Austen Ivereigh – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Sun, 05 May 2019 09:00:35 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Austen Ivereigh – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança? (3) https://observatoriodaevangelizacao.com/a-opcao-de-francisco-como-evangelizar-um-mundo-em-mudanca-3/ Sun, 05 May 2019 09:00:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30449 [Leia mais...]]]> Nesta terceira e última parte do artigo, o autor, Austen Ivereigh, mostra que uma vez apreendido o discernimento do Papa, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização. Desse modo, podemos entender o esforço do papa Francisco para refocalizar a Igreja, colocando a misericórdia e as bem-aventuranças como pedra angular de sua evangelização.

Recordamos que nas duas partes anteriores, já publicadas aqui no Observatório, o autor explicita o discernimento dos sinais dos tempos na América Latina feito por Bergoglio antes e depois de Aparecida e, logo depois, mostra por que uma parte desse discernimento era que a Igreja universal tinha sucumbido às tentações da desolação e estava deixando de evangelizar. Vale a pena conferir.

(Cadernos Teologia Pública Ano XV – Vol. 15 – No 139 – 2018, p. 15-19)

3. Evangelização através da misericórdia e das Beatitudes

Na missa celebrada em Assunção em julho de 2015, Francisco convidou as pessoas a não ver a missão e a evangelização em termos de planos e programas, de estratégias, táticas, manobras, técnicas, como se elas dependessem do poder de nossos argumentos. “Na lógica do Evangelho, não se convence [as pessoas] com os argumentos, as estratégias, as táticas, mas aprendendo a alojar, a hospedar.” (14).  A evangelização tem a ver com a criação de espaço para a conversão – oportunidades para a graça de Deus alcançar as pessoas, o que significa aceitar e compreender as limitações e pressões sob as quais elas atuam. Ao descrever, em Santiago, uma Igreja consoladora que se coloca a serviço, Francisco disse que “o problema não está em dar de comer ao pobre, vestir o nu, assistir o doente, mas em considerar que o pobre, o nu, o doente, o preso e o sem-teto têm a dignidade de se sentar às nossas mesas, sentir-se ‘em casa’ entre nós, sentir-se família. Este é o sinal de que o Reino de Deus está no meio de nós. É o sinal duma Igreja que foi ferida pelo seu pecado, foi cumulada de misericórdia pelo seu Senhor, e foi tornada profética por vocação” (15).

Muitas das reformas e iniciativas de Francisco – os Sínodos, Amoris Laetitia, o Ano da Misericórdia – têm essa finalidade: incentivar a abertura para a graça. Como ele diz no capítulo 2 de Amoris Laetitia: “Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas”. Não se ajuda as pessoas a casar e a ficar casadas simplesmente opondo-se às leis sobre o divórcio ou defendendo o princípio da indissolubilidade, e sim compreendendo que os sistemas de apoio dos quais as famílias dependeram durante muito tempo estão se enfraquecendo. As pessoas precisam de ajuda, e elas também já estão recebendo essa ajuda – graças a Deus – em situações que talvez estejam longe de serem ideais. A palavra “graça” aparece quase 30 vezes em Amoris Laetitia, que não apenas ensina a verdade sobre o matrimônio, mas mostra como a graça de Deus nos possibilita viver vidas de amor que se doa.

No capítulo 8, Amoris Laetitia oferece um paradigma para a Igreja evangelizar as vítimas de um mundo em fluxo: um movimento tripartite de acompanhamento, discernimento e integração. Esses três passos refletem o movimento da misericórdia: perceber a necessidade (estar consciente de sofrimento e angústia), responder concretamente (as obras de misericórdia, que respondem a todos os tipos de necessidades) e um terceiro estágio que inclui integrar, incorporar, salvar, o que implica uma atenção cuidadosa à atuação da graça na vida fragmentada das pessoas. Nesses três passos da misericórdia nós vivenciamos, literalmente, o amor salvador de Deus. Ser salvo por Cristo é ser salvo dessa maneira, e evangelizar é oferecer essa experiência. Trata-se de uma oferta sempre acompanhada de alegria, porque surge da lembrança agradecida da ação de Deus em nós – razão pela qual Francisco insiste tanto que nos esforcemos para lembrar-nos dessa ação em nossa vida e na história de nossos países (16).

