Que mundo queremos? Ensinamentos de Francisco.

Estamos vivenciando um momento crucial no Ocidente. Apesar de tentativas totalitárias e ditatoriais do século XX, a democracia prevaleceu. Nesse período, diversos direitos e avanços sociais foram notados (direitos fundamentais, como a liberdade). No entanto, diante de um mundo cada vez mais complexo, seja pelas trocas incessantes de informações, pelas desinformações e pelas conexões, onde as emoções e os afetos definem ações e pensamentos, há uma sensação de que os problemas não estão resolvidos pelas vias do diálogo e do jogo democrático e que, mesmo diante de atos que suprimem a liberdade, seria válido um caminho mais “duro”, repressor e violento. Nada mais equivocado!

O fato é que, toda vez que a humanidade busca soluções fáceis para resolver problemas complexos, cria-se um falso, provisório e catastrófico caminho (lembremos do nazismo). Com a democracia criamos ambientes favoráveis ao desenvolvimento, à inclusão, à diversidade, à justiça. A partir desses valores, podemos construir vias mais acessíveis e promissoras de inovação, tanto em seus vieses científicos, quanto tecnológicos e culturais. Para criar é preciso liberdade e equidade, justa oportunidade.

Qual mundo queremos? Até a primeira metade do século XX, o mundo pensava que poderia resolver todos os seus problemas pelo caminho do progresso. Era, na verdade, um mito do progresso. Acreditava-se que, por exemplo, poderiam ser ignorados os recursos naturais e que eles seriam eternos. A natureza existiria para nós e estaria sempre ao nosso dispor. Poderíamos ter uma atitude predatória! Hoje, devido à racionalidade e ao avanço democrático da segunda metade do século XX, chegamos ao pensamento ecológico e à economia verde. O Brasil pode voltar a ser uma referência nesse quesito e ainda atrair investimentos gigantescos em “green economy” (agora que os EUA estão nesse bom caminho). Parceiros comerciais como EUA e União Europeia não devem ser negligenciados. Em outro contexto europeu, normalmente de inovação, qualidade e vanguarda, na Suíça, por exemplo, até 2030 todos os carros serão elétricos e a matriz energética será majoritariamente limpa. Além de uma melhor qualidade de vida para a população, uma economia verde permite redução de custos e, com isso, maior possibilidade de investimento de maneira equilibrada.

O Papa Francisco, desde a Encíclica de 2015, Laudato Sì, enfatiza a importância de uma virada ecológica contemporânea, em direção a uma Ecologia Integral. Em vídeo de lançamento da Plataforma de Ação Laudato Sì, em maio de 2021, o pontífice afirmou:

“Que mundo queremos deixar às nossas crianças e aos nossos jovens? O nosso egoísmo, a nossa indiferença e os nossos estilos irresponsáveis estão ameaçando o futuro dos nossos jovens! Assim, renovo o meu apelo: cuidemos da nossa mãe Terra, superemos a tentação do egoísmo que nos faz predadores de recursos, cultivemos o respeito pelos dons da Terra e da criação, inauguremos um estilo de vida e uma sociedade finalmente ecossustentável: temos a oportunidade de preparar um amanhã melhor para todos. Das mãos de Deus recebemos um jardim; aos nossos filhos não podemos deixar um deserto” (FRANCISCO, 2021).

“Dividir o pão”, aumentar o acesso de classes desfavorecidas foi o grande segredo da criação de sociedade justa e desenvolvida pelos países europeus hoje avançados. Sobre esse aspecto, nos explica o sociólogo e doutor pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), Jessé Souza: “Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia” (Souza, Jesse. A Elite do atraso, p. 151).

Ora, esse ódio e desprezo pelas classes populares, negros e pessoas das periferias é presenciado no cotidiano, por vezes de forma sutil (como em falas “eles querem tomar nosso lugar com as cotas”) ou mais explicitamente como foi o episódio em que o humorista Eddy Jr sofreu nas últimas semanas. Qual seu crime? Nenhum, apenas o ódio foi alimentado pelo fato de ser um homem negro, proveniente da periferia, que estava agora em um condomínio de classe média alta, fazendo sucesso nas mídias sociais.

Todo processo de escravidão impõe humilhação e desconstrução de humanidade do escravo. Como estaria nesse cenário sua autoestima? Muitos não teriam mesmo mais vontade de viver. O ex-escravo é jogado dentro de uma ordem social competitiva e para qual ele não havia sido preparado. Esse processo é verificado sobretudo em São Paulo, com a vinda dos imigrantes. Ora, em décadas de negligência e ausência de estímulo escolar, como podemos dizer que existe justiça em nossa sociedade? E depois queremos resolver o problema da criminalidade reduzindo a maioridade penal. Nada mais hipócrita!

Precisamos construir uma sociedade mais justa e igualitária, somente assim poderemos resolver nossos problemas. Não podemos esquecer nossa história horrenda e nosso passado macabro. Sim, existiu escravidão e temos as suas consequências aí. É preciso analisar a consequência de nossas ideias. É urgente e central! Nunca encontrei um alemão que dissesse, por exemplo, que o nazismo foi um fato irrelevante na história de seu país.

Mais uma vez, Papa Francisco afirma, em sua Encíclica Fratelli Tutti, a importância do exercício da memória como caminho de libertação:

“Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos” (FT, 13).

Cada vez mais o mundo estará afetado pela tecnologia. O cenário que vemos hoje de ódio, violência, intolerância, por um lado, e ansiedade, depressão e suicídio, por outro, será ainda mais intenso, infelizmente. É responsável, considerando isso, armar a população? Não tenho dúvidas, como psicanalista, que teríamos um aumento do número de suicídios, pois tirar a vida não é fácil, é trágico, mas quando a pessoa encontra o meio e a ideação, é mais provável.

Queremos um mundo onde as pessoas que pensam e vivem de forma diferente de nós em sua sexualidade, condição financeira, gênero sejam vítimas de preconceitos que produzem violência (inclusive física) por causa de nossas ideias homofóbicas, racistas, machistas?

A verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade. Hoje, porém, tudo se pode produzir, dissimular, modificar. Isto faz com que o encontro direto com as limitações da realidade se torne insuportável. Em consequência, implementa-se um mecanismo de «seleção», criando-se o hábito de separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto, as coisas atraentes das desagradáveis. A mesma lógica preside à escolha das pessoas com quem se decide partilhar o mundo. Assim, as pessoas ou situações que feriam a nossa sensibilidade ou nos causavam aversão, hoje são simplesmente eliminadas nas redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola do mundo em que vivemos (FT, 47).

É católico leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.