A oração não tem somente uma finalidade de nos elevar até Deus. Ao fazer isso, restabelece nossa ligação originária com o Criador e revela igualmente quem somos como criaturas:
“Nesse diálogo que se origina entre corpo, pensamento e afetividade, e que nos percorre incessantemente por dentro, vamos clarificando o que realmente somos e o que queremos. Saber dizer “olá” ao novo e “adeus” ao que deixamos, sem ficar divididos e dilacerados entre o que rejeitamos e o que escolhemos, é forma de saúde e disponibilidade evangélica. Cada decisão tem o seu momento junto, a “hora” precisa que não devemos adiantar nem adiar. Saber perceber o “agora” de cada decisão, quando o dom de Deus aparece em nossa realidade, supõe amadurecer os processos até o instante preciso, sem acelerá-los pela ansiedade nem os adiar pelo medo”.
GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 104.
Muitas pessoas têm receio de abandonar-se nos colóquios ao Senhor, temendo aquilo que o Senhor poderá lhe pedir na oração, e que terá consequências “desagradáveis” para a acomodação com que elas vivem a sua vida espiritual. Para Inácio de Loyola, Deus é o “Deus sempre maior”, surpreendente, que nos chama para o “mais”, desinstala, acredita sempre nas nossas potencialidades…
Não é nada fácil resistir à ansiedade que atropela os processos sem pressa do Espírito. Qual o momento preciso para passar à decisão?
“As grandes decisões marcam a vida em sua orientação fundamental nos momentos de encruzilhada, mas é necessário estar sempre atentos para não chegar a um porto diferente do escolhido, pois na vida cotidiana estamos expostos a muitos ventos enviesados, ou a correntes submarinas que nos podem desviar de nossa rota enquanto dormimos. Nunca assumimos plenamente nossas decisões fundamentais com todo o nosso ser, sempre ficam dimensões escuras que não foram integradas à opção, e que em algum momento posterior ameaçam, distorcendo a eleição realizada”.
GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p.105.
Será provavelmente nos momentos dos colóquios onde experimentaremos no nosso coração os grandes, mas também os delicados apelos do Senhor, movendo o nosso coração, tocando os nossos afetos, sugerindo, animando, acompanhando-nos rumo a uma vida de maior amor e serviço. Enfrentando furacões, ventanias de todo tipo, iremos aos poucos percebendo a brisa suave onde Deus se faz sentir.
No confronto com o outro, descubro quem sou
Neles experimentamos que não estamos sós, nunca estivemos e nunca estaremos, porque somos criados em relação e numa relação de Amor. Descobrimos que os outros e, principalmente, o Outro que é Deus é que nos permitem descobrir quem somos nós.
Contudo, a experiência da relação nem sempre é vivenciada como sendo algo agradável e que me realiza como pessoa. É importante pois considerar diversas situações que se podem apresentar quando nos sentimos na presença de um outro:
- O outro pode se apresentar como um dom que me complementa, com sua beleza, bondade, inteligência, fortaleza. Mas todos somos limitados. Em alguma parte acabam nossas forças, nossa saúde ou nossas habilidades aprendidas. Frequentemente oramos a Deus para que nos tire os limites que se cravam na carne como espinhos. Alguns limites se superam, mas outros Deus nos ajuda a reconhecê-los, aceitá-los e a receber de outros o que necessitamos para viver e para cumprir a missão que ele nos confia. Em vez de eliminar o limite que aumenta minha suficiência, enviar-me-á ao outro que aumenta minha comunhão, como se referiu Moisés a seu irmão Aarão, que falava bem, quando se queixou de sua pouca facilidade de palavra para levar adiante sua missão (Ex 4, 14). “Procurar Aarão” humildemente é um desafio para nosso orgulho e nossa autossuficiência. Também é uma provocação me aproximar do outro com gratuidade, e não pelo que posso tirar dele.
- O outro pode ser uma diferença que desinstala meus julgamentos e minhas posturas vitais. Cada vez mais experimentamos hoje uma violenta polarização de opiniões, juízos, ideologias, onde o “diferente” é quase sinônimo de “inimigo” e, portanto, deve ser eliminado ou, ao menos, ignorado. O confronto com o outro sempre será uma oportunidade para rever minhas posturas e nos abrirmos a outros modos de sentir, ver, falar e viver.
