Caminho para casa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Sat, 10 Jun 2017 10:00:38 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Caminho para casa – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Deus, para o papa Francisco, é “capaz somente de conjugar o verbo amar” https://observatoriodaevangelizacao.com/deus-para-o-papa-francisco-e-capaz-somente-de-conjugar-o-verbo-amar/ Sat, 10 Jun 2017 10:00:38 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=19611 [Leia mais...]]]> O tema da imagem de Deus, que confessamos e com a qual relacionamos na vivência da fé cristã, tem provocado inúmeras e pertinentes reflexões teológico-pastorais. Ao longo da Bíblia, percebemos uma diversidade de imagens de Deus presente na caminhada do Povo de Israel. O anúncio-testemunho do Reino de Deus pelo Profeta da Galileia, Jesus de Nazaré, e seus discípulos e discípulas preconizava uma nova imagem de Deus. Revela-se, com originalidade, o rosto do Deus-Amor, a quem Jesus chamava de “Abbá” querido, um paizinho amoroso sempre conosco. Há um processo de aprofundamento e de purificação radical na compreensão da auto-revelação de Deus ao seu povo.

Não obstante a revelação de Deus como Pai Nosso, como entender que tantos cristãos concebam e configurem, para si e para os outros, uma vivência da fé cristã tão marcada pelo temor na relação com Deus? Por que a experiência amorosa de Deus não favorece, ao contrário, a superação do medo? Por que muitos desejam conservar intacto um cristianismo maniqueísta, religião do dever e do tremor diante do risco, sempre iminente, de condenação eterna ao fogo do inferno?

Vale a pena ler e deixar-se interpelar pela reflexão de Mauro Lopes brotada da provocação da audiência do papa Francisco:

Papa retoma formulação mais original do cristianismo: Deus só sabe amar

Passou relativamente despercebida, mesmo aos católicos, uma frase que o Papa pronunciou na Audiência Geral da última quarta (7) no Vaticano segundo a qual Deus é “capaz somente de conjugar o verbo amar”. Com ela, Francisco retoma a formulação mais original do cristianismo, esquecida/perdida ao longo de séculos pela Igreja institucional e combatida pelo conservadorismo católico e cristão em geral.

 

Deus só sabe conjugar o verbo amar

A expressão inspira-se naquela que é a tentativa mais ousada na Bíblia de definir o Divino: “Deus é amor” – a frase aparece por duas vezes na primeira carta de São João (1Jo 4, 8.16).

 

Deus só pode amar

Irmão Roger: Deus só pode amar

Este é o título de um pequeno livro escrito pelo irmão Roger, da comunidade ecumênica dos monges da comunidade de Taizé, sediada na região da Borgonha, na França. Ela reúne protestantes, católicos e ortodoxos. Existe desde 1940. No Brasil, há um pequeno núcleo de Taizé em Alagoinhas (BA), há 50 anos. O irmão Roger, um protestante que rompeu todas as falsas barreiras das estruturas religiosas, foi assassinado aos 90 anos, em agosto de 2005, quando uma mulher romena, com distúrbios mentais, apunhalou-o várias vezes durante a oração da noite.

O livro de irmão Roger é uma pequena preciosidade que deveria inspirar pessoas de todos os quadrantes de espiritualidade e mesmo aqueles que, não acreditando na transcendência, tecem a vida pela bondade e pela busca da essência do ser humano[1].

Muito antes de Francisco e irmão Roger, santo Isaac, o Sírio, no século VII, pontuou: “Deus só pode dar o seu amor”.

Paul Ricoeur: Deus todo-amoroso

O filósofo Paul Ricoeur, ele mesmo um frequentador da comunidade de Taizé, escreveu na virada do século sobre a mudança do olhar sobre Deus, da ótica do poder para a do amor:

“O único poder de Deus é o amor desarmado. Deus não quer nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus se torna ‘todo-amoroso’. Deus não tem outro poder que o de amar e de nos dirigir uma palavra de socorro quando estamos sofrendo.” [2]

Esse Deus todo-amoroso, desarmado ou, como disse o Papa, um Pai “bom, indefeso diante do livre arbítrio do homem” não amedronta, pois, como disse são João na mesma carta, “não há temor no amor; ao contrário, o perfeito amor  lança fora o medo” (1Jo 4, 18).

Um teólogo ortodoxo, Olivier Clément, escreveu um livro sobre a experiência de Taize[3] anotou com precisão a falsificação da imagem de Deus promovida pelos rigoristas e fundamentalistas com seus dedos apontados, punições, penitências:

“Em Taizé, as pessoas se libertaram completamente da caricatura de um Deus que amedronta, de um Deus que condena, de um Deus que culpabiliza. É uma caricatura terrível, que afasta muitos jovens do mistério de Deus.” [4]

Essa escolha entre Deus-Amor e o deus da culpa está colocada diante de todos os que creem, cotidianamente. Um exemplo que evoca um tema central no mundo hoje em dia: Os católicos conservadores em todo o canto – inclusive no Brasil – estão numa campanha estridente por uma nova Cruzada contra “os infiéis muçulmanos” e mal escondem seu desejo de proibições, sanções e extermínio. Respiram ameaças, ódio e morte (leia um exemplo dentre dezenas que se reproduzem diariamente aqui). Enquanto isso, papa Francisco reza pela paz e busca união, comunhão e amizade com os muçulmanos, como o fez em seu recente e emocionante encontro com o grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayeb no Egito: “Papa em Al-Azhar: somos chamados a caminhar juntos”. Em Taizé, vivenciou-se, no início de maio, o primeiro fim-de-semana de amizade islamo-cristã.

