Andrea Grillo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Tue, 08 Oct 2019 15:55:58 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Andrea Grillo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Esse Sínodo exige respostas imediatamente implementáveis, decisões concretas… Com suas necessidades emergentes, a Amazônia pode indicar novos e mais amplos horizontes para a Igreja https://observatoriodaevangelizacao.com/esse-sinodo-exige-respostas-imediatamente-implementaveis-decisoes-concretas-com-suas-necessidades-emergentes-a-amazonia-pode-indicar-novos-e-mais-amplos-horizontes-para-a-igreja/ Tue, 08 Oct 2019 15:55:58 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=32232 [Leia mais...]]]> Eu diria que a relevância do Sínodo dedicado à Amazônia deriva de dois fatores: o primeiro é a relação com uma “periferia integral”, diferentemente dos Sínodos da Família e dos jovens, que abordaram um tema universal, do qual depois sondaram elementos periféricos. Agora no centro está a “periferia amazônica”, como plenitude de expressão eclesial com um “rosto” peculiar. Por esse motivo, e este é o segundo elemento, esse Sínodo exige respostas imediatamente implementáveis: como não é dirigido a uma Igreja universal, exige decisões concretas sobre liturgia, ministério, anunciação, sujeitos de autoridade e formas eclesiais verdadeiramente credíveis… Com suas “necessidades emergentes”, a Amazônia pode indicar a Roma novos e mais amplos horizontes, céus mais azuis. A Amazônia não é uma floresta sombria, na qual a Igreja pode se perder. Pelo contrário, é uma história particular, ou melhor, um conjunto de histórias muito particulares, nas quais pode-se reencontrar o sabor de uma fidelidade criativa e dinâmica ao Evangelho.

Andrea Grillo

“O Magistério da Amazônia pode vencer o ceticismo”. Entrevista com o teólogo Andrea Grillo

(A entrevista é de Paolo Mele, publicada por Confini, 05/10/2019. A tradução é de Luisa Rabolini. Publicada no IHU)

Iniciou no domingo, no Vaticano, o importante Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia. Um Sínodo, de certa forma, de contornos “explosivos”. Um sínodo estratégico para o pontificado do papa Francisco. Conversamos sobre isso com o teólogo Andrea Grillo, professor titular de Teologia na Universidade Pontifícia “Sant’Anselmo” de Roma. 

Confira a entrevista:

1. Professor, domingo, no Vaticano, se abre o importante Sínodo para a Amazônia. Um Sínodo, definido como “especial”, estratégico para o pontificado de Jorge Mario Bergoglio. Por que é tão importante para Francisco? 

Eu diria que a relevância do Sínodo dedicado à Amazônia deriva de dois fatores: o primeiro é a relação com uma “periferia integral”, diferentemente dos Sínodos da Família e dos jovens, que abordaram um tema universal, do qual depois sondaram elementos periféricos. Agora no centro está a “periferia amazônica”, como plenitude de expressão eclesial com um “rosto” peculiar. Por esse motivo, e este é o segundo elemento, esse Sínodo exige respostas imediatamente implementáveis: como não é dirigido a uma Igreja universal, exige decisões concretas sobre liturgia, ministério, anunciação, sujeitos de autoridade e formas eclesiais verdadeiramente credíveis. 

2. Sabemos que é um Sínodo, como já mencionado “especial”, que tem um duplo nível, um geopolítico, a defesa do bioma pan-amazônico, e outro, a busca de um caminho para uma Igreja com rosto amazônico. O contorno é explosivo: apenas uma igreja não colonial pode preservar o bioma Amazônia. Bioma visto como “lugar teológico” fundamental para o testemunho evangélico. É assim professor? 

