritos antigos, carregados na rigidez, ou camuflados de aspectos modernos, em alguns casos, mas muito distante da simplicidade do Evangelho, o que é lamentável. Seja pela linguagem ou pela vestimenta, cria-se uma estrutura que decide por caminhar separada do mundo, distante dos problemas e com a sustentação de um ar superior.

É onde se sustentam os críticos do Papa Francisco, queixando-se da laicidade ou abertura que ele quer resgatar na Igreja, que em princípio, coloca a mesma em um diálogo constante com o mundo, mantendo-a fiel no anúncio do ressuscitado e naquilo que foi afirmado com o Vaticano II. Figura também aí alguns bispos e cardeais que ainda sustentam posturas de príncipes, algo bem diferente dos pastores com “cheiro de ovelha”, que pede Francisco. Por isso mesmo é um mal, é uma doença, um pecado grave que nos afasta do seguimento e da práxis de Jesus. É preciso mudar.

Agora, partindo da oração do Ângelus e da reflexão pronunciada pelo Papa naquele dia (mesmo já sendo distante, mas ela é pertinente por causa do Ano do Laicato que se inicia no Brasil), é importante dizer que este texto nos apresenta duas leituras interessantes e que se somam: na primeira parte do texto, quando encontramos a pergunta de Jesus (“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem” – cf. Mt 16,13), temos a chamada “crise da Galileia”, um ponto crucial da vida de Jesus e que é muito desenvolvido na cristologia atual.

As pessoas começam a abandonar Jesus e isso leva às exigências do Reino, à lógica do seguimento, enfim, a partir daquele momento há uma mudança na atitude de Jesus e em seus discursos e ações. É o que vemos na sequência dos relatos. Mas também, e aqui é o segundo ponto, mais eclesiológico, ao questionar-se, Jesus percebe na voz de Pedro uma fala do próprio Deus (“Tu és o Cristo” – cf. Mt 16,17), e esta presença o fortalece e o faz seguir a Jerusalém, assumindo a condição de profeta. É esta certeza da Palavra que vem de Deus que deve garantir a Igreja, onde entra aí o primado de Pedro (que é destaque no relato) e a função ministerial petrina que tenta e espera garantir a unidade em base a Palavra que nos sustenta e que nos coloca para frente, em missão. Em resposta, Jesus diz: “Tu és Pedro” (Mt 16,18).

Acho que isso diz muito para o nosso contexto eclesial. Muitas são as vozes contrárias e de oposição ao Papa Francisco. Neste mesmo tom e diante das adversidades, ele pode até se questionar e perguntar sobre a sua missão. Por certo que sim, ele é humano! Todavia, a resposta a esta interpelação não se encontra apenas em nossas respostas e apoio (embora necessários!), mas na confiança e no discernimento da própria fé, na certeza de que há algo a seguir e que para este feito se faz necessário o trabalho de todos, de todos aqueles de boa vontade, que são como “pedras pequeninas” (palavras dele), mas mesmo assim são preciosas, pois se transformam em “pedras vivas”, onde todas têm o seu lugar na missão da Igreja.

A ótica do clericalismo é como a daqueles contemporâneos de Jesus que não o reconhecem em sua missão. Olham para ele e veem outro, eles o comparam e não percebem a novidade. No entanto, diante do olhar da fé, é possível reconhecer um novo caminho, uma nova postura, um novo chamado. A pedra de que fala o Evangelho e que assegura o Papa não está apenas no ministério petrino ou nos ordenados, mas em “todos aqueles que ouvem a voz do Senhor e se deixam conduzir pelo mistério”, sendo parte importante na construção do Reino de Deus.

2. Os conservadores acreditam que a Igreja é uma “sociedade perfeita” e não uma “comunidade de vida”, como o Papa a definiu no mesmo discurso. Essas visões distintas têm implicações brutais, não?

R.: A ideia de uma sociedade perfeita é antiga, muito forte antes do Concílio e diria que a mesma não tem mais espaço no mundo de hoje. Não cabe. Além de criar um mundo a parte, afasta todas as pessoas e não permite a ação da graça e a vivência da misericórdia.

