Pistas do papa Francisco para uma espiritualidade dos seminaristas e dos presbíteros

O que era para ser um simples encontro com os seminaristas de um diocese da Itália tornou-se um verdadeiro tempo de kairos, quando o papa Francisco nos oferece uma oportunidade para refletirmos sobre a espiritualidade dos atuais e futuros presbíteros, bem como dos próprios bispos e formadores. Todos são convidados a pensar criticamente sua missão e a relação que estabelecem com o bispo, com os demais membros do presbitério e, sobretudo, com o povo de Deus.

Vale a pena conferir:

Caminho, escuta, discernimento e missão

Na audiência com seminaristas italianos, papa Francisco, após ter entregue aos presentes o discurso preparado para a ocasião, se dirigiu de improviso aos participantes do encontro. A sala de imprensa da Santa Sé publicou também discurso do Papa. Veja a tradução feita por Moisés Sbardelotto do IHU: 

Caros irmãos

Dou-lhes as boas-vindas e lhes agradeço por esta visita. Agradeço em particular ao reitor de vocês, também pelas suas palavras de apresentação.

No pouco tempo deste nosso encontro, gostaria de lhes dar algumas ideias de reflexão pessoal e comunitária, e tomo-as do recente Sínodo dos jovens.

Acima de tudo, o ícone bíblico: o Evangelho dos discípulos de Emaús. Gostaria de lhes entregar novamente esse ícone, porque guiou todo o trabalho do último Sínodo e pode continuar inspirando o caminho de vocês.

I

E justamente “CAMINHO” é a primeira palavra-chaveJesus Ressuscitado nos encontra no caminho, que, ao mesmo tempo, é a estrada, isto é, a realidade em que cada um de nós é chamado a viver, e é o percurso interior, a vida da fé e da esperança, que conhece momentos de luz e momentos de escuridão. Aqui, no caminho, o Senhor nos encontra, nos escuta e nos fala.

II

Acima de tudo, ele nos escuta. Essa é a segunda palavra-chave: “ESCUTAR”. O nosso Deus é Palavra e, ao mesmo tempo, é silêncio que escuta. Jesus é a Palavra que se fez escuta, acolhida da nossa condição humana. Quando aparece ao lado dos dois discípulos, ele caminha com eles escutando-os e também estimulando-os a tirar para fora aquilo que têm dentro, a sua esperança e a sua decepção. Isso, na sua vida de seminário, significa que, em primeiro lugar, está o diálogo com o Senhor feito de escuta recíproca: Ele escuta a mim, e eu escuto a Ele. Nada de ficção. Nada de máscara.

Essa escuta do coração na oração nos educa para sermos pessoas capazes de escutar os outros, para nos tornarmos, se Deus quiser, padres que oferecem o serviço da escuta – e como há a necessidade disso! –; e nos educa para sermos cada vez mais Igreja em escuta, comunidade que sabe escutar. Vocês, agora, vivem isso especialmente em contato com os jovens, encontrando-os, escutando-os, convidando-os a se expressar… Mas isso vale para toda a vida pastoral: como Jesus, a Igreja é enviada ao mundo para escutar o grito da humanidade, que muitas vezes é um grito silencioso, às vezes reprimido, sufocado.

III

Caminho, escuta. A terceira palavra é DISCERNIMENTO. O seminário é lugar e tempo de discernimento. E isso requer acompanhamento, como Jesus faz com os dois discípulos e com todos os seus discípulos, particularmente os Doze. Ele os acompanha com paciência e com sabedoria, educa-os a segui-lo na verdade, desmascarando as falsas expectativas que eles trazem no coração. Com respeito e com decisão, como um bom amigo e também um bom médico, que às vezes deve usar o bisturi. Muitos problemas que se manifestam na vida de um padre se devem a uma falta de discernimento nos anos do seminário. Nem todos e nem sempre, mas muitos.

