A ética social do papa Francisco: O Evangelho da misericórdia segundo o espírito de discernimento
Por Juan Carlos Scannone S.J.
1. Introdução
Quando recebi o encargo da Editora Vaticana de escrever um breve volume sobre a ética social do atual pontífice – como parte da coleção “La teologia di Papa Francesco”(1) –, logo pensei que o fio condutor devia ser o da misericórdia, “princípio hermenêutico de seu pontificado”, segundo Carlos Galli,(2) que não só inspira sua doutrina social, mas também todo o seu agir, pregar, ensinar, governar, viver. Essa torrente de água viva desemboca imediatamente em outra característica própria do Santo Padre: seu desejo de “uma Igreja pobre para os pobres”, com todas as consequências que isso implica, também em relação à nossa frágil “irmã mãe terra”. Mas, como se trata não só do conteúdo, mas também do método da sua ética e doutrina sociais, dediquei a última parte de tal volume ao discernimento, carisma inaciano outorgado a Francisco, mas que ele oferece à Igreja universal para o seu necessário “perscrutar os sinais dos tempos” (Gaudium et spes, GS 4).(3)
Por conseguinte, a presente exposição consistirá em três partes: 1) a Boa Nova da misericórdia; 2) uma Igreja pobre para os pobres; 3) o discernimento eclesial dos sinais dos tempos.
2. O fio de ouro da misericórdia
Eu o chamo assim porque é transversal tanto à ética social quanto a todo o pontificado de Francisco. Já quando, de simples sacerdote jesuíta, foi promovido a bispo auxiliar de Buenos Aires, ele escolheu um lema que ainda conserva agora como papa, a saber, a frase de São Beda, o Venerável, “miserando atque elegendo”, referida ao fato de que “Jesus olhou a Mateus com amor misericordioso e o escolheu” (Misericordiae vultus, MV 8). É assim que ele não só se reconhece como pecador e receptor da misericórdia e do perdão de Deus, mas também de sua escolha misericordiosa. Por isso, ele se sente chamado a vivê-la, praticá-la e ensiná-la. De minha parte, considero que, para Bergoglio, essa frase não é apenas um lema, mas também um carisma, um temperamento de ânimo existencial, uma doutrina viva, um modo de governo. Pode-se aplicar a ele o que Bergoglio afirma em geral: “Sou amado, logo existo; fui perdoado, então renasço para uma vida nova; fui ‘misericordiado’, então me converto em instrumento de misericórdia” (Misericordia et misera, MeM 16). E assim ele experimenta e comunica “a alegria do Evangelho”.
Na misericórdia, o papa encontra “a própria substância” (carta ao cardeal Poli), “o núcleo” (MV 9), a “palavra-chave” (ibid.), a “síntese” (MV 1), a “lei fundamental” (MV 2), a “arquitrave” (MV 10) da Boa Nova de Jesus, “a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade” e “o caminho que une Deus e o homem” (MV 2), já que – segundo ele – “do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia” (MV 25). Não é estranho, portanto, que sua primeira viagem como papa fora de Roma foi a Lampedusa, como grande gesto ao futuro que simboliza tal chave decisiva de interpretação.
Pois Cristo – à luz do Espírito – é o “rosto da misericórdia” (misericordiae vultus) do Pai, cujo “atributo mais estupendo” (Dives in misericordia 13, MV 11) consiste precisamente – segundo São João Paulo II – em sua misericórdia, “não (…) um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da onipotência de Deus” (MV 6). Daí que não se pode duvidar que, para Francisco, a misericórdia tem uma raiz trinitária, na qual se fundamenta ultimamente a dimensão social do Evangelho (Evangelii gaudium, EG 176), a saber, no amor infinito do Pai, que confere a cada homem e mulher uma dignidade infinita (EG 178), no sangue redentor do Filho, que “não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens” (ibid.), e na ação vivificante do Espírito Santo, que “atua em todos”, “permeia toda a situação humana e todos os vínculos sociais” e “desfaz os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis” (ibid.). Por isso, “o próprio mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos nos realizar nem nos salvar sozinhos” (ibid.), mas sim como Povo fiel de Deus e de seu Reino (EG 176).
Mas, além de ser a substância do Evangelho, a misericórdia é uma das necessidades do nosso tempo, no qual está ocorrendo em muitas partes “a globalização da indiferença”, embora, por outro lado, padeçamos de uma crise socioambiental que ameaça a sobrevivência do planeta (cf. EG e Laudato si’, LS).
Por conseguinte, não basta uma mera “teoria da misericórdia” (MeM 20), mas que “onde houver cristãos, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia” (MV 12), pois, como seguidores de Jesus, “somos chamados a fazer crescer uma cultura da misericórdia” (MeM 20), até “criar uma verdadeira revolução cultural” (ibid.)