 

Sim, há sempre uma escolha

Para Francisco e os cristãos que buscam o seguimento nas pegadas de seu Mestre, amor é o nome próprio de Deus[5]. Qualquer apresentação de Deus que se traduza em advertências, punições, proibições, discriminação, condenações a gays, lésbicas, trans, mulheres, divorciados e divorciadas, prostitutas, ateus, comunistas, muçulmanos, protestantes, espíritas, gentes de religiões afro, mulheres que abortam são falsificações de Deus. Não passam de projeções dos recalques e desejos de controle e poder daqueles que condenam, individual ou institucionalmente.

Santo Isaac, o sírio: Deus só pode dar o seu amor

O mesmo Isaac, o sírio, escreveu ao fim da vida sobre as mistificações em torno do diabo e do inferno que nenhuma relação têm com o Deus-Amor:

“Como conceber que Deus cria um inferno, um lugar de aflição, de tortura e de abandono? Deus só pode dar seu amor. Ele dá e dará seu amor: ele será tudo em todos.”[6]

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[1] Roger, de Taizé, Irmão. Deus só pode amar. São Paulo, Paulinas, 2003.
[2] Ricoeur, Paul. Paris. Revista Panorama, nº 340, 1999, p. 29. Citado por Roger, de Taizé, Irmão, in op. cit.
[3] Clément, Olivier. Em busca do sentido da vida. São Paulo, Cidade Nova, 2006.
[4] Idem. P. 93
[5] Boff, Leonardo. A oração de São Francisco. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 7ª edição, 1999. P. 73
[6] In Clément, Olivier, op. cit. P. 93-94

(os grifos são nossos)

imagesMauro Pereira Lopes

Jornalista, psicanalista, poeta e teólogo. É o autor do blog Caminho pra Casa. Trata-se de uma proposta, projeto nunca acabado de apresentar e conversar uma visão sobre a vida, o cotidiano e as questões que me atravessam a partir de um olhar particular -assentado no encontro com o cristianismo, particularmente com a Igreja Católica.

Fonte:

Caminho pra Casa

 

 

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19611
O maior teólogo do século XX profetizou há 50 anos a primavera de Francisco https://observatoriodaevangelizacao.com/o-maior-teologo-do-seculo-xx-profetizou-ha-50-anos-a-primavera-de-francisco/ Wed, 15 Mar 2017 02:36:38 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=14191 [Leia mais...]]]> A coisa mais importante acerca do Concílio Vaticano II não é a letra dos decretos, os quais de algum modo devem ser traduzidos por todos nós em vida e ação. É o espírito, as tendências, perspectivas e significado mais profundos do que aconteceu que realmente importa e que continua em vigor. 

Karl Rahner

No quarto aniversário do papado de Francisco está cumprida a profecia do maior teólogo do século XX, de que haveria uma primavera depois de longo inverno. O alemão Karl Rahner profetizou há mais de 50 anos a chegada deste Papa que é a encarnação mais radical do Concílio Vaticano II.

Não é possível pensar o Vaticano II sem a contribuição decisiva de Rahner que, por escolha do Papa João XXIII, foi nomeado em 1959 como consultor da comissão preparatória do Concílio e a seguir como um dos peritos conciliares. Todos os principais teólogos surgidos no contexto do Vaticano II e depois dele foram e são diretamente influenciados por ele.

Karl-Rahner-3
Karl Rahner (1904-1984)

Rahner profetizou a chegada de Francisco e os eixos de seu pontificado em quatro conferências que proferiu durante os anos do Concílio e depois transformou em breves ensaios[1]. Ele também foi capaz de antecipar alguns dos principais embates que ocorrem hoje, como aquele em torno da exortação Amoris Laetitia, a aproximação com os protestantes, o governo colegiado da Igreja e outros.

