No Angelus do último domingo (26/06/2022), o Papa Francisco ressalta a importância de não buscarmos, diante das adversidades, um caminho de ressentimento, gerador de mais ódio e com espírito de vingança (muitas vezes travestido de ideal de justiça). Quando nos deparamos com incompreensões e injustiças, precisamos manter o caminho da misericórdia. “Esta forma de ser não denota fraqueza, pelo contrário, mas uma grande força interior. Deixar-se vencer pela raiva na adversidade é fácil, é instintivo” (Papa Francisco, Angelus, 26/06/2022).
É difícil dominar-se a si mesmo, fazendo como Jesus que – diz o Evangelho – se pôs «a caminho rumo a outra aldeia» (v. 56). Isto significa que quando encontramos fechamentos, devemos dedicar-nos a fazer o bem noutro lugar, sem recriminações. Assim Jesus ajuda-nos a ser pessoas serenas, contentes com o bem praticado e que não procuram a aprovação humana (PAPA FRANCISCO, Angelus, 26/06/2022).
Ressalta, assim, que o “fogo” que Jesus veio trazer à humanidade é distinto da vingança, trata-se da ordem do Amor misericordioso do Pai. O que está em jogo aqui é a radicalidade, a doçura e a libertação proveniente do perdão. O perdão se dirige ao imperdoável, o que aumenta a desproporção entre a profundeza da falta e a altura do perdoar e só faz sentido se ocorrer de forma excepcional, à prova do impossível, na condição de um dom. Por outro lado, é um ato que evoca a solicitação de amar os inimigos sem nada esperar em troca: “este pedido impossível parece estar só na altura do espírito de perdão, pois o inimigo não pediu perdão e é necessário amá-lo tal como ele é”.
O Pontífice exemplifica seu ensinamento pelo Evangelho de Lucas, 12: “Enquanto estavam a caminho, uma aldeia de samaritanos, tendo ouvido dizer que Jesus se dirigia para Jerusalém – que era a cidade adversária – não o recebeu. Os apóstolos Tiago e João, indignados, sugerem a Jesus que castigue aquelas pessoas, fazendo descer um fogo do céu. Jesus não só não aceita a proposta, como repreende os dois irmãos. Eles querem envolvê-lo no seu desejo de vingança e Ele não concorda com isso (cf. vv. 52-55)”.
Nessa condição, é notável a despreocupação dos polos do dar e retribuir, uma vez que estes não se tornam obrigatórios, não se limitam ao exterior do outro, pois estão além, alcançando a dimensão da gratuidade, no sentido estrito do termo ágape. A solução ante as situações de mal que encontramos implicam numa alteração da ética (justiça) para a supra-ética (superabundância). Para que seja possível pensar, afirmar e viver em conjunto a lógica do dom, da superabundância e a lógica da exata equivalência é preciso orientar a justiça no caminho da generosidade, libertando-a da tendência utilitarista (‘eu dou desde que me dês’) e reorientando-se a um mútuo-endividamento (gratuitamente). Nossos sistemas de justiça permitem, muitas vezes, uma reprodução do mal, na medida em que aplicar a justiça é fazer pagar o mal com uma pena equivalente.
A partir do paradoxo posto, de uma suposta irracionalidade, alcançamos um novo tipo de inteligência. No entanto, se trata de outro tipo de racionalidade, que desafia os paradigmas então construídos, e até mesmo o pensamento da tradição ocidental. Há aqui outra lei, que não é mais aquela da lógica da equivalência: a proporcionalidade entre pecado, morte e culpa está superada nesse momento. Trata-se da lógica do excesso, da vitória do sentido sobre o não-sentido, do Dom sobre o trágico, da Criação sobre o Niilismo, do Perdão sobre a vingança.
Tomando como ponto de partida a existência de uma desproporção entre amor e justiça, o filósofo cristão Paul Ricoeur busca dar ênfase às formas de discurso, ou seja, a poética do amor e a prosa da justiça. No âmbito deste último, afirma que “a justiça argumenta, e de forma muito particular, confrontando razões pró ou contra, supostamente plausíveis, comunicáveis, dignas de serem discutidas pela outra parte” (RICOEUR, 2012, p. 17). No entanto, esse conflito no nível da argumentação inerente ao discurso jurídico encerra-se em uma decisão fundamentada em uma racionalidade específica. Dessa forma, para Ricoeur, “o estágio mais alto que o ideal de justiça pode pretender é o de uma sociedade em que o sentimento de dependência mútua permanece subordinado ao de desinteresse mútuo” (RICOEUR, 2012, p. 21).
Ao final desse caminho de ênfase na desproporção entre o amor e a justiça, Ricoeur destaca que as duas sugerem pretensões acerca da prática individual e social, que “é a ação que amor e justiça se dirigem, cada um a seu modo, é a ação que ambos reinvindicam” (RICOEUR, 2012, p. 22). Assim, ele pretende superar a dicotomia entre os dois termos, propondo uma interface entre a poética do amor e a prosa da justiça.
Peçamos então a Jesus a força para ser como Ele, para O seguir com firme determinação neste caminho de serviço. Para não sermos vingativos nem intolerantes quando surgem dificuldades, quando nos dedicamos ao bem e os outros não compreendem, aliás, quando nos desqualificam. Não, silêncio e ir em frente (PAPA FRANCISCO, Angelus, 26/06/2022).
Podemos aprender muito, em todos os tempos, com os místicos da Igreja. São João da Cruz expressou o mais alto grau que uma alma pode alcançar na busca pelo sentido da existência. O inefável, aquilo que ultrapassa a nossa realidade, transborda de modo apaixonado, ou, nas palavras do místico: “Em tal aspiração, cheia de bens e glória, e de delicado amor de Deus para a alma, não quisera eu falar, nem mesmo o desejo porque vejo claro que não tenho termos com que o saiba exprimir, e pareceria que os tenho se dissesse”. O amor seria um outro nome para a identificação com Deus, em última instância, o esvaziamento de si mesmo em direção ao inefável, para além de nós mesmos. Um esforço de liberdade, por fim, capaz de engendrar um sentido novo para seu destino. Sobre o amor, sempre resta algo a dizer, deixando uma vereda infinitamente aberta para a possibilidade do derradeiro encontro. Somente é possível vivenciar o amor a partir do vazio, de um insistente “vazio em plenitude”. O silêncio pode ser expressão de sabedoria, resultando em paz e evolução humana.
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Prof. René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.