É normal, o mesmo vale para o matrimônio: certas coisas não abordadas antes podem se tornar problemas depois. Jesus não finge com os dois de Emaús, não é evasivo, não contorna o problema: chama-os de “tolos e lentos de coração” (Lc 24, 25), porque não acreditam nos profetas. E abre as suas mentes para as Escrituras e depois, à mesa, abre os seus olhos para a sua Presença nova, no Sinal do pão partido.

O mistério da vocação e do discernimento é uma obra-prima do Espírito Santo, que requer a colaboração do jovem chamado e do adulto que o acompanha.

IV

A quarta palavra, sabemo-lo, é MISSÃO. E o Sínodo dos jovens valorizou muito a dimensão sinodal da missão: ir juntos ao encontro dos outros. Os dois de Emaús retornam juntos para Jerusalém e, acima de tudo, unem-se à comunidade apostólica que, pelo poder do Espírito, torna-se toda missionária. Essa ênfase é importante, porque a tentação de ser bons missionários individuais está sempre à espreita. Já como seminaristas pode-se cair nessa tentação: sentir-se bons por serem brilhantes na pregação, ou na organização de eventos, ou nas belas cerimônias, e assim por diante. Muito frequentemente, a nossa abordagem foi individual, mais do que colegial, fraterna. E assim o presbitério e a pastoral diocesana talvez apresentem esplêndidas individualidades, mas pouco testemunho de comunhão, de colegialidade. Graças a Deus, estamos crescendo nisso, também forçados pela escassez de clero, mas a comunhão não se faz por constrangimento, é preciso crer nela e ser dóceis ao Espírito.

Caros irmãos, eis as ideias que deixo a vocês, todas contidas no ícone evangélico dos discípulos de Emaús: caminhar; escutar; discernir; ir juntos. Peço ao Senhor e à Virgem Maria que os acompanhem, abençoo-os e rezo por vocês. E vocês, por favor, lembrem-se de rezar por mim.

(Os grifos são nossos)

Leia, a seguir, o discurso de improviso que o papa Francisco proferiu para os seminaristas:

A espiritualidade do clero diocesano e a tríplice relação do padre com o bispo, com o presbitério e  com o povo de Deus

Há um discurso preparado, com o ícone dos discípulos de Emaús, que vocês podem ler em casa, tranquilos, e meditar em paz. Eu o entrego ao reitor. Vou me sentir mais à vontade falando um pouco espontaneamente.

Naquele discurso, a última palavra era a “missão”. Gostei daquilo que o reitor disse sobre o horizonte da Albânia. Porque a missão, é verdade, é algo que o Espírito nos impulsiona a sair, sair, sempre sair. Mas, se não há o horizonte apostólico, existe o perigo de errar e sair não para levar uma mensagem, mas para “passear”, isto é, sair mal. Em vez de fazer um caminho de força, sair de si mesmos, é fazer um labirinto, onde nunca se consegue encontrar uma estrada, ou a errar de estrada!

“Como posso ter certeza de que a minha saída apostólica é aquela que o Senhor quer, aquela que Deus quer de mim, seja na formação, seja depois?” Tem o bispo! O bispo é aquele que, em nome de Deus, diz: “Esta é a estrada”. Você pode ir ao encontro do bispo e dizer: “Eu sinto isto”, e ele vai discernir se é isso ou não. Mas, no fim das contas, quem dá a missão é o bispo.

Por que eu digo isso? Não se pode viver o sacerdócio sem uma missão. O bispo não dá apenas um encargo: “Ocupem-se desta paróquia”, como o chefe de um banco dá encargos aos empregados. Não, o bispo dá uma missão: “Santifica aquelas pessoas, leva Cristo àquelas pessoas”. É outro nível.

Por isso, é importante o diálogo com o bispo: era aqui que eu queria chegar, ao diálogo com o bispo.

O bispo deve conhecê-los. Assim vocês são: cada um tem a própria personalidade, o próprio modo de sentir, o próprio modo de pensar, as próprias virtudes, os próprios defeitos… O bispo é pai: é pai que ajuda a crescer, é pai que prepara para a missão. E, quanto mais o bispo conhece o padre, menor será o perigo de errar na missão que ele dará.