Francisco sabe disso, pois é um Papa fruto do Concílio, e para o Vaticano II a Igreja é comunhão, onde há espaço para todos (pois a Igreja é povo de Deus!) numa diversidade que converge para uma unidade, em Cristo. Por isso é importante o sentimento de communio, onde Cristo está no centro e ele garante a dignidade a todos (cf. LG n. 32), a partir do batismo e da experiência salvífica/libertadora que temos com ele, na história, mesmo com toda a sua provisoriedade.

Assim, ver a Igreja como uma sociedade perfeita é projetar nela uma imagem platônica, longe da realidade, iludida por uma perfeição que só é real em promessa, em esperança, numa destinação escatológica. Qualquer tentativa de se criar neste mundo, neste tempo e nesta história, uma imagem de “Igreja triunfante” ou de “sociedade perfeita”, como eles chamam, contraria a proposta eclesiológica apresentada pelo Vaticano II, que a terá sempre como “peregrina” (cf. LG n. 48). Entender a Igreja como peregrina é situá-la no caminho apresentado por Jesus e nas exigências de sua práxis. Por isso, a importância de ver a Igreja como uma comunidade sempre viva, aberta ao novo que vem, garante uma perspectiva nova.

Isto é bem evidente na Evangelii Gaudium, quando Francisco nos diz que a história da Igreja se faz gloriosa não por conta de projetos expansionistas e linhas bem traçadas, mas pela sua condição peregrina e militante na história, nos sacrifícios e nas esperanças, nas lutas diárias e na constância do trabalho fatigoso (cf. EG n. 96). Se isso não ocorre, não trazemos a marca do Cristo ressuscitado-crucificado e nos fechamos em grupos de elite, enquanto a nossa volta, existe uma multidão sedenta por Cristo (cf. EG n. 95), mas um Cristo vivo, não um abstrato religioso que se transforma apenas em um destino de culto. Por isso a intenção de uma “Igreja em saída” que Francisco propõe não cabe dentro de certos aprisionamentos eclesiológicos. É necessário um despojamento e uma abertura.

3. No Concílio Vaticano II, a Igreja se autodefiniu como Povo de Deus. Os conservadores nunca aceitaram isso e, no Sínodo de 1985, buscaram restaurar as visões pré-conciliares, tanto que a expressão Povo de Deus sequer aparece mais. Eles retomaram de maneira cada vez mais explícita as formulações pré-conciliares. Em seu livro, “Leigos e Leigas” (ed. Paulus/2009), você menciona uma citação da encíclica Vehementer nos, de Pio X, um dos ícones dos restauracionistas, na qual ele afirma claramente que há duas categorias de pessoas na Igreja, sendo os leigos e leigas um grupo de segunda categoria. Reproduzo e amplio a citação que está no seu livro: ele definiu a Igreja em 1906 como “o Corpo místico de Jesus constituído de Pastores e Doutores, uma sociedade de homens em que se encontram líderes que têm poderes plenos e perfeitos para governar, ensinar e julgar, o que resulta que a Igreja é por sua natureza uma sociedade inigualável, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os Pastores e o Rebanho”. Para Pio X, “estas categorias são claramente distintas entre si, e somente no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros de acordo com os objetivos da sociedade; quanto à multidão, ele não tem outro dever que o de se deixar guiar e seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”. Como você avalia a permanência desta concepção em amplos segmentos do clero?

R.: Eu avalio com grande preocupação! A definição da Igreja como Povo de Deus foi um marco e um avanço do Vaticano II. Precisamos ter isso claro. Um marco porque com ela se mudou a perspectiva eclesiológica que se tinha, não mais piramidal, mas de comunhão, na diversidade do povo e na valorização do batismo como sacramento de maior importância, pois é por ele que nós nos incorporamos a Cristo e assumimos a seriedade da nossa vocação/missão. Há diferenças de responsabilidade, mas igualdade em dignidade; somos um em Cristo Jesus.

A partir de então, a Igreja não é mais definida pelo clero, pela hierarquia, mas pela “totalidade” dos fiéis que compõem o povo de Deus. Por esta razão, alguns autores dizem que a eclesiologia do Concílio deve ser vista pela ótica do Povo de Deus, pois é a grande novidade, uma chave de leitura de primeira grandeza (J. B. Libanio). Logo, é um avanço, porque valorizou e ampliou a compreensão de ministerialidade da Igreja. Resgata a ideia do sacerdócio comum de todos os fiéis, colocando o sacerdócio hierárquico, que tem a sua importância, a serviço dos fiéis e não o contrário. Podemos notar que o Concílio quer romper com toda presunção de uma super-vocação e de um novo clericalismo, pelo menos em teoria.