Eu diria que precisamente esse entrelaçamento, que você indicou perfeitamente, requer do Sínodo uma visão profunda e de longo alcance. Defender uma “forma de vida”, sem qualquer concessão ao tradicionalismo, e “jogar o jogo linguístico eclesial” com regras mais simples e ao mesmo tempo mais articuladas torna-se um desafio para o pensamento e a prática eclesial. Basicamente, é uma questão de repetir o que Dante dizia quando distinguia entre “o que não morre e o que pode morrer”. E isso deve ser feito, de maneira entrelaçada, entre formas de vida local e jogo linguístico eclesial. Será uma experiência de crescimento e amadurecimento, para a Amazônia e para toda a Igreja. 

3. Vamos deixar de lado o lado “político” do Sínodo, que, no entanto, deve ser lembrado, inevitavelmente terá. Vamos analisar o lado eclesial. O Sínodo foi objeto de fortes ataques da facção conservadora. Estes últimos estão preocupados com algumas afirmações do Instrumentum laboris, incluindo a proposta de ordenar “viri probati” ao sacerdócio e sobre o papel das mulheres. Em suma, para eles o Sínodo é uma espécie de “Cavalo de Tróia” para minar a Igreja Católica. Parece-me um exagero … e para você? 

Este Sínodo, como todos os anteriores conduzidos por Francisco, não tendo conclusões “predeterminadas” – como costumava acontecer nos Sínodos anteriores – preocupa os burocratas e os preguiçosos. Francisco sempre disse que um confronto sincero e sereno pode fazer a Igreja caminhar, mudar a disciplina, aprofundar a doutrina. Este Sínodo, em particular, é uma ocasião preciosa para uma reflexão precisa e exigente sobre o ministério e a liturgia. Esses são dois temas nos quais toda transformação evoca facilmente desastres, traições, perdas, apostasias, heresias… Na realidade, está em jogo a capacidade da Igreja de responder com autoridade aos sinais dos tempos. A Igreja pode fazê-lo e, portanto, deve fazê-lo. Tem autoridade para tanto e não pode escapar. Caso contrário, seria infiel à sua própria função. Os tradicionalistas querem uma Igreja infiel por covardia. Mudar não é ceder, mas crescer. 

4. Pode-se dizer, na sua opinião, que o Sínodo e a “Laudato si’” são filhos de uma lógica diferente da relação entre tradição e atualização (ou modernidade)? 

Definitivamente. Este Sínodo, ainda mais que os anteriores, coloca-se como “mediação da tradição”, que exige uma nova tradução, nesse caso para anunciar a Palavra e celebrar o Sacramento no contexto de um complexo de culturas particulares, para as quais a aplicação das “lógicas romanas”- assim como são – resulta ineficaz há séculos. Com suas “necessidades emergentes”, a Amazônia pode indicar a Roma novos e mais amplos horizontes, céus mais azuis. A Amazônia não é uma floresta sombria, na qual a Igreja pode se perder. Pelo contrário, é uma história particular, ou melhor, um conjunto de histórias muito particulares, nas quais pode-se reencontrar o sabor de uma fidelidade criativa e dinâmica ao Evangelho. 

5. Como é delineado o “rosto amazônico” da Igreja e o que leva à Igreja universal? 

Eu gostaria de dizer isso essencialmente em dois níveis. O primeiro é o dos “sujeitos de autoridade”. A Igreja, para ser fiel ao seu Senhor, sempre emprestou os modelos de “autoridade” das culturas em que vivia. Imaginários gregos, romanos, francos, saxões ou moçárabes deram forma e carne à história do ministério cristão. Também a Amazônia, com suas peculiaridades históricas e geográficas, tem o direito de encarnar a única tradição que vem de Cristo com as formas masculinas e femininas de exercício da autoridade, conforme se desenvolveram in loco. Esse é um canteiro de obras promissor, no qual podemos trabalhar frutuosamente. E não haverá necessidade de criar nada “ex-nihilo“. Antes, deveremos reconhecer e dar força ao que já existe, na realidade vital e institucional daquelas culturas nas quais se faz o ato de fé e se vive em Cristo. O segundo ponto é, precisamente, permitir que a correlação entre ato de fé e vida cristã seja dita e ouvida ritualmente de acordo com as linguagens que aquelas culturas elaboraram na sabedoria secular de suas tradições. Uma liturgia que leva em consideração essas riquezas não é de modo algum um empobrecimento do “rito romano”. Pelo contrário, é o rito romano que sabe emigrar e se enraizar alhures. Descobrir a qualidade “migrante” do rito romano poderia ser um dos pontos-chave do Sínodo. 