Não se pode ser um bom padre sem um diálogo filial com o bispo. Isso é algo inegociável, como alguns gostam de dizer. “Não, eu sou um empregado da Igreja.” Você errou. Aqui tem um bispo, não tem uma assembleia em que se negocia o posto. Tem um pai que faz a unidade: foi assim que Jesus quis as coisas. Um pai que faz a unidade.

É bonito quando Paulo escreve a Tito, que ele deixou em Creta para “organizar” as coisas. E diz as virtudes dos presbíteros, do bispo e dos leigos, também dos diáconos. Mas deixa o bispo para organizar: organizar no Espírito, que não equivale a organizar no organograma. A Igreja não é um organograma. É verdade que, às vezes, usamos um organograma para sermos mais funcionais, mas a Igreja vai além do organograma, é outra coisa: é a vida, a vida “organizada” no Espírito Santo.

E quem está no lugar do pai? O bispo. Ele não é o patrão da empresa, o bispo, não. Não é o patrão. Ele não é quem manda: “Aqui mando eu”, alguns obedecem, outros fingem obedecer, e outros não fazem nada… Não, o bispo é o pai, é fecundo, é quem gera a missão. Essa palavra, missão, que eu quis tomar, é carregada, carregada da vontade de Jesus, é carregada do Espírito Santo.

Por isso, eu recomendo, desde o seminário, aprendam a ver no bispo o pai que foi colocado lá para ajudá-los a crescer, para seguir em frente e para acompanhá-los nos momentos do apostolado de vocês: nos momentos bonitos, nos momentos feios, mas acompanhá-los sempre; nos momentos de sucesso, nos momentos das derrotas que vocês sempre terão na vida, todos… Essa é uma coisa muito, muito importante.

Outra coisa, a do barro do oleiro. Gostei de tomar Jeremias. Ele diz: quando o vaso não está bom, o oleiro o refaz. Enquanto está se fazendo o vaso e há algo que não funciona, há tempo para retomar tudo e recomeçar. Mas uma vez cozido…

Por favor, deixem-se formar. Não são caprichos aquilo que os formadores pedem. Se vocês não concordam, falem a respeito. Mas sejam homens, não crianças. Homens, corajosos, e digam ao reitor: “Eu não concordo com isto, não o entendo”. Isso é importante, dizer o que você sente.

Assim, pode-se formar a sua personalidade, para ser verdadeiramente um vaso cheio de graça. Mas, se você está calado e não dialoga, não diz as suas dificuldades, não conta as suas ansiedades apostólicas e tudo o que quiser, um homem calado, uma vez “cozido”, não pode ser mudado. E toda a vida é assim. É verdade que, às vezes, não é agradável que o oleiro intervenha de modo decisivo, mas é pelo bem de vocês. Deixem-se formar, deixem-se formar. Antes do “cozimento”, porque, assim, vocês serão bons.

E, depois, outras duas coisas. Qual é a espiritualidade do clero diocesano? Como dizia aquele padre aos religiosos: “Eu tenho a espiritualidade da congregação religiosa que São Pedro fundou”. A espiritualidade do clero diocesano, qual é? É a diocesanidade.

A diocesanidade tem três direcionamentos, três relações. A primeira é a relação com o bispo, mas eu já falei bastante sobre isso. A primeira relação: não se pode ser um bom padre diocesano sem a relação com o bispo.

Segundo: a relação no presbitério. Amizade entre vocês. É verdade que não se pode ser amigo íntimo de todos, porque não somos iguais, mas bons irmãos, sim, que se querem bem. E qual é o sinal de que, em um presbitério, há irmandade, há fraternidade? Qual é o sinal? Quando não há fofocas. A fofoca, a bisbilhotice é a peste do presbitério. Se você tem algo contra ele, diga-o na cara. Diga-o de homem para homem. Mas não falem pelas costas: isso não é coisa de homem! Eu não digo de homem espiritual, não, não é de homem, simplesmente.