Na prática, sabemos que nem tudo ocorreu como foi desejado, haja vista os movimentos contrários ao Vaticano II, o Sínodo de 1985 que você menciona e outros movimentos e ações que tentam impedir a ação dos leigos e das demais vocações, mantendo a imagem de uma igreja identificada excessivamente pelo clero e não pela comunidade. Mesmo com as definições do Vaticano II e também com a Exortação Christifideles Laici (João Paulo II/1988) e outros documentos, como na América Latina com as Conferências de Medellín (1968) até a de Aparecida (2007), e outros, ainda temos e vemos alguns grupos que insistem numa imagem de Igreja que reproduz uma sociedade desigual (visão de Pio X), mantendo leigos passivos e submissos, sem autonomia e sem incentivo para uma percepção crítica da fé.

É um abuso, não é mesmo? Em uma carta ao Cardeal Marc Ouellet, em 2016, o papa Francisco recorda que desde o Concílio se falou muito sobre a “hora dos leigos”, mas para o Papa esta hora está tardando a chegar. Para Francisco, e aqui nós nos somamos a ele, as causas são várias, mas a passividade tem sim certa culpa do próprio laicato, é um fato, mas também das estruturas, que não formam e não permitem um espaço favorável, onde leigos e leigas possam exercer criticamente e com maturidade a sua vocação.

Isso só nos mostra que é urgente recuperar o Concílio e que os leigos devem assumir o seu papel, com resistência e esperança, com autonomia e coerência, num jeito próprio de ser e fazer Igreja. Já estes que querem sustentar esta imagem turva de Igreja, de modo arcaico e distante das urgências de hoje, eles nos agridem porque sabem que o seu tempo já passou, então querem agir com força, violência, no fechamento, inibindo uma vontade maior que vem do Espírito, que é livre e sopra onde quer.

4. Em seu livro você afirma que nas primeiras comunidades não havia essa separação entre cristãos de primeira e segunda categoria e nem mesmo a dualidade entre clero e leigo. Como era a Igreja então? É possível atualizar esta experiência original?

R.: Não havia porque a Igreja estava nas margens da história, nas periferias, ela era perseguida e a grande preocupação era o anúncio do ressuscitado, como uma força capaz de mudar o modo de viver e compreender as coisas. Dava-se a vida por isso. O confronto era com o mundo, pois eram perseguidos e a unidade deles (“um só coração e uma só alma” – At 4,32) era um modo não agressivo e profético de se enfrentar o mundo, oferecendo outro espaço e outro tempo, até com a própria vida. Fazer ali a “memória do Senhor” (Eucaristia) tinha mais do que uma intenção litúrgica ou celebrativa (não era assim), mas uma memória escatológica que dava força e razões às esperanças.

Não quero dizer com isso que na Igreja primitiva também não houve tensões e divisões. Evidente que sim, tanto que Paulo acusa: “Estaria Cristo dividido?” (1Cor 1,13), dentre outros exemplos. Mas a nossa chamada de atenção é para o anúncio do ressuscitado motivado por uma experiência fundante, um encontro, um propósito, uma fé.

Acredito realmente que um olhar para as fontes da nossa fé cristã pode nos dar outras perspectivas de seguimento e um encorajamento para a nossa práxis eclesial. A institucionalização da Igreja trouxe preocupações adversas que bloqueiam o Evangelho e direcionam o nosso olhar para outro lado e esquecemos da eterna novidade que ele nos traz. Parece loucura, mas Francisco quer encorajar a Igreja a redescobrir a “alegria do Evangelho” e esta é uma alegria que transborda. Parece que nos esquecemos disso! Se na resposta da Igreja antiga precisou se falar que não há escravos ou livres, homens ou mulheres, mas todos são um em Cristo Jesus, deveríamos trazer esta máxima para hoje, como uma definição basilar, para que não haja mais clero ou leigos, mas para que todos possamos ser uma só coisa nele. Pode parecer utopia, mas ela tem a sua importância, pois nos faz olhar para frente e alimenta o caminhar da esperança. É possível mudar. É necessário. O teólogo J. B. Metz diz que o Evangelho tem memórias subversivas. É verdade, e elas podem nos libertar.