E essa é a razão pela qual, como Francisco descreve muito bem em Gaudete et Exsultate, a santidade significa ser misericordioso e agir misericordiosamente. Nós nos tornamos pessoas cristãs não por meio de nossa obediência à lei (ou a preceitos éticos), e sim sob o efeito da graça de Deus, da qual se segue a conversão ética. Uma comunidade evangelizadora, diz o Papa em Evangelii Gaudium, “vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva” (17). Ela acolhe a vida humana, aproxima-se, toca a carne sofredora de Cristo em outras pessoas e se coloca ao seu lado – ela encarna o Deus que representa. Sua linguagem é pastoral: acessível, humana, simples, linguagem de consolação e acompanhamento. Mas ela também é direta e destemida, sem medo de denunciar, com coragem profética, todas as condições que oprimem os mais pobres e vulneráveis e impedem o desenvolvimento humano.

Ao procurar afastar a Igreja de seu “desvio eticista” para voltar a se focalizar em Cristo e Sua graça, Francisco quer que peçamos a graça da consolação. Quando Santo Inácio falava de “consolação” nos Exercícios, ele se referia a “todo aumento na esperança, na fé e na caridade, a toda alegria interior” – o termo em espanhol é leticia – “que conclama e atrai para coisas celestiais”. Olhando-se os títulos de suas três exortações apostólicas – Evangelii GaudiumAmoris LaetitiaGaudete et Exsultate –, fica claro que ele acha que há algo faltando, algo que ele está tentando colocar de volta onde deveria estar. Em 2016, Francisco disse aos jesuítas – mas isso se aplica a todos os evangelizadores – que a “tarefa própria” deles era “consolar o povo fiel e ajudar com o discernimento a fim de que o inimigo da natureza humana não nos tire a alegria: a alegria de evangelizar, a alegria da família, a alegria da Igreja, a alegria da criação…” (18).

Discernimento significa entender as formas pelas quais a graça de Deus está tentando nos alcançar e o que nos impede de nos abrir para ela. O “desvio eticista” não pode oferecer alegria porque não consegue discernir, mas apenas repetir rigidamente a verdade em uma linguagem de condenação e lamentação. Em sua pior forma, essa proclamação é corrompida pelas heresias que Francisco tem salientado coerentemente como obstáculos à evangelização, mais recentemente em Gaudete et Exsultate (19). O gnosticismo e o pelagianismo são tristes porque eles dependem de nosso conhecimento e de nossa vontade, e não da graça de Deus. Eles são desprovidos de misericórdia, porque são ideologias ou códigos morais; e são inflexíveis, porque depositam sua esperança na perfeição da Igreja como instituição ou em programas e estruturas, que fracassarão inevitavelmente. Não são Boa Nova para os pobres, porque pressupõem uma prosperidade e moralidade de classe média e uma formação universitária. O que é Boa Nova, está nos dizendo Francisco em Evangelii Gaudium, é que precisamos aprender dos pobres que sabem pedir a ajuda de Deus. O que é Boa Nova é a descoberta de que a Igreja não se encontra fora de nossa sina, mas entra conosco em nossa noite escura, para caminhar conosco, como o faz Jesus. O que é Boa Nova é que aquilo que muda o mundo é a santidade paciente dos fiéis pobres, “que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”, como ele diz em Gaudete et Exsultate (20).

O que é Boa Nova é um papado que coloca o compartilhamento da experiência do amor de Cristo no cerne de nossa evangelização. Um mundo em fluxo não necessita de mais conhecimento desencarnado, mas da experiência de um Deus amoroso cuja verdade cativa porque ela é, ao mesmo tempo, boa e bela. Daí a conclamação de Francisco para colocar o foco no amor misericordioso de Deus que precede qualquer obrigação moral ou religiosa de nossa parte – essencialmente, a mensagem da Primeira Semana dos Exercícios (21) – e para encarná-lo. O que melhor comunica “o cerne do Evangelho são obras de amor ao próximo” (22).