Quando não há bisbilhotice em um presbitério, quando essa porta está fechada, o que acontece? Bem, tem um pouco de barulho, nas reuniões se dizem as coisas na cara, “eu não concordo!”, se levanta a voz um pouco… Mas como irmãos! Em casa, nós, irmãos, brigávamos assim. Mas na verdade.

E, depois, cuidar dos irmãos, querer-se bem. “Sim, Padre, mas o senhor sabe, aquele lá não gosta de mim…” Mas eu também tenho muitos que não gostam de mim, e eu não gosto de algum outro, isso é uma coisa natural da vida, mas o nível da nossa consagração nos leva a outra coisa, a sermos harmônicos, em harmonia. Essa é uma graça que vocês devem pedir ao Espírito Santo. 

Aquela frase de São Basílio – que alguns dizem que não era de São Basílio – no Tratado sobre o Espírito Santo: “Ipse harmonia est”, Ele é a harmonia. Parece um pouco estranho, o Espírito Santo, porque, com os carismas – porque todos vocês são diferentes –, ele faz, digamos assim, como que uma desordem: todos diferentes. Mas depois ele tem o poder de fazer daquela desordem uma ordem mais rica, com muitos carismas diferentes que não anulam a personalidade de cada um. O Espírito Santo é aquele que faz a unidade: a unidade no presbitério.

A relação com o bispo, a relação entre vocês. Sinal negativo: a fofoca. Nada de fofoca. Sinal positivo: dizer-se as coisas claramente, discutir, até mesmo se irritar, mas isso é saudável, isso é coisa de homens. A fofoca é de covardes.

A relação com o bispo, a relação entre vocês, e terceiro: a relação com o povo de Deus. Nós somos chamados pelo Senhor para servir ao Senhor no povo de Deus. Ou, melhor, fomos tirados do povo de Deus! Isso ajuda muito! A memória, aquela de Amós, quando diz: “Tu és profeta…”. Eu? Qual profeta? Eu fui tirado de trás do rebanho, era pastor…

Cada um de nós foi tirado do povo de Deus, foi escolhido, e não devemos esquecer de onde viemos. Porque, muitas vezes, quando esquecemos isso, caímos no clericalismo e esquecemos o povo do qual viemos. Por favor, não se esqueçam da mãe, do pai, da avó, do avô, do vilarejo, da pobreza, das dificuldades das famílias: não se esqueçam deles! O Senhor tirou vocês de lá, do povo de Deus. Porque, com isso, com essa memória, vocês saberão falar ao povo de Deus, como servir ao povo de Deus. O sacerdote que vem do povo e não se esquece de que foi tirado do povo, da comunidade cristã, ao serviço do povo.

“Mas não, eu me esqueci, agora me sinto um pouco superior a todos…” O clericalismo, caríssimos, é a nossa perversão mais feia. O Senhor os quer pastores, pastores de povo, não clérigos de Estado.

Essa é a espiritualidade [do padre diocesano]: a relação com o bispo, a relação entre vocês e o contato, a relação com o povo de Deus na memória – de onde eu venho – e no serviço – para onde vou. E como se faz para crescer nisso? Com a vida espiritual.

Vocês têm um pai espiritual: abram o coração ao pai espiritual. E ele lhes ensinará como rezar, a oração; como amar Nossa Senhora…. Não se esqueçam disso, porque Ela está sempre perto da vocação de cada um de vocês. A conversa com o pai espiritual. Que não é um inspetor da consciência. É alguém que, em nome do bispo, os ajuda a crescer. A vida espiritual.

Obrigado pela visita. Esqueci-me de lhes trazer um livreto que queria lhes dar, mas vou enviá-lo ao bispo, para cada um de vocês. E rezem por mim, eu rezarei por vocês. Não se esqueça disto: a espiritualidade do clero diocesano. Coragem!

(Os grifos são nossos)

Fonte:

IHU