5. Você fala que a relação entre clero e laicato é marcada por uma tensão permanente. Quais as características dessa tensão?

R.: Vemos isso pela história da Igreja e pela maneira como ela foi se construindo até os dias de hoje. A separação entre os que sabem e os que não sabem, que foi o que deu toda origem ao modo depreciativo que existe no termo leigo, fazendo uma separação de classes e posições. A manutenção de um laicato passivo, que apenas recebe e não questiona. A declaração de Pio X e sua incidência até hoje, a falta de espaços e a resistência de uma libertação dos leigos para o alvorecer de uma missão fortalecida, para fora dos muros eclesiásticos.

São tensões e desiquilíbrios que devem ser superados. Vale ressaltar também que isso muda de lugar a lugar e sempre houve na história leigos proféticos e que foram verdadeiros santos, mártires da fé, o que coloca o chamado do cristão para além de qualquer rótulo que possamos enquadrar. Urge também contar uma história da Igreja ainda não contada ou não tão valorizada, e ela existe e não está nos altares.

Eu tenho comigo a tese de que os leigos devem se afastar deste modelo estrutural e buscar novos caminhos, novas maneiras de viver a fé, dentro do chamado que é próprio da sua vocação, que é o mundo secular e as grandes causas da humanidade. Aqui está a vocação e a missão dos leigos! Ali devem ser sal e luz. Sujeitos da história. É onde os leigos, como Igreja que são, podem oferecer o seu testemunho e o seu serviço concreto. Observo que as ações de Francisco também vão por aí.

O cristianismo tem algo a dizer ao mundo e este “algo” não se limita a esfera do sagrado, mas é carregado de vida, justiça e esperança, capaz de propor um novo ethos, com um jeito leve e livre para dizer as coisas. Hoje, as estruturas eclesiais nos impedem, pois estão centralizadas em outro tipo de ministério e numa visão eclesiológica fechada, e mesmo a prática sacramental, do modo como é apresentada, favorece este desequilíbrio e a falta de protagonismo, pois o leigo é aquele que sempre recebe e que sempre responde de modo passivo ou submisso. Penso que é urgente resgatar a teologia do batismo como inserção da pessoa em Cristo, onde passamos a viver como novas criaturas no mundo onde estamos, diante das grandes questões e urgências, abertos ao novo e no seguimento sincero do homem de Nazaré (que sempre nos interpela), fazendo da sua práxis do Reino a nossa práxis de vida e de fé.

Uma sociedade aberta exige leigos também abertos, capazes de dialogar e responder de modo autêntico e livre às exigências da fé e as interrogações que chegam à fé. Se a compreensão de ministério tem sempre como referência o dado sagrado ou a colaboração e cooperação com o ministério ordenado, os leigos jamais vão avançar para algo diferente. Poderíamos perguntar: como é ser leigo, sujeito eclesial, numa Igreja clericalizada? Impossível! É necessário romper isso!

Na Evangelii Gaudium Francisco nos pede ousadia, pede um arriscar, um primeirear, uma saída. Não se sai com a catedral nas costas, mas se sai de modo kenótico, despojando-se de tudo o que nos prende e limita o nosso ser e estar, e ainda aberto às novidades que a missão nos provoca. Seguindo um panorama bíblico, digo que os leigos devem ter o mesmo sentimento de Cristo Jesus (cf. Fl 2,5), aí se encontra a saída, e é desta forma que devem se abrir para um novo caminho e um novo chamado à espiritualidade, uma nova forma de ser e estar no mundo. Um novo modo de ser Igreja.

6. Depois do Vaticano II houve avanços, que chegaram a seu momento culminante na Conferência de Medellin, em 1968, onde a Igreja latino-americana não apenas saudou como estimulou a organização do laicato. Como foi possível regredir tanto, até uma concepção tão clerical, de fundo monárquico?

R.: Assim como houve um pós-Concílio também houve um pós-Medellín, que tentou frear os avanços conciliares e a nova dinâmica eclesial que surgia na América Latina, também marcada pela Teologia da Libertação. Mesmo tendo avanços em algumas partes, Puebla (1979) já sofreu esta perda; muito mais Santo Domingo (1992), e há reflexos deste frear também em Aparecida (2007), muito embora esta Conferência tentasse resgatar uma postura profética no Continente. Mas, ainda assim, passaram-se dez anos da última assembleia do CELAM e pouco se fez ou se avançou na linha de Aparecida.