Pois Francisco assevera que Jesus pregava o Reino de seu Pai, isto é, um reinado social e público “de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG 180). Seu “princípio de discernimento” é a universalidade, como indicava Paulo VI em relação ao desenvolvimento: “Todos os homens e o homem todo” (Populorum progressio 14), ou seja, “todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos” (EG 181). É assim que, por exemplo, a exortação pós-sinodal Amoris laetitia transmite não só a alegria do amor, mas também a compreensão benevolente para com os condicionamentos de muitos matrimônios em “situação irregular” (Amoris laetitia, AL cap. 8), em um espírito de misericórdia sem prejuízo da verdade e da justiça.
Na Carta Apostólica MeM 1, o papa contempla – com Santo Agostinho – o face a face entre Jesus – “Rosto da misericórdia” do Pai – e a miserável pecadora – figura de cada um de nós, incluindo ele mesmo, que frequentemente se declara pecador – como motivo para abrir o nosso coração à misericórdia e à reconciliação com nossos irmãos pecadores e sofredores, deixando-nos “estremecer as entranhas” (EG 193), com um “amor visceral” (MV 6) e, portanto, experienciável, concretíssimo e eficaz.
Mas – como já se disse – ele não se refere apenas ao face a face imediatamente interpessoal em relações curtas (Paul Ricoeur) ou microrrelações (Caritas in veritate, CV 2), mas também às relações longas ou macrorrelações (ibid.), mediadas por estruturas e instituições sociais, políticas, econômicas. Portanto, trata-se também da reconciliação e da paz entre os povos e entre setores belicamente enfrentados de um mesmo povo internamente desgarrado, como a Síria ou a Colômbia, aos quais, por isso, o papa lhes outorgou um cuidado especial.
Está claro que a misericórdia não suplanta a justiça, mas a pressupõe e excede, impedindo-a de “cair no legalismo, mistificando seu sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui” (MV 20). Na continuação dessas palavras, o papa mostra como Jesus mesmo e, em seu seguimento, Paulo superam, desse modo, a perspectiva legalista dos fariseus de seu tempo, para finalmente concluir: “A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50, 11-16)” (ibid.).
“A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir” (MV 21), diz o papa. E quase imediatamente acrescenta: “Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (ibid.). Pois bem, esse evento é a misericórdia perante a miséria do pecador, que “será sempre um ato de gratuidade do Pai celeste, um amor incondicional e não merecido” (MeM 2). Segundo Jon Sobrino – por ser a primeira e a última tanto em Deus e em Cristo quanto no homem – ela não se ilumina plenamente senão em seu próprio exercício,(4) concedido gratuitamente por misericórdia.
Se levarmos em conta tanto as preferências do amor misericordioso de Deus Amor quanto a atual e gravíssima crise socioambiental, sofrida sobretudo pelos mais frágeis, desembocamos quase imperceptivelmente na segunda parte desta exposição, isto é, o anseio do papa de “uma Igreja pobre para os pobres”.
(A 2ª Parte deste artigo continua na próxima postagem…)
Notas:
1. Ver meu livro: Il Vangelo della Misericordia nello spirito di discer- nimento. L’etica sociale di papa Francesco, Città del Vaticano: Ed Vaticana, 2017.
2. Cf. Carlos María Galli, “Líneas teológicas, pastorales y espirituales del magisterio del Papa Francisco”, Medellín 43 (2017), pp. 93-158, em especial p. 106.
3. O número depois da abreviatura dos documentos da Igreja é o número do parágrafo.
4. Cf. Jon Sobrino, “Hacer teología en América Latina”, Theologica Xaveriana 39 (1989), p. 139-156, em especial p. 145.
(Os grifos são nossos)
Sobre o autor:
Juan Carlos Scannone. Jesuíta, foi professor de diversas universidades latino-americanas e europeias, incluindo a Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. É ex-reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel, da Universidade del Salvador. Ingressou na Companhia de Jesus em 1948 e foi ordenado sacerdote em 1962. Obteve licenciatura em filosofia pela Faculdade de San Miguel (Argentina), e em teologia pela Universidade de Innsbruck (Áustria). Obteve doutorado em filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha). A partir de 1969 foi professor de filosofia e de teologia na Universidad del Salvador (em Buenos Aires). Foi diretor da revista Stromata. Entre 1988 e 1998 foi um dos vice-presidentes da União Mundial de As- sociações Católicas de Filosofia. Foi integrante da Academia Europeia “Scientiarum et Artium” e vice-presidente da Sociedade Argentina de Teologia.
Fonte:
Belíssimo artigo sobre a misericórdia. Qualidade admiravelmente encontrada no nosso amado Papa Francisco. É para todos uma alegria e consolação. Nossa humanidade carece deste sentimento oriundo, como disse o Autor da Santíssima Trindade. Como filhos de Deus deveríamos expressá-la. Oro muito pela conversão e santificação da humanidade. “Orai sem cessar” (Jesus Cristo).