Sextou também aqui pelas bandas do Araguaia. Uma sexta feira de chuva fina e clima ameno. Uma manhã preguiçosa, veio rompendo a aurora, com o sol timidamente mostrando a sua cara. Entre uma nuvem e outra, o astro rei, prenunciava o dia de inverno, como se denomina a estação das chuvas em terras do Araguaia. Aliás, por aqui só existem mesmo duas estações: inverno (preponderância das chuvas) e verão (domínio imponente do sol). Aprendi rapidamente a conviver com esta situação, apesar de suar intensamente nos primeiros meses em terras preláticas. “Você se acostumará”, me consolava Pedro.
Uma manhã em que acordei feliz cantarolando uma das canções que muito nos animaram em nossa caminhada de Igreja pé na caminhada. “O povo de Deus no deserto andava, Mas à sua frente Alguém caminhava. O povo de Deus era rico de nada, só tinha a esperança e o pó da estrada”. Creio que esta canção, motivou a muitos de nós a fazer a caminhada de Igreja, engajada na luta dos pequenos. A palavra “engajada”, era parte intrínseca de nosso vocabulário, no seio das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Rezar e lutar compunha o nosso itinerário nestas comunidades. Não havia dissociação entre estas duas realidades. Levávamos a sério o lema beneditino “Ora et labora”. Rezar e trabalhar, eram as duas faces de uma mesma moeda, uma coisa só.
O clima ainda é de pandemia, mas no seio da Igreja proposta por Francisco, vivemos em um clima perene de sinodalidade. Entre os anos de 2021 a 2023, vamos ouvir muito esta palavra: sinodalidade. Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, como nos propõe o papa Francisco. Lembrando que a palavra sínodo significa, antes de tudo, “caminhar juntos”. Nesta sua propositura, ser Igreja é caminhar juntos. É viver a sinodalidade, numa atitude de escuta atenta às vozes sufocadas de nossas comunidades e ir de encontro aos anseios de um povo sofrido e marginalizado. Ser esta Igreja neste contexto é estar atentos também as vozes do Espírito Santo de Deus, para o caminhar de uma Igreja que se espelha em seu Mestre de Nazaré.
Sinodalidade foi a inspiração primeira de nosso bispo Pedro, na caminhada de Igreja experienciada na Prelazia de São Félix do Araguaia. Mesmo sem trazer em si esta insígnia, a nossa Igreja caminhou nesta perspectiva do estar juntos numa mesma toada, com cada dos seus participantes, sabendo claramente que formávamos a família dos “enfrentantes”. Cheguei para compor esta Igreja no ano de 1992 e pude perceber nas primeiras horas, que o “caminhar juntos”, era o dístico da prelazia, se estendendo pelos seus 150 mil km2, como a uma irmandade dos mártires da caminhada, na luta pela vida do povo sofrido desta região.
O simples e despojado padre Pedro, nem imaginaria que se transformaria em dom Pedro. Em julho de 1971, recebe a carta do papa Paulo VI (1897-1978), nomeando-o bispo desta região. Evidente que a primeira reação de Pedro foi renunciar a tal ideia, uma vez que não queria, em hipótese alguma, fazer parte da hierarquia da Igreja. Até escreveu sua carta-renúncia. Entretanto, convencido pela equipe de pastoral da época e, com a ajuda de Tomás Balduíno, o fez aceitar. Foi assim então que, no dia 23 de outubro, felizmente, Pedro é ordenado Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Como bem registrou uma daquelas testemunhas oculares (Antônio Canuto): “Naquela noite de 23 de outubro de 1971, a abóbada celeste, as águas do Araguaia e todos nós que lá estávamos fomos testemunhas de que algo novo acontecia. Um bispo recusava as marcas do poder para mergulhar totalmente na vida do povo”. No cartão de lembrança de sua ordenação episcopal já estava escrito que tipo de bispo nosso Pedro seria: “Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno, o olhar dos pobres com quem caminhas, e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus; nem usarás outras luvas que o serviço do Amor.”
Estamos vivendo um “Kairós”. Palavra de origem grega, que significa “momento certo” ou “momento oportuno”. “Momento sinodal”. Ser Igreja sinodal: comunhão, participação e missão. Uma Igreja inserida na realidade dos caídos à beira da estrada. Uma Igreja que se faz presente em meio aos sofredores. Uma Igreja menos hierárquica e mais servidora, como propôs Jesus de Nazaré. Uma Igreja menos clerical, patriarcal e masculinizada, mas uma Igreja samaritana, que vê a realidade, e é capaz de sentir compaixão e cuidar dos mais necessitados. Uma Igreja de verdade, de um “caminhar juntos”, e que deixe de pisar os seus pés na “Casa Grande”, mas que os lambuzem nas “lamas” das senzalas de ontem e de hoje. Uma Igreja Franciscana em todos os sentidos, que saiba acolher, cuidar das feridas e devolver a dignidade dos filhos e filhas de Deus. Uma Igreja em que suas vestes “sagradas” sejam aventais e mantos para enxugar os pés machucados, pela dor e o sofrimento dos caídos a beira dos caminhos de hoje. Ser Igreja sinodal, nosso maior desafio.
Sobre o autor:
Francisco Carlos Machado Alves é mineiro de Montes Claros, mas, desde 1992, a convite de Pedro Casaldáliga, vive e é agente de pastoral em São Félix do Araguaia. Fez das causas indígenas a grande causa de sua vida. Chico Machado, como é conhecido, trabalha com formação continuada de professores indígenas nas escolas das aldeias do Mato Grosso. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Iny (Karajá), dentre outros. Ele foi redentorista, tem mestrado em educação indígena, ele é graduado em filosofia, história e teologia. Chico Machado é colaborador do Observatório da Evangelização – PUC Minas.