Entrevista com o teólogo alemão Peter Hünermann
O teólogo Peter Hünermann analisa que o Papa busca claramente constituir as conferências episcopais de forma que realmente ponha em prática o Concílio Vaticano II
(Por João Vitor Santos | Tradução: Luís Marcos Sander)
Desde que assumiu o trono de Pedro, Jorge Mario Bergoglio vem trabalhando para dessacralizar e retirar o tom absolutista da figura do pontífice. “A monarquia moderna, ‘pura’, isto é, absoluta, leva ao caos”, diz o teólogo Peter Hünermann, ao afirmar que Francisco tem clareza disso. Por isso, na sua opinião, o atual Papa vem trabalhando para demonstrar que o líder da Igreja não precisa estar envolto numa áurea mítica. É verdade que o Papa adota vestes e acessórios mais modestos, evita desperdícios, mas…
Para Hünermann, a grande marca, a novidade em Bergoglio, é a sinodalidade. Conceito que, aliás, traz do Concílio Vaticano II e que insiste em trabalhar com o episcopado:
“Em sua grande alocução para o jubileu em torno da instalação do Sínodo dos Bispos em Roma em outubro de 2015, o papa Francisco tratou extensamente da sinodalidade na Igreja, mostrou seu fundamento teológico e falou da necessidade de introduzi-la em todos os níveis da Igreja… [Para o Papa] é impossível tratar o povo de Deus como sujeito meramente passivo a ser instruído por ministros”.
O problema é que mexer nas formas institucionalizadas gera desacomodações e, logo, resistências. “Claramente os maiores desafios com que o papa Francisco se depara: trata-se das formas de institucionalização das inovações”, avalia o teólogo na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E adverte:
“No episcopado mundial e entre os cardeais existe um pequeno grupo de bispos que defendem uma teologia semelhantemente tacanha e tradicionalista… Se as conferências episcopais não estiverem constituídas de forma sinodal e dotadas das respectivas competências, a Igreja atual não pode trilhar o caminho pelo qual a vontade de Deus quer guiar a Igreja hoje em dia… O número de escândalos eclesiásticos vai continuar na Igreja se não se implementar a sinodalidade junto com suas competências de controle e decisão”.
Confira a entrevista:
1. Como o senhor tem apreendido esses cinco anos do pontificado de Francisco? Quais temas avançaram e quais ainda não evoluíram o quanto se esperava?
Peter Hünermann – O papa Francisco deu impulsos espirituais, pastorais e teológicos substanciais e reavivou o espírito do evangelho. Isso se mostra bem claramente na atuação pública do Papa, como nos documentos publicados. Menciono apenas Evangelii Gaudium, Amoris Laetitia , Laudato Si‘ , a grande alocução por ocasião do jubileu do Sínodo dos Bispos em Roma sobre o tema da sinodalidade como caminho da Igreja no terceiro milênio, o texto recente sobre a santidade. A isso se acrescentam decisões práticas: a nomeação do conselho de nove cardeais, a consulta ao povo de Deus sobre o Sínodo dos Bispos em Roma etc. Aconteceu muitíssima coisa, e o papel do Papa assumiu uma outra forma.
2. O que reside dos pontificados anteriores em Francisco? E que novidades de fato ele traz?
Peter Hünermann – O papa Francisco assumiu a “teologia pastoral” de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Ele já a tinha defendido de modo muito incisivo publicamente em Aparecida: “Pastoral não constitui o oposto de ‘doutrinal’, mas compreende a dimensão doutrinal, e tampouco é uma mera aplicação de um tipo prático e contingente de teologia. A própria revelação – e por isso toda a teologia – é pastoral no sentido de que ela é a palavra da salvação, palavra de Deus para a vida do mundo.”
Neste sentido, para o Papa – assim como para o Concílio Vaticano II – as doutrinas teológicas transmitidas devem ser submetidas a uma avaliação crítica no respectivo contexto pastoral contemporâneo. “Ao observarmos a história, vemos que as formas religiosas do catolicismo se modificaram de modo evidente. Basta pensar, por exemplo, no Estado eclesiástico, em que o poder secular estava indissoluvelmente ligado com o poder espiritual. Isso era uma deformação do cristianismo, não correspondendo nem ao que Jesus queria e nem ao que Deus queria. Se ao longo da história a religião pode passar por mudanças tão grandes, por que não se haveria, então, de pensar que ela pode se adaptar à cultura dos tempos também no futuro?”