6. O papa Francisco fez uma declaração há alguns dias: “Sinto-me sitiado”. Ou seja, as críticas de seus adversários são muito pesadas. Sabemos que alguns altos prelados também esperam sua demissão. A ameaça de um cisma condicionará o Sínodo? 

Se um papa fala com as palavras do Concílio Vaticano II, vive de acordo com o imaginário conciliar e não renuncia à profecia, é inevitável que seja, em muitos casos, “sitiado” por um aparato eclesial que frequentemente usa padrões de expressão e experiência muito diferentes. Por outro lado, é preciso reconhecer que Francisco mostra tal superioridade, não apenas de caráter, mas eu diria de cultura e de experiência, em comparação com seus críticos, que pode encontrar facilmente os recursos pessoais e institucionais para resistir ao cerco. Basta ler os textos dos críticos, para entender que a linguagem antiga, as representações obsoletas e os imaginários distorcidos não lhes dão nenhuma esperança. Se der certo, eles defendem ideais de 200 anos atrás. Se der errado, defendem sua pequena horta de influência. Francisco quer uma igreja a caminho e em saída, que não olhe para si mesma. Aqueles outros passam o dia inteiro na frente do espelho. Até a Amazônia pode ser para eles simplesmente uma “desagradável perturbação” para uma agenda composta de cerimoniais renascentistas com fim em si mesmos. 

7. Última pergunta: você está otimista com o Sínodo? 

Sim. Sou otimista. Não nego que haverá obstáculos, dificuldades, tentativas de esvaziamento ou de diversão. Acima de tudo, não tenho motivos para ceticismo. Creio que este é, para Francisco, o maior obstáculo, mesmo neste Sínodo. Ele pode contar com um grande consenso do povo de Deus, e certamente conta com alguns que lhe dizem aberta e até honestamente que ele está errado. Mas ele deve especialmente se precaver contra aqueles que sorriem e depois dizem que são céticos. Eu prefiro muito mais os críticos que os céticos. Na cúria romana, e também nas cúrias não romanas, o verdadeiro problema de Francisco são os céticos. De minha parte, sou otimista porque a realidade é superior à ideia, inclusive das ideias dos céticos. A Amazônia é um micro-macrocosmo no qual a hipocrisia dos céticos pode apenas justificar o status quo e impedir qualquer mudança. A esperança da fé possibilita um grande avanço com o qual Roma reconhece a Amazônia em sua especificidade, e a Amazônia restitui a Roma o seu “ritmo de corrida” e sua “autoridade em traduzir a tradição”. Se queremos correr em direção ao sepulcro vazio, não podemos ficar em casa, mudar a fechadura, obcecados apenas pelo medo de perder alguma coisa. É por isso que tenho motivos de esperança e confiança.

Andrea Grillo é pai de Margherita e Giovanni Battista. Doutor em Teologia (1994) e Mestre em Teologia (1990) pelo Instituto Liturgia Pastorale, Padova. Graduado em Teologia pela Scuola di Teologia “Ut unum sint” ligada ao Seminario di Savona. Graduado em Filosofia (1993) pela Università di Genova. Professor de Teologia, com ênfase em Sacramentos e Liturgia no Pontificio Ateneo Sant’Anselmo, Roma. Membro do Conselho Científico dos periódicos Studium e La Maison-Dieu.