Por exemplo: o que significa ser discípulo missionário, hoje? Será que há alguma mudança?… Por certo que não. Raras exceções. Continuamos com as mesmas estruturas e linhas de ação, seguimos com os mesmos planos e projetos pastorais, a mesma insistência na formação clerical dos nossos seminaristas e na pouca valorização da formação laical, sem contar ainda às dificuldades que sofre a Vida Consagrada, mesmo tendo no Documento de Aparecida chaves importantes para uma renovação eclesial no panorama da nossa missão. Fala-se muito em mudar mentalidades para mudar estruturas, contudo, se não mudarmos algumas estruturas não conseguiremos mudar certas mentalidades. É um fato, não?

Francisco representa uma esperança neste sentido, pois como diz o teólogo J. C. Scannone (alguém muito próximo ao Papa). Francisco tenta resgatar uma agenda inacabada do Vaticano II, e faz isso também com a Conferência de Aparecida, onde teve uma participação particular na execução do documento. Ele amplia isso para toda a Igreja, chamando a atenção de todos para os novos “sinais dos tempos”.

7. A repressão às Comunidades Eclesiais de Base foi de largas proporções. Elas foram quase aniquiladas pela hierarquia, exatamente pela proposta de protagonismo leigo. Elas parecem estar se reorganizando, mas ainda sob olhares hostis de boa parte da hierarquia. Como você projeta que será esse processo nos próximos tempos? O 14º Intereclesial das CEBs, marcado para janeiro em Londrina, está sendo aguardado com expectativa…

R.: As Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs) constituem uma forma particular de ser Igreja no Continente Latino-Americano e esta prática já pode ser observada em outros continentes e localidades, o que nos leva a crer que é um movimento do Espírito. Avança para além das proibições, que são verdadeiras, foram fortes e ainda existem. Mas acho que temos outro momento agora. Os tempos modernos trouxeram novas formas de organizar as CEBs, mesmo sustentando a riqueza evangélica do início, temos hoje outras riquezas que se somam e trazem um frescor sempre novo.

O Intereclesial quer ser um encontro destas Comunidades, com muita troca de experiência, fortalecimento de lideranças, discussões pastorais, sociais e políticas, além da vivência de uma espiritualidade que transborda em uma grande celebração. Juntam-se ali pastores e ovelhas, mas sem cajado ou redil, e sim num ambiente fraterno e acolhedor, onde todos são iguais e Cristo ocupa o centro. Todos são ovelhas de um único pastor: Cristo.

O encontro de Londrina será o segundo sob o Pontificado do Papa Francisco, sendo que no anterior, em Juazeiro (2014), os participantes receberam uma mensagem do próprio Francisco, que diferente de alguns bispos brasileiros, vê na força popular e no jeito de caminhar das CEBs um sopro do Espírito que clama por vida, justiça, esperança e libertação. É necessário caminhar juntos, sempre!

8. A estrutura piramidal e clerical mantém os jovens afastados da Igreja?

R.: Não seria correto dizer que afasta os jovens, pois muitos movimentos conservadores estão carregados de jovens e isso é fácil de observar pela mídia católica e pelos encontros de juventude, JMJs entre outros. No entanto, há que colocar duas perguntas para entender este panorama: o que a Igreja espera do jovem? Mas também, o que o jovem espera da Igreja? Se não houver uma comunicação entre estas duas perguntas nós poderemos ter a Igreja tanto vazia quanto cheia (realidades que acontecem), mas, em qualquer lado, distante da proposta do Evangelho e do seguimento de Jesus, que como diz o Concílio é eternamente jovem.

Faz-se necessário também ter uma atenção especial para com os jovens, principalmente por conta dos fenômenos modernos e pós-modernos. Diante das incertezas da vida, a juventude encontra muitos caminhos e não podemos ignorar que entre estes caminhos estão às drogas, a violência e a falta de oportunidades numa sociedade cada vez mais injusta, intolerante e agressiva. Para aqueles que são pobres ainda é pior. E no Brasil, para os que são negros mais ainda, pois junto aos retrocessos políticos no Brasil pós-golpe de 2016, estão à acentuação do racismo e o extermínio de jovens, em sua maioria negros, vítimas de uma sociedade (esta sim!) desigual.