Isso significa discípulos missionários que não constroem cavernas para se esconder dentro delas, mas acendem fogos ao ar livre onde migrantes tiritantes em um mundo líquido possam encontrar segurança e acolhida. A instituição está a serviço da missão, razão pela qual Francisco pode conclamar para um novo paradigma eclesial de modo que “os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um meio proporcionando mais à evangelização do mundo atual do que à autopreservação [da Igreja]”. E significa uma nova abertura para o Espírito Santo. O “vento de Pentecostes” do Concílio Vaticano II é a energia que está por trás de Evangelii Gaudium, que faz quase 50 referências ao Espírito Santo e a suas características e seus frutos, como, por exemplo, liberdade, destemor e novidade.

Conclusão

A Opção de Francisco é o fruto de uma vida inteira de discernimento por parte de um papa jesuíta profundamente atento à sua época, e especificamente do discernimento da Igreja latino-americana na primeira década do novo milênio. Ele percebeu que, muitas vezes, a Igreja havia reagido mal à ameaça representada pela tecnocracia globalizada, retirando-se para uma postura defensiva e ética decorrente da desolação. Bento XVI compartilhava essa preocupação e, permitindo e incentivando a Conferência de Aparecida, criou espaço para que o Espírito Santo fizesse emergir, a partir da América Latina, uma visão renovada que podia ser percebida como um novo Pentecostes no Sínodo de 2012.

Francisco fez da visão de Aparecida a fonte da Igreja universal. Justamente porque é mais difícil viver a vida cristã em um contexto de um abismo cada vez maior entre a sociedade e a Igreja, tanto mais importante é facilitar a graça de que as pessoas necessitam para ser santas, e tanto mais importante é que nossa proclamação nasça da experiência vivida dessa graça. Daí o foco na misericórdia, no querigma, no encontro pessoal com Cristo.

A Opção de Francisco não é a “Opção de Bento”, mas foi, ao menos, a opção favorecida pelo Papa Bento e por São Bento de Núrsia. Ela significa colocar o encontro com a misericórdia de Cristo no centro de um mundo em fluxo, e começar de novo a partir daí.

Notas:

  • 14. Homilia, Campo Grande de Ñu Guazú, Assunção, 12 de julho de 2015.
  • 15. Discurso do Santo Padre, Catedral de Santiago, 16 de janeiro de 2018.
  • 16. EG 13.
  • 17. EG 24.
  • 18. EE n. 316. Francisco, Discurso aos participantes na 36a Congregação Geral da Companhia de Jesus, Auditório da Cúria Geral da Companhia de Jesus, 24 de outubro de 2016 (www.gc36.org).
  • 19. E, anteriormente, em seu discurso à liderança do CELAM no Rio de Janeiro em 28 de julho de 2013; em seu discurso à Igreja italiana em Florença em 25 de novembro de 2015; e na carta da CDFPlacuit Deo (“Sobre alguns aspectos da salvação cristã”), de 22 de fevereiro de 2018.
  • 20. GE n. 7.
  • 21. EG n. 15, 112, 115-116, 165.
  • 22. EG n. 107, 37, 113.

Austen Ivereigh. Escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papa- do de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.

Fonte:

Cadernos Teologia Pública é uma publicação impressa e digital quinzenal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que busca ser uma contribuição para a relevância pública da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pública pretende articular a reflexão teológica e a participação ativa nos debates que se desdobram na esfera pública da sociedade nas ciências, culturas e religiões, de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Os desafios da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje, constituem o horizonte da teologia pública.

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A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança? (1) https://observatoriodaevangelizacao.com/a-opcao-de-francisco-como-evangelizar-um-mundo-em-mudanca-1/ Fri, 03 May 2019 13:55:08 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=30413 [Leia mais...]]]> Neste artigo, mostramos como a opção Francisco foi o resultado de um sofisticado discernimento dos sinais da época da Igreja latino-americana, parte do qual foi um diagnóstico de onde a Igreja ocidental errara em sua resposta temerosa ao secularismo. Uma vez apreendido esse discernimento, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização.