Fonte:

IHU

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É possível cristãos de igrejas diferentes compartilhar da mesma ceia do Senhor? Com a palavra o teólogo Andrea Grillo https://observatoriodaevangelizacao.com/e-possivel-cristaos-de-igrejas-diferentes-compartilhar-da-mesma-ceia-do-senhor-com-a-palavra-o-teologo-andrea-grillo/ Thu, 19 Sep 2019 15:20:26 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/?p=31713 [Leia mais...]]]> Há tradições diferentes, todas as quais se referem à ceia do Senhor e à fração do pão, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade… Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia… Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão a partir da ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar… O verdadeiro divisor de águas não é um prévio acordo doutrinal, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como preâmbulo singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como falta de comunhão, mas como diferenças na comunhão.

Confira o artigo do teólogo italiano Andrea Grillo:

É possível compartilhar a ceia do Senhor?

“Para nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que Ele ressuscitou dos mortos.” (At 10, 41b)

1. Premissas

Há tradições diferentes, todas as quais se referem à “ceia do Senhor” e à “fração do pão”, e que vivem essa celebração, embora de modo diferenciado, como fonte e ápice da comunhão eclesial. O paradoxo é que, justamente no coração da comunhão, os cristãos experimentam a divisão e a hostilidade.

Sabemos bem que as diversas tradições cristãs, depois de incompreensões, lutas, divisões até mesmo sangrentas, silêncios e indiferenças, há algumas décadas, trabalham também para recuperar a comunhão perdida. Não é nada escandaloso que a busca da comunhão queira ter uma relação com a celebração da santa ceia, da sagrada liturgia. E esta não deve ser considerada apenas como a “máxima ambição”: não é verdade, de fato, que a “comunhão eucarística” se coloque apenas no fim do percurso, como o prêmio final da comunhão reconstruída. Não, o contrário também deve ser verdadeiro. Pode ser verdade que tradições diferentes, linguagens diferentes, imaginários diferentes, que se reconhecem todos reciprocamente no batismo em nome de Jesus Cristo, podem relançar a sua comunhão “a partir da” ceia do Senhor. O fato de que a missa e a liturgia possam se situar não no fim, mas no início, deveria ser uma possibilidade a ser redescoberta e valorizada. Como um modo de iniciar, e de se deixar iniciar, e não como um modo de terminar.

Isso não descarta, no entanto, que o esclarecimento necessário – eu digo não para chegar, mas ao menos para prosseguir – diga respeito, pelo menos, a três níveis de experiência da liturgia eucarística, sobre os quais as tradições se diferenciaram altamente e que eu gostaria de esquematizar assim:

  • o Corpo de Cristo – sacramental e eclesial – do modo como é compreendido e vivido;
  • a estrutura da celebração e a sua relação com o “sacrifício de Cristo”;
  • os ministérios dotados de autoridade e o seu reconhecimento recíproco entre as diversas confissões.

O que podemos identificar como problemático, ou como inaceitável, nesses três níveis não deveria ser absolutamente resolvido antecipadamente, quase como uma condicio sine qua non: o verdadeiro divisor de águas não é esse “prévio acordo doutrinal”, que seria capaz de habilitar uma práxis litúrgica comum. Em vez disso, como “preâmbulo” singular, deveria amadurecer nas diversas confissões a disponibilidade de ler as diferenças não como “falta de comunhão”, mas como “diferenças na comunhão”. Diversas teorias sobre a presença, diversas compreensões da relação com o sacrifício e diversos modos de exercer a autoridade foram percebidos, na história, como graves motivos de “ruptura da comunhão”. Cada um se sentiu negado pelo outro. Hoje – na disponibilidade recíproca, que sempre custa muito a todas as partes envolvidas – essas mesmas diferenças podem se tornar motivos de “riqueza na comunhão”.