3. Quais as fragilidades dessa sua teologia?
Peter Hünermann – No tocante aos pontos fracos de sua “teologia pastoral” – isto é, de sua atividade doutrinal e sua “política eclesiástica” ou prática de direção da Igreja –, sente-se falta da necessária “consolidação institucional” de suas iniciativas. Existem muitos exemplos disso:
a) O Conselho dos oito cardeais tem, juridicamente, a forma de uma comissão ad hoc. Sua tarefa e função foram esboçadas à mão pelo papa Francisco em um bloco de anotações. Será que, do ponto de vista do direito eclesiástico, uma decisão importante é “institucionalizada” dessa maneira? Já durante o pontificado de João Paulo II , e mais concretamente ainda no pontificado de Bento XVI , todo observador via claramente que o Papa não pode dirigir a administração do Vaticano sem um Consistório permanente – o paralelo histórico ao Santo Sínodo dos patriarcas orientais. A monarquia moderna, “pura”, isto é, absoluta, leva ao caos.
b) Em Amoris Laetitia, o papa Francisco apresentou uma visão da compreensão sacramental do matrimônio apoiada no Vaticano II e, assim, corrigida em termos teológicos e pastorais. Essa não é mais a visão de Pio XI, Pio XII e Paulo VI, que se ativeram todos à Casti Connubii e à doutrina lá proposta. João Paulo II só trouxe um pequeno aprofundamento em Familiaris Consortio, mas, assim como Bento XVI, ateve-se a um conceito natural de matrimônio que é, a rigor, fundamentalista, por ser a-histórico. Com isso, o cerne de Casti Connubii ficou intocado. Esta encíclica nega todo desenvolvimento sociocultural e a história do matrimônio. As afirmações do Antigo Testamento sobre a poligamia não são levadas a sério, e as diversas passagens neotestamentárias são niveladas. Essa compreensão marca as afirmações do CIC – Código de Direito Canônico, de 1983. Neste ponto seria preciso mudar as afirmações do CIC.
4. Quais os desafios do pontificado?
Peter Hünermann – Os exemplos acima aduzidos na área doutrinal e jurídico-prática mostram claramente os maiores desafios com que o papa Francisco se depara: trata-se das formas de institucionalização das inovações. Que no episcopado mundial e entre os cardeais existe um pequeno grupo de bispos que defendem uma teologia semelhantemente tacanha e tradicionalista como a do arcebispo condenado Lefebvre, é um fato com o qual o papa Francisco tem de contar.
5. Qual o papel de Joseph Ratzinger nos processos de reforma da Igreja Católica do século XX? E em que medida esse seu papel incide sobre o pontificado de Francisco?
Peter Hünermann – No tocante à recepção do Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger está alinhado com Paulo VI e João Paulo II. Todos eles são de opinião que o Vaticano II complementa a tradição doutrinária do Segundo Milênio, de modo que o antigo e o novo coexistem. Isso se manifesta claramente – para Paulo VI – no Credo do povo de Deus . Ele foi esboçado por Maritain a pedido de Paulo VI e revisado pelo próprio Papa. Também deveria ampliar a Professio fidei que estava em vigor e fora enriquecida por acréscimos do Vaticano I . Entretanto, esse credo não é recebido.
Por ocasião da abertura do grande Sínodo de Cracóvia para a implementação do Concílio em 1972, Karol Wojtyla declara expressamente que “o Concílio não se ocupou com todo o conteúdo de nossa fé e não reuniu todas as verdades e as formulou em um credo. Isso só aconteceu depois do Concílio por parte de Paulo VI, que, em 30 de junho de 1968, proclamou o Credo do povo de Deus fazendo explicitamente referência ao magistério conciliar. Esse credo mostra claramente que a doutrina do Concílio Vaticano II, concentrada na realidade da Igreja, deve ser inserida de modo orgânico em toda a herança da fé e, consequentemente, na doutrina de todos os concílios precedentes e ensinamentos papais”. Essa hermenêutica também determina a ação magisterial e político-eclesiástica do Papa polonês.