(Cadernos Teologia Pública Ano XV – Vol. 15 – No 139 – 2018, p. 03-08)

Introdução

No ano passado, foi lançado nos Estados Unidos um livro amplamente discutido cujo título é The Benedict Option: A Strategy for Christians in a Post-Christian Nation [A opção de Bento: uma estratégia para os cristãos em uma nação pós-cristã]. Embora seja citado com frequência nesse livro, o Bento do título não é Bento XVI, e sim São Bento de Núrsia, o fundador do monasticismo ocidental. O argumento de seu autor, Rod Dreher, é que entramos em uma nova era pagã de trevas caracterizada por liquidez e dissolução, em que o capitalismo de consumo massivo e o individualismo liberal alcançaram uma vitória decisiva. As tentativas de conquistar a praça pública foram perdidas, e, em vez de investir energias em batalhas políticas que não podem ser vencidas, o que as pessoas cristãs devem fazer agora é bater em retirada estratégica para o que Dreher chama de “comunidades de fé estáveis”, onde, à semelhança dos monastérios da Idade Média incipiente, elas possam “construir um estilo de vida cristão que represente uma ilha de santidade e estabilidade em meio à maré alta da modernidade líquida” (1).

Só um americano cuja visão de mundo esteja moldada por uma leitura calvinista de Santo Agostinho poderia ver a relação do cristianismo com o mundo em termos tão dualistas e fazer uma leitura tão equivocada do monasticismo. E parece que Dreher nunca ouviu falar do Concílio Vaticano II, que há muito preparou a Igreja para o colapso da cristandade lamentado por ele. Mas menciono o livro de Dreher porque em um aspecto importante ele e o papa Francisco compartilham de uma concepção comum. Ambos têm uma concepção severa, apocalíptica até, da modernidade contemporânea como triunfo da tecnocracia globalizada que está desintegrando instituições e desfazendo vínculos de pertença. Ambos veem o crescente desligamento da cultura e do direito ocidentais do ethos cristão. E ambos creem que é miopia investir energia e recursos no apego a espaços de poder e privilégio.

Francisco é, quando muito, até mais apocalíptico do que Dreher. Pensemos em sua avaliação sombria da tecnocracia globalizada em Laudato Si’, ou no documento preparatório para o Sínodo de outubro, ou no discurso que fez na Universidade Católica de Santiago do Chile em janeiro. Naquele discurso ele falou, em uma linguagem normalmente associada a uma perspectiva conservadora, do colapso cultural pós-1968 e da perda da percepção de povo, família e nação, além de advertir que a vida se tornaria cada vez mais fragmentada, conflituosa e violenta (2). Francisco pode ser jovial e energizado pela esperança, mas não é um papa liberal com uma visão otimista do mundo.

Ainda assim, a opção de Francisco é quase exatamente o oposto da opção de Bento proposta por Dreher. Ela é uma conclamação a não bater em retirada para bunkers, trancar as portas e criar cidadelas jansenistas, e sim justamente o contrário: evangelizar, sair em missão e escancarar as portas. A liquidez que se encontra lá fora não é uma razão para erguer a ponte levadiça, e sim para construir pontes e lançar balsas de salvamento, bem como para reconstruir a partir de baixo.

A “Opção de Francisco” é essencialmente a resposta dada no grande encontro do CELAM em Aparecida, em 2007, desenvolvida para a Igreja universal em Evangelii Gaudium. A evangelização do mundo atual em fluxo exige uma conversão pastoral, enraizada em uma experiência individual e eclesial da misericórdia de Cristo, que gera discípulos missionários. Mas por que era necessário que a Igreja latino-americana conclamasse para uma conversão pastoral e missionária? O que estava falhando no modelo de evangelização da Igreja eurocêntrica para o qual a Conferência de Aparecida e o papado de Francisco foram a resposta do Espírito Santo? E qual é essa resposta?

Apresento isso em três partes. 1. Começo com o discernimento dos sinais dos tempos na América Latina antes e depois de Aparecida. 2. Depois explico por que uma parte desse discernimento era que a Igreja universal tinha sucumbido às tentações da desolação e estava deixando de evangelizar. 3. A terceira parte explica a tentativa de Francisco de refocalizar a Igreja e por que a misericórdia e as beatitudes são a pedra angular de sua evangelização.

