Religião como alienação ou libertação?

“Jovens ‘sem religião’ superam católicos e evangélicos em SP e Rio”, é o que mostra pesquisa do Datafolha do ciclo eleitoral de 2022.

“O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica”, afirma o sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP. Para o pesquisador, perda de força da igreja católica é um dos motivos que explicam o avanço dos “sem religião”.

“Além disso, a igreja católica tradicionalmente tem um enorme contingente de católicos ditos ‘nominais’, ou seja, que não frequentam os cultos, não estão expostos às autoridades eclesiásticas e nem às suas orientações doutrinais, morais e comportamentais”, acrescenta.

No século XVIII, filósofos iluministas acreditavam que a religião era a “infância da razão”, que seria uma forma de pensar superada em poucas décadas. Tais pensadores estavam errados! Se olharmos em diversos cenários atuais, as religiões são fonte de sentido para milhares e milhares de pessoas em todo o planeta. Aí está sua principal função: dar sentido à existência humana. A religião pode ser genuína, cumprindo sua função original de “religare”, “religar” à unidade, ao todo, por meio do simbólico, do sagrado. Por isso, diante de temas difíceis, como o é o da morte e da finitude, ela porta profundo sentido. Também se pensarmos do complexo mundo em que vivemos, a religião pode ser um alento, uma voz de esperança. Sobre o lugar genuíno da religião, nos ensina Leonardo Boff: “A religião funda a incondicionalidade e a obrigatoriedade das normas éticas muito melhor do que a razão abstrata ou o discurso racional, parcamente convincentes e só compreensíveis por alguns setores da sociedade que possuem as mediações teóricas de sua apreensão. A religião, por ser a (cosmovisão) mais generalizada, concretamente, o caminho comum das grandes maiorias, é mais universal e compreensível. Ela vive do Incondicional e procura testemunhá-lo como a dimensão profunda do ser humano. Só o Incondicional pode obrigar incondicionalmente”[1].

Por outro lado, é preciso chamar a atenção para elementos que podem trazer sofrimento e culpa por meio da religião. Talvez aí esteja um dos motivos para seu distanciamento e esvaziamento. É preciso entender que o sentido que falamos anteriormente tem ressonância em cada indivíduo, em cada alma, em distintas conexões inconscientes. No Cristianismo, por exemplo, como se trata de uma religião revelada, há a exigência de interpretação e de acolhimento da Palavra por cada ser, individualmente e comunitariamente. É preciso interpretar a mensagem diante dos desafios de cada época.

Por isso, o Cristianismo sincero não pode fugir jamais de seu horizonte: aquele da vulnerabilidade. E esse horizonte revela a condição humana: a de vulnerabilidade corpórea. Essa condição é justamente aquela que deu origem ao cristianismo: a da Encarnação. O verbo se fez carne, se fez humano, se fez corpo. O Reino foi um “reino invertido”, a partir dos pobres, oprimidos, vulneráveis, a fortaleza se mostrou na fraqueza, o poder no “não-poder”, a vingança no perdão.

Assim, a religião deve servir para libertar os humanos da culpa e não os inserir mais e mais nela. Este pode ser um caminho perverso. A culpa gera paranoia, neuroses, depressão, desistência da vida. A beleza do “religare” se transforma em violência do sagrado. As religiões constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Todas elas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas não detêm o monopólio do espiritual. Ele é um dado antropológico, da dimensão do profundo. Ocorre que as religiões podem se auto finalizar e se autonomizar, articulando os poderes religiosos com outros poderes ideológicos e políticos.[2]

É muito comum, nos dias de hoje, verificamos sinais de aceitação, de resiliência, ao afirmar que tudo o que está acontecendo foi “Deus que quis”, mas, ao mesmo tempo, ressalta que não dá para entender completamente todo o acontecido. Parece uma mistura de revolta diante do trágico, mas ao mesmo tempo de medo, diante do que inexplicável. Eis mais um lado violento do sagrado.

Esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. Rebusca as longínquas terras da infância e, na potencialidade ali resguardada – no encantamento sem reservas, lá onde nos desvencilhamos do medo de estar entre o dizível e o indizível -, encontra modos para des-criar a obviedade existente. Conclama-nos a penetrar por frestas da subjetividade, da liberdade individual, conscientes de que no império do necessário e da impossibilidade não há sujeito, não há liberdade, tampouco criação.[3]          

Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência”.[4]

Segundo o filósofo italiano, Giorgio Agamben,[5] tornar algo sagrado era, no Direito Romano, um conceito que designava a fuga das coisas da esfera do direito humano. Ao buscar a origem do termo “religio”, nosso filósofo descobre que não deriva de “religare”, mas de “relegere”, que indica justamente o caminho oposto: o que de seve observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Dessa maneira, a religião não se opõe à incredulidade e à indiferença em relação ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e espontânea.

O Papa Francisco também ressalta a função e a primazia do “religare” em nossos tempos: “As religiões estão a serviço da paz e da fraternidade. Por isso, este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos.”

Adentrar o real, estar próximo às alteridades, propor caminhos de um novo humanismo… Eis as missões urgentes da espiritualidade contemporânea.


[1] BOFF, Reflexões de um velho teólogo e pensador, p. 124-125.

[2] BOFF, Reflexões de um velho teólogo e pensador, p. 171.

[3] BÊTA, J. L., Madras, p. 28.

[4] AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 9.

[5] AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 65.

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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.