É urgente fortalecer no jovem a força de viver e a capacidade de criar e de se aventurar, de ter ousadia, para que possam fazer barulho na sociedade, e também na Igreja. “Hagan lío!”, disse Francisco aos jovens argentinos no Rio (2013). Esta é a grande riqueza da juventude e que impulsiona a sua capacidade de sonhar e de criticar, de amar e de se rebelar.

 

9. E os movimentos carismáticos? Eles têm essa contradição, entre o protagonismo leigo, mas, ao mesmo tempo, uma submissão canina à hierarquia. As estruturas mais enraizadas, como Canção Nova e RCC são profundamente clerizalizadas. Mas há novidades nesse segmento?

R.: Parece uma contradição, pois surgiram como resposta e na intenção de algo novo, mas o que vemos é outra coisa. Sempre com exceções, obviamente. Retirando a ideia do começo, que era de se contrapor aos grupos de linha mais pastoral e libertadora de antes, também víamos nestes grupos um espaço do leigo. Eu me lembro de que no início (pelo menos na minha experiência de juventude, há 20, 25 anos atrás) eles não encontravam espaços em muitas paróquias e se reuniam em espaços alternativos, além de sempre favorecer uma ação dos leigos, para dentro e para fora da Igreja.

Porém, o que vemos hoje é um enquadramento e uma mistura. Por um lado, tratam a liturgia e o celebrar como algo aberto e festivo, numa linguagem que comove e encanta a muitos, mas por outro lado, vemos uma submissão cada vez maior à hierarquia e uma clericalização fortíssima dos ministérios, seja o laical seja o sacerdotal. Nisso você tem razão. Vemos isso pelas vestimentas e práticas que antecedem o próprio Vaticano II. Sem contar o espaço político que vão alcançando, em partidos, em programas e emissoras de rádio e TV, etc; há também o lado financeiro, pois movimentam muito dinheiro.

É estranho porque em suas formações, os seus expoentes defendem uma postura rígida, uma obsessão pelo Magistério eclesiástico, pela moral cristã e pelas palavras do Papa (mas parecem ignorar Francisco!), e, ao mesmo tempo, este mesmo grupo que parece ser rígido na formação se vê às voltas com “cercos de Jericó” e práticas demasiadamente emotivas e sem criticidade, até ingênuas. Esforça-se muito para abraçar um Cristo do céu, mas pouco se faz para se aproximar dos crucificados da história. Sei que é uma impressão parcial, mas é o que vemos com maior frequência.

Penso eu, que a multiplicidade de dons e carismas faz bem a Igreja e que estas expressões também têm a sua riqueza e importância. Não poderia dizer o contrário, por uma questão de eclesialidade e compromisso com o Evangelho. Todavia, em alguns casos, vemos expressões que não somam e que causam mais divisões do que unidade, intolerância, violência, falta de catolicidade e discernimento ecumênico.

Esta é uma realidade muito próxima do Brasil, mas, com certeza, deve ter algo parecido em outras partes do mundo também.

(Continuação em breve)

Fontes:

Caminho Pra Casa

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Sobre a importante entrevista do teólogo César Kuzma na abertura do Ano Nacional do Laicato https://observatoriodaevangelizacao.com/sobre-a-importante-entrevista-do-teologo-cesar-kuzma-na-abertura-do-ano-nacional-do-laicato/ Thu, 30 Nov 2017 12:44:30 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=26981 [Leia mais...]]]> Kuzma e o Ano do Laicato: Igreja continua de portas fechadas

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Uma entrevista especial com o teólogo César Kuzma na abertura do Ano Nacional do Laicato instituído pela CNBB, que foi aberto no domingo (25/11/2017), na solenidade de Cristo Rei que marca no novo Ano Litúrgico da Igreja Católica (no ciclo trienal litúrgico dos católicos, começa agora do Ano B, centralizado pela leitura do Evangelho de Marcos na Liturgia da Palavra dominical).