1. A mudança de era: tribulação e conversão

Aparecida foi fruto do mais sofisticado discernimento dos sinais dos tempos já acontecido na Igreja em qualquer parte do mundo. Carlos Aguiar Retes, na época secretário-geral do CELAM, a quem Francisco nomeou primaz do México recentemente, cotejou as percepções em um texto importante de 2003 intitulado “Globalização e nova evangelização na América Latina e no Caribe”, que mostra como as forças da tecnocracia e globalização – o “principal detonador e acelerador da pós-modernidade” – estavam acabando com a pertença débil do cristianismo cultural, ao mesmo tempo que traziam um novo pluralismo junto com novas formas de exclusão social e econômica acompanhadas de concentração da riqueza. Como se sabe, a Conferência de Aparecida não falou de uma era de mudança, e sim de uma mudança de era – un cambio de época, e não una época de cambio – em que uma nova turbulência engendrada por uma nova fase da modernidade marcada pela informação e não pela indústria, pelo digital e não pelo mecânico, estava apresentando desafios inteiramente novos.

Essa mudança de era exigia uma nova evangelização. Ela não poderia ser primordialmente intelectual, porque a racionalidade ocidental estava em crise. Tampouco poderia se basear em estruturas e alianças de poder que mantinham a Igreja distante das pessoas comuns. A tarefa consistia em ajudar as pessoas fiéis a ter um encontro pessoal com Jesus Cristo e a vivenciar a misericórdia transformadora de Deus, em “novos círculos de discipulado em que nossos corações possam encontrar as respostas a nossas mais profundas ansiedades”, de oração e leitura do Evangelho. Ao mesmo tempo, a mudança de era exigia que a Igreja se colocasse junto às pessoas crucificadas pela nova economia global, acolhendo não apenas aquelas que eram pobres em sentido material, mas vítimas de exclusão e solidão em suas muitas formas novas. Em um novo contexto de pluralismo cultural e religioso, os católicos precisavam estar arraigados e ter clareza em sua pertença, ao mesmo tempo que trabalhavam ativamente para forjar a unidade a partir de uma diversidade reconciliada construída por meio do diálogo e do testemunho compartilhado (3).

A Conferência de Aparecida pressupôs que o cristianismo está sendo arrancado para fora do direito e da cultura sob a pressão do individualismo secular trazido pela tecnocracia globalizada. “Não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados”, advertiu Aparecida, acrescentando que a passagem de uma pastoral de conservação para um ministério pastoral missionário exigiria “reformas espirituais, pastorais e também institucionais”, para fazer “com que a Igreja se manifeste como mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária” (4). A Conferência conclamou a “repensar profundamente” a missão e presença da Igreja com base em um “encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperta discípulos e missionários”.

Um ano depois de Aparecida, o Cardeal Bergoglio falou dessa mudança a seu conselho de presbíteros, observando que “o elemento próprio da ‘mudança de época’ é que as coisas não estão mais em seu lugar […] A maneira de nos situarmos na história mudou […] Provavelmente o que nos parecia normal na família, na Igreja, na sociedade e no mundo parece que não voltará a ser desse modo”. Continuou afirmando que, “longe de lamentar ou condenar a situação, Aparecida reconhece que não tem as respostas aos problemas e, por isso, é um convite para discernir, à luz do Espírito Santo, de que maneira devemos nos pôr a serviço do Reino nessa realidade (DA, 33). O reconhecimento público de que não se sabe exatamente o que se deve fazer é um ato de profunda humildade”. A reação à mudança rápida não deveria consistir em lamentação ou raiva, mas em discernimento: o que o Espírito Santo está pedindo de nós desta época de mudança rápida e liquidez?

