Estive em Ribeirão Cascalheiras-MT para participar da Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, nos dias 16 e 17 de julho de 2016. Fui no ônibus das CEB’S da Arquidiocese de São Paulo. Uma galera divertidíssima. Foram 30 horas para ir e 30 horas para voltar, fomos tocando violão e cantando aquelas que ninguém toca e canta mais…mas… cheguei inteiro.
Pessoas de todos os cantos do Brasil, da América Latina e Caribe, do outro lado do Atlântico, estavam chegando à São Félix do Araguaia, para participarem pela primeira vez da grande Romaria dos Mártires. Outros já estavam repetindo a dose para retomar as forças. Já tinha gente hospedada próximo ao local desde a sexta-feira; outras pessoas já haviam se deslocado para o local a quase um mês para ajudarem a preparar, a organizar tudo para celebrarem juntos a bendita Romaria. E Deus viu que tudo era bom.
Eram 8 horas da manhã quando o ônibus parou na praça da Igreja São João Batista, onde todos os romeiros iriam chegar e se reunir.
Foi muito legal rever amigos e amigas.
Depois de um café com pão e margarina, as pessoas foram enviadas para os hotéis, casas de família e escolas onde ficariam hospedadas. Foram descansar da viagem, outras visitaram o Santuário dos Mártires, outros, ficaram por ali, conversando e matando a saudade.
Foram dias de oração, de luta e troca de experiências. Que não caberiam neste breve relato que faço, e que tento ser muito fiel. Meus olhos viram, meu coração sentiu…muitas coisas…peço a Deus que me ajude enquanto escrevo algumas palavras daqueles dias naquela Terra Santa. Como explicar algo inexplicável?
Meus pés ficaram cobertos com a terra vermelha.
Em minha cabeça, as palavras de Deus para o profeta Moisés: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa”.
Conversei com muita gente que nestes 40 anos viveram uma espiritualidade pé no chão, que resistiram a muitas tempestades. Aqueles que vinham da grande tribulação. Em tempos primaveris de Francisco, muita coisa precisa mudar para a Igreja avançar para águas mais profundas.
Abracei muitas pessoas, e fui abraçado. Me emocionei com o carinho de tantas pessoas.
Abracei o índio Guarani Kaiowá, que traz em seu peito uma “bala” alojada do lado do seu coração, e que passa imensas necessidades com sua família…que não consegue andar direito, que não pode fazer operação para tirar a “bala”, que está ameaçado de morte por defender o seu povo, e que me ensinou que o importante da vida é lutar por ela, para viver com dignidade.
Conversei com os Xavantes, ouvi o clamor que brota do coração deste povo guerreiro. Me emocionei novamente pois reencontrei um dos índios que me recebeu na aldeia deles quando ali estive em 2003.
Revi os amigos e irmãos de caminhada Zeca Terra e o Chico Machado…profetas da esperança.
Conheci jovens de todo o Brasil e também do exterior que foram visitar a barraquinha da Identidade Pejoteira que vendia seus produtos e também o meu mais novo livro. Que satisfação abraçar, autografar e tirar fotos com a galera ali presente. Que lindo ouvir de suas bocas: nossa…que camisas bonitas…
Depois participei da roda de conversa e também de um momento da Pastoral da Juventude onde pude rever muita gente querida…os abraços foram inúmeros.
Nem parecia que já havia se passado tanto tempo. Amizade sincera supera a distância e o silêncio. Fui apresentado a muita gente nova, que estavam ali pela primeira vez, cheios de alegrias e lágrimas de felicidade nos olhos, pareciam ter descoberto um tesouro escondido.
À noite ao redor da fogueira e com as velas acesas, vi, emocionado, meu querido amigo e irmão Pedro Casaldáliga, em sua cadeira de rodas se aproximar para a oração.
Não tirei nenhuma foto, pois já o tinha visto na casa paroquial…nada falamos um para o outro…apenas nos olhamos…e segurei nas suas mãos…tudo o que precisava ser dito…foi dito e guardado no coração.
Em caminhada cantei com Zé Vicente e outros camaradas que animavam a romaria: “Vidas pela Vida…Vidas pelo Reino…Todas as nossas vidas…”.
Dizem que tinha quase 15 mil pessoas…em meu coração eu sentia muito mais. E como cantaram bonitas aquelas vozes todas. Em sintonia com a causa dos pobres e do Reino.