A leitura dos ensaios de Rahner, jesuíta como Francisco, indica que este é de fato o primeiro Papa do Concílio, o primeiro Papa que encarna o espírito que o Vaticano II buscou infundir na Igreja Católica. O final do último ensaio é a profecia mais acabada sobre o tempo transcorrido desde o fim do Vaticano II, com o estrangulamento de seu espírito pela Cúria romana e parte da hierarquia, e a semente plantada que agora viceja em Francisco:

A coisa mais importante acerca do Concílio Vaticano II não é a letra dos decretos, os quais de algum modo devem ser traduzidos por todos nós em vida e ação. É o espírito, as tendências, perspectivas e significado mais profundos do que aconteceu que realmente importa e que continua em vigor. Talvez eles possam ser escondidos novamente pelo tempo, por uma onda contrária de cautela, por medo da própria coragem, por terror de falsas conclusões que as pessoas possam igualmente extrair. Pode parecer a algumas pessoas de vida curta e míopes que após muito barulho tudo está como era. Mas as verdadeiras sementes de uma nova perspectiva e força para entender e resistir ao iminente futuro de um modo cristão estão plantadas no campo da Igreja.[2]

Um dos principais elementos da revolução de Francisco, o rompimento com a dinâmica monárquica e o início de um governo marcado pela colegialidade e por bispos servidores e não mais príncipes foi igualmente antecipado por Rahner:

(os bispos) serão homens cujo ofício episcopal não confere posição social, poder ou riqueza especial. Não mais será uma honra terrena ser um bispo no pequeno rebanho. (…) O cristão do futuro não se sentirá reduzido em estatura ou oprimido por seu bispo. (…) A doutrina da colegialidade resistirá, será medida e, sobretudo, vivida[3].

Este descer dos bispos à planície é um dos principais motivos da revolta de parte da hierarquia contra Francisco, constituída por homens agarrados ao seu poder e riqueza.

É incrível como na primeira metade dos anos 1960 Rahner já conseguiu profetizar o caminho de re-união entre católicos e protestantes que hoje é uma realidade –impensável há poucos anos.

Com esta nova situação, católicos e protestantes aproximam-se um do outro consideravelmente.

A que situação o teólogo alemão referia-se? À enorme estrada do discernimento individual aberta aos católicos –e que esteve bloqueada esses anos todos pelos conservadores que mantiveram o controle do governo eclesial. É impressionante como a polêmica em torno da exortação Amoris Laetitia já era prevista por Rahner:

existem casos de decisão moral nos quais a teologia moral baseada em princípios básicos universais, e portanto o magistério da Igreja, não está numa posição de oferecer os preceitos cristãos indiscutíveis no caso concreto.[4]

É este o convite de Francisco, ao qual respondem os “contras” com um sonoro não.

A relação que Francisco estabeleceu entre a Igreja e o mundo nesses quatro anos foi igualmente antevista por Rahner como postura daquele que qualificou como “o cristão do futuro”. Para o teólogo, nos anos à frente do Concílio –os que finalmente vivemos nos tempos atuais- o “cristão do futuro”, personificado exemplarmente no Papa,

não examinará ansiosamente as estatísticas para saber se a Igreja realmente é a maior organização ideológica ou não (…) ele não sairá para o mundo com zelo missionário e dando testemunho do nome de Cristo[5].

É a abdicação do proselitismo, advogada por Francisco, substituída pelo diálogo e pela convivência com as diferenças:

Consequentemente, o cristão encontrará corajosa e esperançosamente como irmãos aqueles que não desejam ser seus irmãos em seu ‘conceito de mundo’[6].

Esta nova postura significa abandonar o “espírito de Cruzada” que ainda hoje pauta o comportamento dos católicos integristas na relação com os muçulmanos, a quem desejam ver derrotados e submetidos.

As conferências de Rahner intuíram uma visão radicalmente modificada da Igreja pós-Concílio, não mais “como um grupo armado que se coloca oposto ao grupo do diabo, ambos em condições iguais e igualmente poderosos”; mas como casa na qual seja “permissível ao homem de hoje pensar esperançosamente acerca dos outros –e isto é quase a única coisa que o ajuda a não desesperar de si mesmo”[7].

Há mais de 50 anos, alguém viu Francisco -Karl Rahner, que morreu em 1984, muito antes que sua profecia se cumprisse.

(os grifos são nossos)

imagesMauro Pereira Lopes

Jornalista, psicanalista, poeta e teólogo. É o autor do blog Caminho pra Casa. Trata-se de uma proposta, projeto nunca acabado de apresentar e conversar uma visão sobre a vida, o cotidiano e as questões que me atravessam a partir de um olhar particular -assentado no encontro com o cristianismo, particularmente com a Igreja Católica.

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[1] Os quatro ensaios estão no sexto volume de sua coleção Schriften zur Theologie (Escritos Teológicos), publicado em 1965. Eles foram publicados no Brasil num pequeno livro intitulado O Cristão do Futuro (Fonte Editorial, São Paulo, sem data) e levam os títulos:

  • A Igreja que muda;
  • Situação ética numa perspectiva ecumênica;
  • Os limites da Igreja: contra o triunfalismo clerical e leigos derrotistas;
  • O ensino do Concílio Vaticano II sobre a Igreja e a realidade da futura vida cristã

[2] Idem, p. 94
[3] Idem, p. 91-92
[4] Idem, p. 41-44
[5] Idem, p. 80
[6] Idem, p. 81
[7] Idem, p. 85-87

Fonte:

Outras Palavras

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