“Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma. Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado! E isso é magnífico!” Na data de hoje, a provocante e pertinente reflexão libertadora do padre Gegê Natalino, confira:
SÃO JORGE E OGUM: O CATOLICISMO CARIOCA NA ENCRUZILHADA ENTRE O DIÁLOGO E O OPORTUNISMO
(Salve Jorge – Ogunhê!)
O intelectual das ruas e da cultura popular, Luis Antônio Simas, é personalidade indispensável para se pensar sincretismos/cruzos/encruzilhadas na cidade encantada e macumbizada do Rio de janeiro. Pensar e viver São Jorge nesta cidade implica destronar quaisquer pretensões ou ilusões de um cristianismo (católico e evangélico) virgem, casto, puritano e isento das desconcertantes africanizações e empretecimentos. Já bem escreveu o intelectual Alberto da Costa Silva ser o Brasil um país “extraordinariamente africanizado”. E essa situação irremediável de encontro entre fés constituiu, em particular para o catolicismo (ou catolicismos), um inalienável desafio para o diálogo sério e sincero no horizonte de uma “Igreja em saída”, nos termos do papa Francisco, e da sinodalidade (=caminhar juntos). Parto da afirmação de que toda fé é sincrética, como o é todo fenômeno cultural. E isso fala sobre riquezas e potencialidades humanas.
Dessa feita, pensar e celebrar São Jorge, o mais macumbeiro dos santos do catolicismo, dispensa olhares ingênuos e/ou indesculpavelmente puritanos e mentirosos. Podemos sim dizer, do ponto de vista radical, que São Jorge não é Ogum e que Ogum não é São Jorge; e tudo bem! Mas essa afirmação que alegra os que obstinadamente defendem, com unhas, dentes e catecismos, uma fé “pura”, despreza, por vezes com cinismo, o nó de relações construídas no profundo do imaginário-Brasil entre o Santo e o Orixá, entre Jorge e Ogum.
Uma coisa é a fé pensada nos manuais e gabinetes, uma outra coisa é a fé vivida e sentida na pele de um povo perito em cruz e encruzilhada. E encruzilhada não é apenas lugar geográfico, mas perspectiva de mundo, forma de ser e estar no tempo. Ser de encruzilhada é uma das mais potentes contribuições cognitivas da população preta na diáspora.
É nesse sentido que é possível falar em “pedagogia da encruzilhada”, como na obra de Luis Rufino. Escreve sugestivamente Leda Maria Martins: “A cultura negra é uma cultura das encruzilhadas”.
O mundo católico oficial é o mundo da estrada reta. O pensar reto ocidental (que forma/deforma clérigos e laicato) é pobre demais para captar dribles, sutilezas, encontros, trocas e encantamentos próprios do pensar/ser em cruzo. É preciso levar a sério quando, em cruzo, Zeca Pagodinho confessa como voz coletiva: “Eu, sincretizado na fé, sou carregado de axé… Sim, vou na igreja festejar meu protetor… Sim, vou no terreiro pra bater o meu tambor. Bato cabeça, firmo ponto, sim senhor. Eu canto pra Ogum “.
Faz lembrar “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa: “Não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo Rio… Uma só pra mim é pouca, talvez não me chegue”.
Está o catolicismo oficial disposto a dialogar de forma positiva e sincera com esse forma encantada de afirmar a vida?
Como pode um catolicismo oficial com mentalidade colonizadora se abrir a outras possibilidades de ser e está no mundo?
Em “A ciência encantada das macumbas”, escrevem Luis Simas e Rufino: “Os santos que por aqui baixam praticam o cruzo, são macumbeiros, arrastam multidões em suas companhias, vadeiam nos sambas de roda, nas capoeiras, riem nos versos improvisados, bebem cerveja…”. Como retirar ou desconsiderar dos festejos de São Jorge a cerveja e a feijoada, bebida e comida votivas do Orixá Ogum?
Uma paróquia que afirma São Jorge e rechaça Ogum mas, no dia do santo, faz feijoada, com ou sem consciência, afirma o santo e orixá. Afirma ou não afirma? Se não afirma na homilia, afirma no prato!
Dizem ainda os autores Simas e Rufino: “Nos cruzos transatlânticos, porém, a morte foi dobrada por perspectivas de mundo desconhecidas das limitadas pretensões do colonialismo europeu-ocidental”.
É fato que historicamente, no Brasil, São Jorge, por conta do sincretismo com Ogum, era visto, no mínimo, com suspeita pelo catolicismo oficial. Se aproximar do Santo significava abrir as portas aos macumbeiros. Ainda hoje verificamos em muitos espaços católicos o olhar de desconfiança e até de ojeriza a tudo que lembre a presença das religiões de matriz africana.
Mas , fato é que por conta da persistência dos macumbeiros, populares, e hoje, de artistas e celebridades, o Santo está na crista da onda. E seus festejos estão cada vez mais lucrativos, sobretudo a feijoada.
E é também fato que, com ou sem bispos, com ou sem padres, com ou sem missa, com ou sem hóstia, o santo guerreiro é festivamente celebrado. Salve, Jorge! Ogunhê!
Quem sempre foi privado da hóstia aprendeu a combater com a feijoada!
Na feijoada, todos e todas comem; na missa não!
E vale dizer que o lugar de destaque que São Jorge ocupa hoje no Rio de janeiro é fruto, sobretudo, da sapiência e persistência do povo do terreiro. E no cruzo, o cristianismo, quase sempre metido a puro e a besta, foi ogunizado, aceitemos ou não. O povo do terreiro se alterou com o cristianismo, mas também macumbizou a fé cristã. São Jorge macumbiza a cidade; e a igreja também! Quem se mistura com o santo, feijoada come!
Quem pode dizer que a oração de São Jorge feita nas paróquias e pelos devotos onde quer que estejam não reedita saberes e práticas pretas para fechar o corpo?
O vermelho que toma conta da cidade e dos corpos no dia de Jorge se dá por conta da cor litúrgico-católica referida aos mártires da fé cristã ou por razões outras que ultrapassam os limites dos cânones e pensares eclesiásticos eurocentrados?
Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma.
Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado!
E isso é magnífico!
Escreve, de forma desconcertante, Luis Antônio Simas: “O Rio de janeiro começa a comemorar São Jorge e Ogum! E para dar um garrinchamento nos puristas que encaram o sincretismo mecanicamente, aqui o buraco é mais embaixo: na nossa cidade, não foi Jorge que cristianizou Ogum. Segura, malandro. Foi Ogum que empreteceu Jorge”.
O cavalo corre mais que a Igreja. Desse modo, a “Igreja em saída” não tem saída: ou rompe o olhar puritano, preconceituoso e racista e anda mais depressa para o diálogo sincero e engajado com o mundo de Jorge ou vai perder o santo de vista.
O risco está na Igreja ceder a tentação oportunista de só falar em Jorge única e exclusivamente como chamaris para tentar ganhar o povo, multiplicar curtidas e encher os cofres. São Jorge, outrora persona non grata para muitos católicos puritanos, sobretudo clérigos, se tornou muitíssimo lucrativo!
Salve, Jorge! Ogunhê! Patacori, Ogum!
*Padre Gegê Natalino é Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo.