Esta é a terceira e última primeira parte do ensaio “Paradigmas para uma Economia de Francisco”. No plano das ideias, a superação do neoliberalismo já começou. Vale conhecer três de seus aspectos: a revalorização do papel do Estado; a superação do conceito de PIB, precário e ambíguo; e a noção de que a desigualdade tornou-se um câncer… Nosso problema não é econômico, é essencialmente ético e político…. As imensas fortunas especulativas têm de passar a pagar impostos, e o resultado desses impostos deve ser investido no resgate da sustentabilidade do planeta e na redução da desigualdade. E o básico para a sobrevivência dos mais pobres deve ser garantido desde já.
(Texto do prof. Ladislau Dowbor, publicado em Outras Palavras, em 2/10/2019)
O papel do Estado[6]
O melhor antídoto para a farsa da privatização é a leitura do livro de Mariana Mazzucato, que mostra, no seu O Estado Empreendedor, que o reforço das capacidades de gestão pública constitui a melhor garantia de um desenvolvimento equilibrado. Primeiro temos de equilibrar o imenso deslumbramento com as estrelas mundiais dos avanços tecnológicos. Os imensos avanços na biotecnologia, por exemplo, surgem sobre a base de décadas de pesquisa fundamental desenvolvida no quadro do setor público: “Em biotecnologia, nanotecnologia e internet, o capital de risco chegou 15-20 anos depois que os investimentos mais importantes tivessem sido feitos com fundos do setor público.” (29)
Estamos muito acostumados a glorificar, por exemplo, a eficiência da Apple, sem levar em conta o processo global de avanço científico-tecnológico gerado por meio dos sistemas públicos de ensino e pesquisa: “A genialidade e ‘loucura’ de Steve Jobs levaram a lucros e sucesso massivos, em grande parte porque foi possível à Apple navegar na onda que sustentou o iPhone e o iPad: a Internet, o GPS, a tela de toque e as tecnologias da comunicação. Sem essas tecnologias financiadas pelo setor público, não teria havido onda para surfar loucamente (foolishly).”(94) Assim, a tão importante inovação nos processos modernos de desenvolvimento depende vitalmente de um equilíbrio entre pesquisa fundamental e aplicações diretamente comerciais, gerando o que Mazzucato chama de “ecosistema de inovação”.(194)
Mas esta complementariedade se deforma radicalmente quando se constata que as grandes corporações aproveitam-se das inovações desenvolvidas com fundos públicos, mas se recusam a pagar impostos. Com a globalização, as amplas facilidades geradas pelos paraísos fiscais, o fato de os recursos financeiros circularem como sinais magnéticos – tornando portanto o dinheiro imaterial – e a guerra fiscal entre países ou até Estados de um mesmo país, o fato é que as grandes corporações com os maiores lucros simplesmente não pagam impostos, ou pagam valores simbólicos. A constatação que a Apple pagou na Europa 0,05% de impostos sobre os seus lucros acendeu um sinal vermelho no mundo, e hoje a OCDE perepara um conjunto de medidas no quadro do programa BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Mazzucato traz dados sobre “os esquemas globais de remanejamento de impostos (tax-shuffrling schemes), que certamente não concernem apenas a Apple. Na realidade, outras empresas de tecnologia como Google, Oracle e Amazon também se beneficiam da adoção de esquemas de impostos semelhantes”. (189) A General Electric também é um dos campeões de evasão fiscal, pagando apenas 1,8% sobre os seus lucros entre 2002 e 2011.
O estudo mostra o papel fundamental desempenhado pelo sistema público na pesquisa de base que permite a inovação em medicamentos, que por sua vez frequentemente são vendidos a preços exorbitantes, aproveitando infindáveis patentes renovadas sobre a base de pequenas inovações cosméticas. Mostra também o papel fundamental do financiamento público, em setores não imediatamente rentáveis, como infraestruturas, mas que são essenciais para a produtividade empresarial e a qualidade de vida da população, enquanto os bancos privados desenvolveram um sistema basicamente extrativo, e não multiplicador de riqueza.
No conjunto, o resgate do papel do Estado, e em particular a sua melhor compreensão, são essenciais para pensarmos para o futuro um desenvolvimento sustentável. Temos aqui uma análise muito convergente com as propostas do Roosevelt Institute.
Corrigir as contas da economia
Kate Raworth é uma das participantes diretas do projeto Economia de Francisco. O aporte fundamental dela é uma revisão radical de como fazemos as contas na economia, ultrapassando as profundas deformações do cálculo do PIB, que calcula apenas a velocidade dos fluxos econômicos, mas não nos informa sobre os resultados para a sociedade, que é precisamente o que queremos de uma economia que funcione. George Monbiot, do Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria, e pensamento profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito que Doughnut Economics vai mudar o mundo”. Comentário forte, mas perfeitamente adequado.[7]
De forma simples e direta, Raworth faz um tipo de “reset” de como vemos o mundo econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje, mais do que do detalhe, de uma imagem de referência sobre o que queremos da economia, a autora substitui os nossos tradicionais gráficos de fluxos por uma imagem, o doughnut, a nossa familiar rosquinha. Vale a pena se apropriar de uma ideia básica, de que estamos produzindo algumas coisas em excesso, como poluição do ar, e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os excessos aparecem explodindo para além da rosca, e as insuficiências como que não chegam à rosca, ficam no vazio interno.
Com esse desenho simples estamos saindo da síntese quantitativa do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluimos para uma conta completa, permitindo identificar o que tem de ser controlado — por exemplo, a contaminação química — e o que tem de ser expandido — por exemplo, o acesso aos alimentos. Entramos assim na economia do bom senso. Só lembrando a tão bela frase que encontrei num banner de estudantes de economia: “Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa”. Portanto, temos aqui um ponto de partida sobre o qual podemos construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas teorias.
O bom do Donut, como todos sabem, é o concreto, aquela rodinha onde tem a massa e o açúcar em cima. No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências, que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água. No corpo da rosca, é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade. No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não deveríamos ter ultrapassado: são 9 itens, envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar, e destruição da camada de ozônio.
Ou seja, no vazio interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o que tem de melhorar para entrar no espaço seguro da própria donut. E no vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que temos de reduzir. Não muito diferente de como cuidamos da casa, em que temos de complementar as insuficiências, e controlar os excessos. A economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque. (38-39)
A simplicidade e facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios econômicos, é essencial, pois enquanto a imensa maioria da população não entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar. Inclusive a farsa maior, de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram empregos, e de que precisamos de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade os ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem, e mal pagam os seus impostos. Num mundo que funcione, impostos sobre o capital improdutivo levarão os rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, da fase dinâmica da economia brasileira entre 2003 e 2013, e até mais recentemente da “geringonça” portuguesa.
Aqui, ao vermos em que setores e com que atividades estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população, podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para onde irão gerar maior equilíbrio.
Ou seja, podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que setores há prioridade e assegurar o básico para a população. A economia passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de termos sido “persuadidos a gastar dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos importam.” Já era tempo que alguém dêsse um pouco de sentido na visão geral da economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas anteriormente.”(51) E corrigir as contas, em economia, é fundamental.
Resgatar a utilidade dos recursos financeiros
As boas intenções, proclamações e declarações de elevados princípios éticos não irão resolver se não enfrentarmos o problema central do dinheiro para financiar o que devemos priorizar.
É essencial lembrar, como vimos acima, que a Conferência de Paris em 2015, que com pompa e circunstância firmou o compromisso mundial de levantar 100 bilhões de dólares ao ano para enfrentar o desastre ambiental, é uma soma ridícula quando comparada aos 20 trilhões de dólares que se escondem em paraísos fiscais, 200 vezes mais. Lembrando ainda que praticamente todas as grandes corporações e grandes fortunas hoje têm filiais ou contas em paraísos fiscais, essencialmente fruto de evasão fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro. O sistema econômico realmente existente está atolado em ilegalidades. E são recursos em gigantescos volumes.
Um segundo ponto essencial é que o mundo não é pobre. Como vimos, o PIB mundial, atualmente da ordem de 85 trilhões de dólares. Este volume de bens e serviços produzidos no mundo representa 3700 dólares por mês por família de 4 pessoas, cerca de 15 mil reais. Não há nenhuma justificativa para termos 820 milhões de pessoas passando fome, das quais mais de 150 milhões de crianças. Nosso problema não é econômico, é essencialmente ético e político. No caso do Brasil, estamos exatamente na média mundial em termos de PIB por pessoa. Não há nenhuma razão econômica para a pobreza.
Um terceiro ponto é que as fortunas que hoje se acumulam são essencialmente baseadas em remuneração de papéis financeiros. A partir de estudos de Thomas Piketty, Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Ellen Brown, Michael Hudson, François Chesnais, Marjorie Kelly, Paul Dembinski e tantos outros, formou-se hoje uma sólida base teórica e clara explicitação dos mecanismos especulativos que multiplicam fortunas e extraem os recursos que são indispensáveis para evitar os desastres que temos pela frente.
Lembremos o mecanismo básico do enriquecimento especulativo: um bilionário que aplica um bilhão em papéis que rendam modestos 5% ao ano está ganhando 137 mil dólares ao dia. No dia seguinte a fortuna dele irá render sobre um bilhão mais o ganho do dia anterior e assim por diante, sem precisar produzir nada. O mecanismo, conhecido como snowball effect, efeito bola de neve, levou ao absurdo de 1% mais ricos que dispõem de mais patrimônio do que os outros 99%. Sem produzir. No Brasil, seis famílias têm mais riqueza acumulada do que o patrimônio da metade mais pobre da população. Isso, evidentemente, não funciona.
Jared Bernstein, que foi conselheiro econômico do vice-presidente dos EUA, Joe Biden, constata hoje este deslocamento geral das análises econômicas, com o título expressivo do seu estudo: “Nova economia – Uma geração de economistas ajudou a nos colocar nesta bagunça (mess): uma nova geração pode nos tirar”. Segundo autor, “Qualquer forma de análise social que vise ser útil para a sociedade precisa evoluir de maneira a estimular o bem-estar social, a equidade, a justiça racial e de gênero, e a sustentabilidade ambiental. Durante demasiado tempo, grande parte da ciência econômica foi reprovada neste teste – e, no entanto, a sua interação com a classe dirigente a elevou para o nível do poder… O mal causado de maneira penetrante por esta interação abriu caminho para um número crescente de economistas que estão derrubando a velha escola do seu patamar privilegiado. Frente a que eu digo: já era tempo.”
A revista Forbes, na sua edição brasileira, lançou em 2019 uma lista detalhada dos 206 bilhonários do país. Jorge Lemann está em primeiro lugar, com patrimônio de 104 bilhões de reais. Atividade bancária, naturalmente, dinheiro ganho intermediando dinheiro dos outros. Em segundo lugar Joseph Safra, também dono de banco, com 95 bilhões, sendo que entre 2018 e 2019 aumentou a sua fortuna em 19,31 bilhões, numa fase de paralisia geral da economia brasileira. A família Marinho, com fortuna de 34 bilhões, teve um aumento de 9,3 bilhões no mesmo período. Cândido Pinheiro Koren de Lima, dos serviços de saúde Hapvida, tem um patrimônio de 13,82 bilhões, fortuna que no último ano aumentou em 6,22 bilhões. Especular com saúde rende muito.
É preciso buscar muito na lista para encontrar alguém que efetivamente produza algo. Preferem deter a gestão dos recursos financeiros, ou gerir fundos de ações. No conjunto, em oito anos de descontrole do sistema financeiro, passamos no Brasil de 74 bilionários em 2012 para 206 bilionários em 2019. As fortunas aucumuladas passaram de 346 bilhões de reais para 1205,8 bilhões no mesmo período. (p.108) A tentativa da Dilma freiar a especulação reduzindo juros, em 2012/2013, aparece hoje com toda sua fragilidade. E o travamento da economia torna-se óbvio. Trata-se do coração do poder.
As fortunas mencionadas, evidentemente, não pagam impostos, já que lucros e dividendos distribuídos são isentos, por lei, desde 1995. Não é novo o processo, a expressão pecunia pecuniam parit nos vem dos antigos. Mas com o dinheiro hoje imaterial, essencialmente emitido pelos próprios bancos, e surfando no planeta com pouco controle, o resultado é o desastre planetário. No Brasil, é o sexto ano em que estamos parados, drenados por lucros exorbitantes e improdutivos.
A questão dos paraísos fiscais aparece regularmente na agenda das últimas reuniões do G20, bem como a evasão fiscal generalizada por parte dos grandes grupos e grandes fortunas mundiais. A OCDE prepara uma primeira proposta de regulação financeira internacional, no quadro do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que deve ver a luz em 2020. Mas a inoperância dos governos e a lentidão dos processos justificam plenamente a indignação de tantos jovens pelo planeta afora, e a perda de paciência de bilhões de pobres que hoje são privados do essencial, enquanto os recursos são desviados da sua utilização produtiva, constituindo o que Marjorie Kelly e Ted Howard qualificam adequadamente de “capitalismo extrativo”. Uma mudança sistêmica em como vemos a economia está na ordem do dia.
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Até o tradicional distanciamento e frieza das análises científicas está perdendo espaço. Não podemos senão concordar com esta declaração de Joseph Stiglitz:
“O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.”
Uma evidência começa a chegar até as pessoas mais desinformadas ou ideologicamente mais deformadas: as imensas fortunas especulativas têm de passar a pagar impostos, e o resultado desses impostos deve ser investido no resgate da sustentabilidade do planeta e na redução da desigualdade. E o básico para a sobrevivência dos mais pobres deve ser garantido desde já. Hoje enfrentamos o absurdo de conhecermos os desafios, de sabermos o que deve ser feito, e de termos os recursos financeiros e tecnológicos correspondentes, ao mesmo tempo que simplesmente adiamos as ações a serem tomadas.
Notas
[6] Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State – Public Affairs, New York, 2015
[7] Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, no Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/
(Os grifos e destaques são nossos)
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