César Kuzma é dos mais expressivos teólogos católicos brasileiros da novíssima geração. Com 41 anos de idade, é doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde é professor e pesquisador, e presidente da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião). Assessor da Comissão do Laicato da CNBB e do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal da América Latina (CELAM). Autor, entre outros, de O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica (2014), um estudo sobre a obra do “teólogo da esperança”, o protestante Jürgen Moltmann, e Leigos e Leigas –força e esperança da Igreja no mundo (2009).

Na entrevista, ele foi contundente e realista:

os leigos devem se afastar deste modelo estrutural e buscar novos caminhos, novas maneiras de viver a fé, dentro do chamado que é próprio da sua vocação, que é o mundo secular e as grandes causas da humanidade. Aqui está a vocação e a missão dos leigos! Ali devem ser sal e luz. Sujeitos da história. É onde os leigos, como Igreja que são, podem oferecer o seu testemunho e o seu serviço concreto. Observo que as ações de Francisco também vão por aí.

Mostrou-se profundamente alinhado com o papa Francisco, quando afirma que

o clericalismo é uma doença que impede a Igreja de ser serviço e, com isso, inibe as demais vocações, sobretudo os leigos, de assumirem o seu papel, a sua missão dentro do corpo eclesial, e também na sociedade. O clericalismo traz e vive de uma imagem de Igreja que se quer garantir por si mesma, sem abertura ao novo e que busca sempre o poder, que quer estar acima, que vive ‘à parte’ e agarra-se nas estruturas, na dureza das tradições, no enrijecimento da doutrina, na dominação de uma letra sem espírito e num autoritarismo eclesiástico/hierárquico doente.

No momento em que Francisco abre a Igreja, os resultados dos anos de domínio conservador estão à vista:

o clero mais jovem, que se satisfaz em formalismos, panos e paramentos riquíssimos (até medievais) e em ritos antigos, carregados na rigidez, ou camuflados de aspectos modernos, em alguns casos, mas muito distante da simplicidade do Evangelho, o que é lamentável. Seja pela linguagem ou pela vestimenta, cria-se uma estrutura que decide por caminhar separada do mundo, distante dos problemas e com a sustentação de um ar superior.

Segundo César Kuzma, pode-se constatar que a Igreja, infelizmente, continua impermeável aos leigos:

Em uma carta ao Cardeal Marc Ouellet, em 2016, o papa Francisco recorda que desde o Concílio se falou muito sobre a ‘hora dos leigos’, mas para o Papa esta hora está tardando a chegar. Para Francisco, e aqui nós nos somamos a ele, as causas são várias, mas a passividade tem sim certa culpa do próprio laicato, é um fato, mas também das estruturas, que não formam e não permitem um espaço favorável, onde leigos e leigas possam exercer criticamente e com maturidade a sua vocação.

O caminho, aponta o teólogo, é retomar a originalidade do cristianismo:

Se na resposta da Igreja antiga precisou se falar que não há escravos ou livres, homens ou mulheres, mas todos são um em Cristo Jesus, deveríamos trazer esta máxima para hoje, como uma definição basilar, para que não haja mais clero ou leigos, mas para que todos possamos ser uma só coisa nele.

Superar a contradição profunda que ainda persiste entre o laicato e a estrutura:

como é ser leigo, sujeito eclesial, numa Igreja clericalizada? Impossível! É necessário romper isso!

Para Kuzma, muitos processos posteriores ao Vaticano II e Medellín tentaram frear e revogar a abertura aos leigos:

passaram-se dez anos da última assembleia do CELAM e pouco se fez ou se avançou na linha de Aparecida. Por exemplo: o que significa ser discípulo missionário, hoje? Será que há alguma mudança?… Por certo que não. Raras exceções. Continuamos com as mesmas estruturas e linhas de ação, seguimos com os mesmos planos e projetos pastorais, a mesma insistência na formação clerical dos nossos seminaristas e na pouca valorização da formação laical (…).

Consequente com a reflexão desenvolvida, foi taxativo:

Sem a ação dos leigos não há uma ação de Igreja em saída.

Você poderá ler na íntegra da longa e densa entrevista de César Kuzma concedida ao Caminho Pra Casa, a Mauro Lopes e ao padre Luís Miguel Modino, pároco na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Para isso, clique aqui. E nos próximos dias, a fim de alimentar a reflexão para o Ano Nacional do Laicato, publicaremos no Observatório da Evangelização esta entrevista, em duas partes.

Fonte:

Caminho Pra Casa

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