Em muitas de suas decisões político-eclesiásticas e textos magisteriais, Bento XVI corroborou essa forma “aditiva” de lidar com a tradição doutrinal do Segundo Milênio e os novos enunciados do Vaticano II. Basta pensar na maneira como ele lidou com a Fraternidade de São Pio e na coexistência de dois ritos litúrgicos na Igreja latina.
Dimensão trágica
Existe uma dimensão trágica profunda no fato de que, até o fim de seu pontificado, Bento XVI não percebeu como o Concílio Vaticano II fez resplandecer de maneira nova o mistério de Cristo, a origem instituidora da Igreja. Como? Pela forma como leu o Antigo e o Novo Testamentos e incluiu a teologia do 1º e do 2º Milênios em suas reflexões críticas. Com isso, o Concílio introduziu uma reflexão moderna e, ao mesmo tempo, autêntica da fé.
Não há necessidade de comentar que esse legado representa uma dificuldade para o papa Francisco, assim como o grande esforço que Francisco faz para destacar constantemente textos de João Paulo II e Bento XVI em sua importância e seu significado. Ele atribui grande valor à demonstração da continuidade no marco da visão geral modificada. Por outro lado, causou uma impressão estranha na Alemanha o fato de que, no réquiem pontifical na catedral de Colônia por ocasião da morte do Cardeal Meisner – após a leitura da carta de condolências do papa Francisco por parte do núncio – o Sr. Arcebispo Gänswein leu em voz alta uma carta de Bento XVI . Essa carta foi vivamente aplaudida por muitos dos dignitários de postura tradicionalista presentes, como, p. ex., o ex-bispo de Limburg, Tebartz van Elst .
6. Quais os maiores desafios de Francisco no que diz respeito à Cúria Romana? E como compreender as resistências ao pontífice dentro da Cúria e no episcopado de diversos lugares do mundo?
Peter Hünermann – Em sua grande alocução para o jubileu em torno da instalação do Sínodo dos Bispos em Roma em outubro de 2015, o papa Francisco tratou extensamente da sinodalidade na Igreja, mostrou seu fundamento teológico e falou da necessidade de introduzi-la em todos os níveis da Igreja. Segundo ele, é impossível tratar o povo de Deus, que foi distinguido pelo Espírito Santo com o sensus fidei, que não se engana, e tem parte na missão profética de Jesus Cristo, como sujeito meramente passivo a ser instruído por ministros.
Nesse sentido, o Papa faz referência especial às conferências episcopais. Em seu peso prático, elas substituíram as antigas províncias eclesiásticas dirigidas por seu respectivo arcebispo. Se as conferências episcopais não estiverem constituídas de forma sinodal e dotadas das respectivas competências, a Igreja atual não pode trilhar o caminho pelo qual a vontade de Deus quer guiar a Igreja hoje em dia. Este é um claro ponto programático do Papa para seu pontificado, e eu vejo nisso uma forma bem fundamental de realização do Concílio Vaticano II. Permito-me apontar que o número de escândalos eclesiásticos vai continuar na Igreja se não se implementar a sinodalidade junto com suas competências de controle e decisão.
7. Deseja acrescentar algo?
Peter Hünermann – Oro para que o papa Francisco tenha colaboradores realmente competentes e dotados de lealdade e perspicácia crítica e que ele próprio ainda possa atuar de modo abençoado durante alguns anos para fazer com que as iniciativas de seu pontificado amadureçam de maneira adequada.
Sobre o entrevistado:
Peter Hünermann é teólogo alemão, professor aposentado de Dogmática Católica na Universidade Eberhard Karls de Tübingen, na Alemanha. Também lecionou Dogmática na Westphalian Wilhelms, em Münster. É autor de muitos livros de teologia.
Fonte:
IHU
Oremos suplicando ao Bom Deus perdão, conversão e santidade para os batizados e para toda a humanidade, criada, amada e salva pela Santíssima Trindade!