Caminhamos pela estrada que leva ao Santuário dos Mártires, cruzes estavam no caminho, nos lembrando que com o sangue dos mártires não podemos brincar…chorei ao rever a capelinha da cruz do padre mártir João Bosco. E Deus viu que tudo era muito bom.
No domingo, celebramos juntos a vida dos Profetas do Reino. Me lembrei de pessoas queridas que estão passando por momentos difíceis…essa celebração foi para vocês. O Pedro estava lá…sufocado pelos curiosos e fãs que não paravam de tirar fotos, apesar dos apelos do padre Mirim. Brasileiro sempre quer levar para casa uma lembrança. Quando ele passou por mim, me deu um tchau, me viu, sorriu, isso valeu…não precisei tirar foto nenhuma.
Marcante e em conexão com tudo que estava sendo vivido ali e que me recordo com imensa emoção a frase de D. Sebastião Gameleira – bispo anglicano: “Adorar a Deus fora da luta do povo, da defesa da vida do povo, é idolatria”.
As causas de Pedro Casaldáliga são maiores do que ele. Tenho muito orgulho de ser seu amigo e irmão de caminhada. Infelizmente há pessoas, que se dizem católicas, que não conhecem a sua vocação, não conhecem a sua vida, não conhecem as opções que Pedro assumiu e as viveu até as últimas consequências…são as mesmas que o próprio Jesus de Nazaré assumiu.
E TODO O RESTO ACONTECE…
Passados alguns dias da Romaria e olhando as fotos que tiraram de D. Pedro Casaldáliga, e que postam nas redes sociais, fiquei tocado, como estou agora, enquanto escrevo estas rápidas palavras, por causa de sua fragilidade teimosa e de sua estética evangélica (estar no meio daquele povo todo); porém, como já disse antes, eu não tirei nenhuma com ele, nem dele, mas guardo vivo na memória e no meu coração (que batia mais acelerado do que o normal) e para o resto da minha vida, o nosso encontro na casa paroquial, ele me reconheceu; em seu olhar me chamou pelo apelido carinhoso que me deu quando eu era ainda jovem militante da PJ: Divino Impaciente; Pedro é assim, quando ama alguém ele apelida. Em nosso aperto de mão, não falamos nada, apenas nos olhamos e tudo foi dito, tudo foi conversado, colegialmente combinado.
Há muito a se fazer pela defesa da vida!
Naquele aperto e naquele olhar amoroso de avô, pai, irmão, amigo e companheiro de caminhada, ouvi em meu coração ele dizer: “Ser amável com todos é mais fácil, mais cômodo, que ser honestamente profético com todos. Amar é também incomodar”. Ninguém ouviu, só eu e ele.
Me levantei, sorri e me retirei, com o coração cheio de nomes e os olhos cheios de lágrimas de alegria, teimosia e fiel esperança.
Ser Profeta do Reino, ser Poeta da Gente é gritar com os olhos…e todo o resto acontece…
E sozinho comecei a cantar um antigo poema que Pedro compôs e frei Mingos musicou:
“Somos um povo de gente, somos o povo de Deus. Queremos terra na terra, já temos terra nos céus…
Queremos plantar a roça onde plantamos o amor. Lavrador, a terra é nossa, de um afã e um só Senhor…
Retirantes, chega o dia de assentar o pé no chão: com fé em Deus e teimosia e na força da união…
Temos braços e esperança, somos gente, hoje, aqui! Se a pobreza é nossa herança, na justiça está o porvir…
Conhecemos a verdade e sabemos ver e amar. E exigimos liberdade pra viver e melhorar…
Conhecemos a verdade e o direito de ser mais. E exigimos igualdade, terra e casa, mesa e paz…
Lavradores, vida nova! Gente unida em mutirão! Gente unida a toda prova, de uma fé um coração…
Essas matas pra lavoura, água clara, puro o ar. Mão na enxada e pé na espora e um bom céu para esperar…”.
Retornei para São Paulo com a certeza que temos muito o que fazer pelas causas do Reino da Vida. Todos que ali estiveram, acredito, vivem esta mesma certeza e sabem que sem a fiel teimosia e a fiel esperança não vamos muito longe, juntos, somando forças vencemos o medo. “O perigo é ter medo do medo”.
Em meu coração não esqueci de nenhum nome que amo.
Mestre em Teologia pela PUC-SP
Agente de Pastoral Leigo
Colaborador do Observatório da Evangelização