A Igreja Católica é vista como a instituição que mais influenciou e direcionou os rumos civilizacionais da cultura ocidental. A partir do século IV, depois que o catolicismo se tornou a religião oficial do Estado, com Teodósio, ela chegou a exercer, inclusive, o poder decisivo predominante nas escolhas das pessoas.
Depois da Reforma Protestante, no século XVI, houve muitas rupturas e conflitos religiosos, movidos por interesses religiosos, econômicos, políticos, com o surgimento do Estado Moderno. O Iluminismo potencializou a consciência da autonomia, o primado da razão e a supremacia do sujeito, como medida de todas as coisas. O que, de certa forma, era unificado pela Igreja do século IV até o XVI, com a Revolução Industrial, no século XIX, foi definitivamente subdividido e fragmentado em novas formas de poder, a saber: a autonomia da razão, a força do poder político, o poder de convencimento das ciências, o poder da técnica e, inclusive, o poder de outras possibilidades de ligação com o sagrado. Com isso, a Igreja, sendo uma força entre muitas outras, já não podia exercer da mesma forma seu poder determinante e fazer as opções pelos outros. Pouco a pouco, vai tomando consciência de que ela mesma precisa fazer as suas próprias opções.
Um passo decisivo para a sua nova forma de se relacionar e de estar no mundo moderno, foi dado no Concílio Vaticano II (1962-1965): discernir os sinais dos tempos e fazer um profundo “aggiornamento“, na expressão consagrada pelo papa João XXIII na convocatória do Concílio. Ou seja, era preciso a Igreja abrir suas portas e janelas para o mundo, assumindo postura de diálogo. Era urgente assumir um processo de atualização e de adaptação ao contexto contemporâneo, inserindo-se na vida e na história das pessoas e da sociedade como um todo, nas variadas expressões culturais.
A Igreja, que no Concílio expressou sua autocompreensão enquanto povo de Deus que caminha e sacramento da salvação para o mundo, percebeu que para bem exercer a sua missão era preciso que assumisse postura de escuta e acolhida das dores e alegrias de todos os seres humanos. Trata-se de uma pretensão que em nada fere a sua identidade cristológica. Muito pelo contrário, a Igreja é chamada pelo testemunho de vida nova a irradiar para o mundo, qual prisma, a luz do Amor salvífico de Deus, tal como foi captado na pessoa de Jesus de Nazaré, Filho de Deus. Jesus é acolhido pela Igreja como o sentido e a resposta para os questionamentos mais profundos da existência humana. Ele é a revelação de Deus, que é Amor. Segundo esta hermenêutica do Concílio, a Igreja precisa fazer as suas opções, tendo em vista a precípua missão de evangelizar. A defesa da liberdade religiosa funda-se na ordem da dignidade da pessoa humana e nenhuma crença deve ser imposta por qualquer “pedagogia da ameaça” ou “dialética do medo”.
O papa Francisco vem insistindo na retomada do horizonte e do espírito do Concílio. Vem recuperando a dinâmica de uma Igreja sempre reformando (Igreja em saída, hospital de campanha, de portas abertas, casa da misericórdia), um Igreja com estrutura sinodal, participativa e corresponsável (toda missionária). A Igreja se sabe uma realidade histórica sempre peregrina. Desse modo, a Igreja é chamada a perceber a sua corresponsabilidade na missão de evangelizar. Assim, sem qualquer postura autorreferencial, a ela deve acolher, promover e defender a dignidade de cada membro da humanidade e da justiça social, desde os mais pobres e excluídos, a dialogar com as culturas, as tradições religiosas, as ciências, a economia, a política, as famílias, as pessoas. Desde a sua intrínseca dimensão escatológica (destinada a plenitude junto da comunhão com Deus), a Igreja pode ampliar sua capacidade crítica e autocrítica, aprofundar seu processo de aperfeiçoamento humano e o grau de sua conversão a Deus.
A Igreja não pode temer o seu peregrinar, nem as suas contínuas reformas, pois, tem consciência de que tem apenas um único absoluto e verdadeiro centro, um único princípio e fim, alfa e ômega, em de todas as dimensões. E não é o papa, não são os bispos, não são os padres, não são os religiosos e religiosas, não são os leigos e leigas, não sãos suas estruturas, não são seus sacramentos e não é sua doutrina. Trata-se do próprio Jesus Cristo, que enviado por causa do projeto salvífico do Pai, ressuscitado pela força do Espírito Santo, nela habita. Jesus Cristo precisa ser sempre a opção fundamental da Igreja! E, em Jesus, o Reino de Deus, que Ele veio anunciar-testemunhar com sua própria vida. Essa Igreja, que somos nós povo de Deus, somente consegue fazer esta opção fundamental quando tem os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (Fl 2,5).
O papa Francisco mencionou, em entrevista concedida ao jornal espanhol, El Pais, em 23/01/2017, que a única revolução que deseja para a Igreja é aquela provocada pelo Evangelho. A opção da Igreja é pelo Evangelho do Reino, Evangelho da Fraternidade, Evangelho da Justiça. Os filhos e filhas da Igreja devem ter muita clareza desta orientação fundamental da vida cristã. O Evangelho não é uma ideologia, mas uma pessoa: Jesus Cristo. O Pontífice invoca, nesse sentido, a importância dos santos. Eles compreenderam bem o que significa o Evangelho. A partir desta escolha fundamental, tiveram a força para entender tudo o mais e viveram, em seu tempo, verdadeiramente como cristãos, seguidores de Jesus Cristo. Na Igreja, infelizmente, há muita gente que é muita coisa, menos cristã. Por isso têm muita dificuldade de entender e acolher a missão a que somos chamados no contexto atual. Há um discernimento cristão que precisamos assumir:
- Quais tem sido as nossas escolhas pessoais, familiares e eclesiais?
- Onde está o nosso coração: em Deus, no Evangelho e no Reino? Ou na busca a qualquer preço pelo sucesso, pela acumulação de bens e pelo poder sociopolítico?
- A Igreja tem sido compreendida por nós como um lugar de amar e servir, de assumir a missão de anunciar e testemunhar a vida nova em Jesus Cristo Ou como lugar de poder, de prosperidade econômica, de carreirismo e de mundanismo espiritual?
- Somos facilitadores da graça de Deus, pelo o anúncio-testemunho do amor de Deus, que nos liberta, conforta e fortalece para uma vida digna de filhos e filhas de Deus já aqui e esperançada na plenitude futura? Ou somos dificultares da experiência da misericórdia de Deus, colocando pesados fardos de uma moralista e infantilizadora religião do dever sobre os ombros já cansados dos pecadores, cujos pés já vacilam na frágil esperança em Deus?
A Igreja só será realmente, sacramento de Salvação, quando nós, os seus filhos e filhas, deixando-se guiar pelo Espírito Santo, fizermos, de fato, a opção fundamental pela conversão a Deus, em Jesus Cristo, e pela fé-compromisso com o Evangelho do Reino. Sabendo que a fé cristã e a opção fundamental são concretizadas e alimentadas pelo cultivo da intimidade com Palavra de Deus e a Eucaristia, numa vida em comunidade de fé e partilha de vida, comprometida com a transformação da sociedade pelos valores do Evangelho. Assim o seja!
Sobre o autor:
Pe. Matias Soares é pároco da paróquia de Santo Afonso/Natal-RN e é colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.
Excelente reflexão. A fidelidade ao Reino, anunciado por Jesus, deve ser a orientação máxima da Igreja. E a busca do Bem Comum, na forma como foi enunciado no Vaticano II, é o caminho a ser percorrido.