- O outro pode ser uma pobreza que me tira de meu egoísmo. Sabemos como o contato com os pobres e descartados da sociedade nos impacta e exige uma resposta de vida. Na sua tremenda indigência, apela à nossa solidariedade e compaixão.
- O outro pode ser um Caim, uma agressão poderosa que ameaça mutilar minha pessoa ou destruir minha vida[1]. A trágica história dos dois irmãos paira sempre como uma ameaça real sobre nós quando temos que enfrentar o outro que está no nosso caminho. Conhecemos muito bem as resistências e bloqueios que experimentamos diante de conversas com pessoas desconhecidas. O mundo nos faz desconfiar de tudo e de todos, carregando de hostilidade e suspeita qualquer relacionamento humano.
Pois bem, quando nos pomos a rezar, com qual desses “outros” eu me deparo?
Podemos em um ou outro momento experimentar mais uma destas situações, e é importante ter consciência de como sentimos o outro, pois dependendo do modo como nós o sentimos, será a nossa resposta: não é o mesmo responder a um estranho desconhecido, a um parente, a um amigo íntimo ou a um inimigo mortal.
Quando vamos rezar, entram em ação as imagens que temos de Deus, e elas afetarão imensamente nossa relação com Ele. Estabelecerão o clima do encontro, amistoso ou hostil. Importa, pois, ajustar nossa lente para captar quem é Deus verdadeiramente. Quem vem em nosso socorro para esta tarefa é o Filho Amado, Jesus.
Deus se faz outro em Jesus
“Em Jesus, Deus se fez outro, próximo e misterioso, débil e forte, fascinante e marcado pelos limites, entregue a outros para que vivam em plenitude e necessitado de outros para poder existir e chegar à plenitude de sua própria identidade. Decide encarnar-se como Senhor da história, mas ao mesmo tempo pede permissão a Maria, adolescente e camponesa. É o amor sem medida, mas tem que ser acolhido e amado de maneira incondicional por uma mãe antes de existir, sem saber como será e de que forma orientará sua vida. Jesus não só é um dom do Pai, mas também um dom dos que o acolheram e cuidaram. Com ele começou uma nova etapa da história, mas ele se encarnou em toda a história que o precedeu, onde homens e mulheres amaram e lutaram para elaborar a cultura e a comunidade onde pôde formar-se e ser um homem que pôde dizer “nós”, como todo ser humano”.
GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 126-127.
Jesus nos revela o Pai, ou melhor, nos mostra o Amor infinito do Pai, sua Compaixão sem limites. Quando nos dirigimos a Deus nos colóquios, deixamo-nos invadir por uma presença amorosa de alguém que nos ama de tal forma que quer se fazer um de nós, alguém a quem podemos nos dirigir chamando-o de “Tu”.
“Em Jesus encontramos a Deus mesmo, que acolheu todos os que lhe saíram ao encontro, e aos que ele mesmo procurou pelos caminhos e praças onde estavam perdidos e paralisados. Jesus nos oferece a imagem de um Deus que não pôs no centro de sua vida a conservação de sua própria pessoa, a segurança e o prestígio social que podia adquirir facilmente graças a sua inigualável personalidade, mas a toda outra pessoa que encontrava em seu caminho, superando qualquer classificação discriminatória, paralisante ou excludente”.
GONZÁLEZ BUELTA, Benjamín. Orar em um mundo fragmentado, p. 128.
Em todo outro podemos encontrar o Outro
Deus nos salva fazendo-se outro. Não só em Jesus de Nazaré, ao qual nós podemos contemplar, amar e seguir. Continua salvando-nos, fazendo-se outro em toda pessoa que nos sai ao encontro. O encontro nos salva porque nos permite entrar na comunhão necessária que nos fortalece. Deus se faz outro, com letra minúscula, em Jesus de Nazaré e em toda pessoa, para que todos possamos nos aproximar dele, e para que em todo outro tratemos de descobri-lo e possamos encontrá-lo e amá-lo”[2]. Cada vez mais e de formas novas!
Sobre o autor:
Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 124-126.
[2][6] Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 128.