O que muda é, acima de tudo, a percepção do outro e do seu mundo. Para entrar em sintonia, para perceber o outro na sua riqueza, para construir percursos reais de comunhão, não devemos apenas nos preocupar em traduzir as tradições alheias nas nossas categorias, e as nossas nas alheias, mas em “aprender a sua língua, com todas as suas regras”. Para usar a bela imagem proposta por George Lindbeck: faz-se ecumenismo não “traduzindo pensamentos e conceitos diferentes”, mas “aprendendo a falar línguas diferentes”. Para fazer isso, não devemos apenas estudá-las, mas também devemos praticá-las. A prática comum – da oração e da liturgia, da fé e da caridade – é uma das condições para esperar e para fazer a comunhão. Não se trata, portanto, de inventar uma “missa ecumênica”, mas de reconhecer que a eucaristia, a santa ceia, a santa liturgia é, em si mesma, visceralmente uma questão de unidade, uma questão ecumênica.

2. Uma autorreflexão católica, entre Ocidente e Oriente

Gostaria de aprofundar, em particular, alguns aspectos decisivos do desenvolvimento pós-conciliar. Evidenciando, acima de tudo, a profunda mudança da compreensão da “ação ritual” – como linguagem comum para toda a Igreja – e da forma de “participação” (actuosa participatio) que transforma a compreensão da liturgia e da eucaristia, recuperando o perfil eclesiológico do sacramento. Isso determina as seguintes consequências preciosas, estabelecidas com autoridade pela constituição litúrgica do Concílio Vaticano II:

  • A recuperação das múltiplas formas da “presença” de Cristo na liturgia (SC 7)

Não só a “presença real”, mas também a presença no ministro da eucaristia, presença na Palavra proclamada, presença nos sacramentos, presença na assembleia reunida para o louvor e para a oração. Essa ampliação de “formas” torna a comunhão mais ampla e articulada.

  • A reestruturação e requalificação da “liturgia da palavra” (SC 24, 35)

Entre essas formas, a experiência da “palavra proclamada” é posta novamente no centro da tradição litúrgica católica. Esse grande enriquecimento de textos e de sequências rituais requer uma profunda conversão pastoral e espiritual, que tem um impacto muito significativo também sobre a “inteligência teológica” da comunhão eucarística.

  • A contextualização da “consagração” no centro da oração eucarística

O “fazer memória” da eucaristia não se limita apenas às “palavras da consagração”, não é apenas repetição pontual de um ato, mas é retomada abrangente de uma “ação” do Senhor. Possibilitada pela “Palavra proclamada”, restituída como Palavra rezada na anáfora eucarística, em cujo interior são repetidas como narrativa instituinte as palavras da última ceia, e realizada com o rito da comunhão, que é fração de pão e participação no único pão partido e no único cálice compartilhado. Às “palavras” da instituição não corresponde apenas a “consagração”, mas sim a sequência “anáfora-comunhão”.

  • A sequência “oração-rito” como sucessão entre “anáfora-comunhão”

Essa recompreensão mais ampla da ação eucarística – que passa da lógica essencial da relação seca de um ato entendido como relação seca entre forma-matéria-ministro à sequência ritual entendida como “ação de Cristo e da Igreja” entre palavra, oração e rito – desloca a atenção da exclusividade da consagração, com a inevitável marginalização da comunhão e da Palavra proclamada, à correlação entre palavra e ação, entre anáfora e comunhão.

  • A recuperação da “participação mais perfeita” mediante a comunhão do pão e do cálice (mais do que “sob as duas espécies”).

No âmbito dos “pedidos de reforma” que o Concílio Vaticano II explicita acerca da eucaristia (SC 50-57), deseja-se, na SC 55, a recuperação da comunhão do único pão partido e do único cálice compartilhado. A relação entre pão, vinho, corpo e sangue pode ser pensada com o conceito de “espécie”, mas, para ser celebrado, precisa de categorias menos essencialistas. O sinal, para determinar uma “participação mais perfeita”, precisa de categorias conceituais menos limitadas. O contato ritual não é idêntico ao conceito teológico: certamente pode ser mais pobre, mas também pode se revelar mais rico.