Bergoglio continuou falando de uma série de critérios oferecidos por Aparecida, em cujo cerne se encontra uma conversão pastoral que implica uma mudança de mentalidade, de atitudes e comportamentos. O cambio de época era um convite para recolocar Cristo no centro. Ele citou o Documento de Aparecida: “Para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados e discípulos fiéis […] somos chamados a ‘recomeçar a partir de Cristo’, a reconhecer e seguir sua Presença com a mesma realidade e novidade, o mesmo poder de afeto, persuasão e esperança, que teve seu encontro com os primeiros discípulos […]”. E resumiu isso na seguinte afirmação: “Uma Igreja de orientação missionária vive uma constante conversão pastoral que leva a assumir novas atitudes e formas de evangelização”. Passou, então, a listar uma série de características dessa nova postura, que, mais tarde, desenvolveria em Evangelii Gaudium (5).

Uma dessas características era a “ação pastoral com coração samaritano”, que vá ao encontro das pessoas em suas necessidades e sofrimentos concretos. Ele via o “desarraigamento” (“dessocialização”) de três formas principais: em termos afetivos, no sentido de que a dissolução dos vínculos de pertença das famílias, comunidades e instituições está produzindo uma profunda angústia emocional e psicológica; em termos existenciais, no sentido de que é mais difícil ter uma identidade e autopercepção clara, fazer planos e construir um futuro; e em termos espirituais, na perda da transcendência, de sinais e símbolos que conectem o presente com o eterno, que a secularização está trazendo. Como Bom Samaritano, a resposta da Igreja a essa vulnerabilidade também era tríplice: ajudar as pessoas a se reconectar com a criação e o mundo como criaturas de Deus, a conhecer diretamente Seu amor e misericórdia; a vivenciar na família e na comunidade, os vínculos de confiança e amor incondicional que construam resiliência, caráter e autoestima; e ajudar as pessoas a encontrar refúgio – lugares de paz, privacidade e oração seguros das pressões incessantes do paradigma tecnocrático, lugares a partir dos quais se possam discernir os espíritos e abrir canais da graça de Deus.

Francisco tem falado com frequência da necessidade de que a Igreja seja próxima concreta. Em uma sociedade líquida, tecnocrática, a Igreja precisa mostrar um Deus que atenta ao particular, à pessoa, às realidades e não às ideias. Proximidade e concretude são os sinais da encarnação. É assim que Deus salva. Bergoglio vem insistindo nisso ao menos desde 1997, quando, como bispo auxiliar, falou no sínodo sobre as Américas sobre o “desencantamento” do mundo contemporâneo. Ante uma falta de esperança, disse ele, “o Senhor fica tocado, desce e se aproxima […] Precisamos redescobrir Sua maneira de aproximar-se a fim de evangelizar. A palavra-chave é ‘proximidade’. Encontro, conversão, comunhão e solidariedade são as categorias que expressam a proximidade […] que abre o caminho para a esperança”.

Notas:

  • 1. DREHER, Rod. The Benedict Option: A Strategy for Christians in a post-Christian Nation. New York: Random House, 2017, p. 54.
  • 2. Francisco, Visita à Pontifícia Universidade Católica do Chile, 17 de janeiro de 2018.
  • 3. AGUIAR RETES, Carlos. Globalización y nueva evangelización en América Latina y el Caribe: Reflexiones del CELAM 1999-2003. Bogotá: Secretaría General, 3 de março de 2003. (Doc. CELAM, 165).
  • 4. CELAM, Documento de Aparecida [DA], n. 367, 370.
  • 5. BERGOGLIO, Jorge Mario. Volver a las raíces de la fe: la misión como propuesta y desafío. In: SPADARO, A. (ed.). En tus ojos está mi palabra: homilías y discursos de Buenos Aires, 1999-2013. Madrid: Claretianas, 2018, p. 747.

Austen Ivereigh. Escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papa- do de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.

clamava por ser evangelizada. O efeito do Espírito San- to, afirmou ele naquela ocasião, era libertar a Igreja da “suficiência de nosso próprio conhecimento que leva à gnose” e, ao impeli-la a evangelizar, “liberta-nos de nos tornarmos uma Igreja autorreferencial, como a mulher encurvada no Evangelho que não faz outra coisa a não ser olhar para si mesma, enquanto o povo de Deus está em outro lugar”13.

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