Em 1971, em contexto de violenta ditadura militar, dom Helder Câmara expressou em um poema, de forma profética e paradigmática, o imperativo ético da liberdade e da dignidade humana, no qual declarou a beleza de ser um “acendedor de esperanças”:
“Deixa-me acender cem vezes, mil vezes,
um milhão de vezes a esperança
que ventos perversos e fortes teimam em apagar.
Que grande e bela profissão: acendedor de esperança”
Nada mais profético do que acender, ainda que frágeis, chamas de esperança para iluminar quem encontra-se mergulhado na escuridão.
Não é tarefa simples, mas necessária, em determinados contextos sombrios – como o que atravessamos na atual conjuntura sociopolítica, econômica e religiosa da cultura brasileira – acender as esperanças de quem se encontra abatido pelo peso das cruzes que carrega ou ébrio por misturar tantos e contínuos copos de diferentes doses de pessimismo.
Em tempos assim, com tanto medo da violência dos poderosos, os profetas gritam: “deixemos o pessimismo para os dias melhores”! Esta frase foi pichada por anônimos e proféticos trabalhadores nos muros de Bogotá, na Colombia, em contexto de intensa violência contra qualquer protesto, grito ou sinal de rebelião popular contra o status quo.
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Quando lemos os capítulos iniciais de Mateus, Marcos, Lucas e João, encontramos a figura singular de João Batista, o filho de Zacarias e Isabel, aquele que entrou para a Tradição cristã como o precursor, o que preparou os caminhos para o advento da práxis libertadora de Jesus. Não é aleatório que os Evangelhos, inspirados pelos escritos do profeta Isaias, apresentem João, o Batista, como uma “voz de quem clama no deserto”, uma voz que simultaneamente anunciava a presença atuante de Deus no meio de nós, como interpelação ética, e denunciava, corajosamente, o que se apresentava como a mais grave entre as ameaças à dignidade da vida humana: as ações injustas dos poderosos que procuravam submeter, abafar e definitivamente silenciar a voz dos marginalizados, o grito dos oprimidos. Por isso João teve, assim como Jesus e quase todos os profetas e profetisas da história, um fim trágico: foi silenciado de forma cruenta. Não obstante a isso, os profetas são acolhidos e lembrados como uma voz incômoda de Deus ou, o que é o mesmo, uma voz eloquente dos sem-voz.
Toda religião – como também cada sociedade, no nível macro, e cada família, no nível micro – se concretiza por meio de relações sociais entre as pessoas envolvidas. E onde há relações humanas, há o exercício do poder. Nesse sentido, pode-se afirmar que não há religião autêntica, o cristianismo não é exceção, sem uma boa política (exercício do poder coletivo como busca e garantia do bem comum); sem acolher e bem cuidar do direito à voz de cada membro, garantindo, desse modo, o espaço de manifestação e, oxalá, de escuta, de sua incômoda dimensão profética.
Incômodo para os poderosos, o profetismo entende e legitima o poder enquanto serviço aos necessitados e garantia do bem comum, e não como forma de domínio do mais forte e do mais esperto sobre os demais. O profeta será sempre, em certa medida, uma voz dos oprimidos e, por isso, inevitavelmente, baterá de frente, e não sem consequências, com os que oprimem o povo.
O primeiro chamado que continuamente emana do desafio diário de ser cristão é o de assumir e cuidar da busca infinda de ser cada vez mais humano. Talvez porque somente quem assume como projeto de vida o processo contínuo de se humanizar, tendo desse modo a sensibilidade aguçada e à flor da pele, consegue discernir-perceber-acolher-responder como necessidade vital o cultivo cotidiano da centralidade do amar.
Amar, o verbo da vida verdadeiramente humana – que no contexto atual infelizmente, apesar de ser realidade crucial, apresenta-se frequentemente como vivência banal sem grandes implicações no modo como se concretizam as relações entre as pessoas – é decisão ética que exige de quem ama, inserido no contexto em que vive, assumir o desafio de responder às urgências vitais ao seu redor:
- Como garantir que a dignidade de cada pessoa e, hoje percebemos cada vez mais, a vitalidade de cada ecossistema, sejam bem cuidadas e reverenciadas como realidade preciosas na busca do bem viver?
- Como dizer que amamos uns aos outros, com tamanha desigualdade social e esta cultura da indiferença social, sem um compromisso coletivo de busca contínua do bem-viver e conviver?
Aqui temos que afirmar que só ama verdadeiramente aquele que é livre, acolhe e legitima a igual liberdade e dignidade da/o amada/o. No entanto, só pode ser livre quem, de fato, tem o direito a ter voz reconhecido e garantido. Não há autêntico amor pessoal, familiar e social sem que se concretize a acolhida da liberdade e dignidade do outro, sem diálogo e sem respeito mútuo.
Por isso, que em nossos discernimentos, procuremos dar ouvidos à voz dos profetas e profetisas de nosso tempo. Procuremos, igualmente, dar voz aos silenciados. Cuidemos de escutar o grito dos oprimidos! Cuidemos, como bons “acendedores de esperança”, da educação de nossas filhas e filhos para o diálogo e a defesa da justiça social: não há outro caminho para a paz, para a construção de um tempo novo!
Edward Guimarães é teólogo leigo. Doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas e mestre em Teologia pela FAJE. Professor de Teologia do Centro Loyola de Espiritualidade, Fé e Cultura e do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Assessor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), movimentos populares, pastorais sociais e membro do Conselho Pastoral Arquidiocesano (CPA) e da atual diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter).
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