3. Consequências sobre os três pontos considerados

a) A presença do Corpo de Cristo na eucaristia é, ao mesmo tempo, sacramental e eclesial. Ou, melhor, precisamente o reconhecimento de Tomás de Aquino do significado de “unidade da Igreja” como “efeito principal” da eucaristia continua sendo um marco da tradição, também no momento em que a própria tradição se enrijecia em uma leitura da “consagração” como essência, em relação à qual todo o resto seria redutivamente apenas “usus” do sacramento. Hoje, nós temos a tarefa de interpretar de modo mais amplo essa relação entre sacramento e Igreja, que a tradição atesta com argumentações às vezes frágeis demais.

b) Essa recuperação da “unidade da Igreja” como conteúdo da eucaristia leva a uma recompreensão da “sequência abrangente” – comunhão-anáfora-comunhão – que substitui a centralidade “essencial” da consagração. Poderíamos dizer que a eucaristia tem (e deve ter) uma lógica “mais do que necessária” e “supraessencial”. A distinção entre “essência/uso”, que volta a atenção apenas à fórmula, matéria, ministro, é substituída pela articulação entre forma ritual, matéria simbólica e relação entre presidência/ministérios/assembleia. A “ação de Jesus” não pode ser reduzida a um único “ato”.

c) A mudança de perspectiva determina e, de certo modo, pressupõe uma mudança na concepção do ministério. Se a liturgia é, acima de tudo, ação de Cristo e da Igreja, que liturgicamente envolve uma “actuosa participatio” de todo o povo de Deus, tal recompreensão relê o papel do presbítero/bispo como “presidência de uma celebração da assembleia” e não como “celebrante”. Tirando das costas do presidente a responsabilidade da celebração, essa leitura pode possibilitar, imediatamente, também no campo católico, o caminho rumo ao reconhecimento da “comunhão nas diferenças”, em vez da “excomunhão das diferenças”.

4. Apartheid a ser superado e tolerância alegre/fatigante das diferenças

Se ampliarmos o olhar, acredito que podemos reconhecer que a raiz mais fecunda da tolerância tardo-moderna não é indiferença às diferenças, mas a não indiferença às diferenças. Como também reconheceu Paolo Ricca, no seu livro sobre a última ceia que é a primeira, no momento em que a “hospitalidade eucarística” puder ser formalmente permitida, deveremos exercer, de modo novo, uma forma de tolerância que eu chamaria de interessada. Gostaria de dar um exemplo sobre a compreensão diferente da “presença do Senhor crucificado e ressuscitado” na comunidade eucarística. Não quero falar aqui das “diversas doutrinas”, mas das “diversas práticas” que surgiram – ou que, talvez, inspiraram – diversas doutrinas.

O que acontece, em particular, com o pão “consagrado” depois do fim da ceia? Aqui, precisamente no nível da prática diferente, serão postas à prova as nossas compreensões e as nossas tolerâncias. Tento fazer uma descrição disso em “âmbitos confessionais”:

  • cristão católico certamente poderá continuar “guardando” as partículas consagradas e poderá continuar repondo-as no sacrário, fazer delas objeto de adoração e até mesmo participar das 40 horas, da adoração noturna… mas deverá respeitar a possibilidade de que outros cristãos, em um caminho de verdadeira comunhão, possam se abster de realizar esses atos, sem, por isso, negar a presença do Senhor na eucaristia.
  • cristão evangélico certamente poderá continuar habitando a santa ceia com o canto e com a pregação, com o sermão e com a caridade, e poderá reconhecer o Senhor presente no momento em que o pão partido e o cálice compartilhado são participados por cada um membro da assembleia. Mas deverá respeitar como uma possibilidade diferente que outros cristãos possam habitar a sala eucarística mesmo na ausência de celebração, para parar em oração ou para adorar o Santíssimo Sacramento.

Uma Igreja verdadeiramente hospitaleira – ou seja, que vive a consciência de “ser hospedada” pelo seu Senhor – poderá descobrir nessas diferenças uma grande riqueza recíproca. Sem que um prejudique os outros e sem que ninguém se sinta desqualificado pelo juízo de uma experiência e de uma tradição diferente. A unidade fundamental no Senhor que vem em meio aos seus na Palavra e no Sacramento pode ser o princípio radical de uma fecunda e recíproca hospitalidade. Para continuar “comendo e bebendo com ele, por ele e nele”.

Ou, parafraseando Agostinho, para reconhecer que, na comunhão eucarística, todos fazemos a experiência tocante em que o Senhor “reza por nós, reza em nós e é rezado por nós”, como único Sacerdote, como Cabeça do Corpo e como Filho de Deus. Se soubermos nos mover nessa direção, exigente mas promissora, não tardaremos a nos encontrar em torno da mesma mesa, com o mesmo Senhor, no mesmo Espírito, rumo ao mesmo Pai.

Apêndice: sete teses sobre a “hospitalidade eucarística”

Sobre o tema que abordamos, Paolo Ricca lembrou um importante documento de 2003 [disponível aqui, em italiano], fruto do trabalho ecumênico de três institutos alemães, evangélicos e católicos.

Publico aqui as sete teses elaboradas pelo documento, omitido a ampla explicação que se segue a cada tese e que pode ser lida na versão completa do documento. Parece-me decisiva a primeira tese, que, invertendo o ônus da prova, muda o horizonte da argumentação teológica clássica, amadurecida em um contexto de radical conflito.

Tese 1: É preciso justificar não a admissão dos cristãos batizados na ceia/eucaristia comum, mas sim a sua rejeição;

Tese 2: A comunhão ecumênica vivida localmente e a falta de comunhão na ceia/eucaristia são realidades contraditórias. Isso enfraquece o testemunho confiado às Igrejas e as torna não credíveis diante dos desafios levantados pela sociedade;

Tese 3: Em muitos casos excepcionais, a comunhão eucarística já é permitida aos indivíduos hoje;

Tese 4: O batismo é a porta de entrada para a comunhão da Igreja, para o corpo de Cristo, que se reconstitui continuamente na ceia/eucaristia;

Tese 5: Jesus Cristo convida para a ceia/eucaristia. Ele é doador e dom. A Igreja dirige o convite apenas no seu nome e pelo seu encargo. Isso não pode ocorrer de modo indiscriminado, mas deve corresponder à vontade de Jesus;

Tese 6: A comunhão eucarística ultrapassa a comunhão eclesial;

Tese 7: A Igreja vive como comunidade no anúncio, no culto e no serviço ao mundo. A comunhão eclesial pressupõe essas ações e uma concepção comum de fundo, mas não uma determinada configuração histórica;

  • Tese 7.1: Comunhão na fé: as diversas representações do testemunho eclesial e da interpretação normativa da fé comum em Jesus Cristo como salvação do mundo não são necessariamente tais a ponto de dividir a Igreja;
  • Tese 7.2: Comunhão na compreensão da ceia/eucaristia: os diálogos ecumênicos chegaram a um profundo acordo sobre os temas tradicionalmente controversos em matéria de compreensão da ceia/eucaristia. Por isso, as diferenças que ainda permanecem não impedem uma celebração comum da ceia/eucaristia;
  • Tese 7.3: Comunhão na compreensão do ministério: apesar das diferenças que ainda existem sobre a questão do ministério, hoje se realizou, sobre os elementos fundamentais, uma convergência que torna possível a hospitalidade eucarística;
  • Tese 7.4: Comunhão no serviço ao mundo: diaconia, comunhão e eucaristia se condicionam mutuamente.

(Os grifos são nossos)

P.S.: Em Milão, em novembro de 2017, ocorreu um encontro sobre o tema “É possível compartilhar a ceia do Senhor? Esperanças e expectativas para uma mesa compartilhada no ‘fazer memória’ e testemunhar juntos o Evangelho”, organizado por diversas associações eclesiais, que contou com a participação do teólogo e pastor valdense Paolo Ricca e do teólogo italiano Andrea Grillo. A conferência de Grillo, revisada pelo autor, foi publicada por Come Se Non, 27-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Fonte:

IHU

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