Para falar de Deus

No século II do Cristianismo, quando a Igreja dava seus primeiros passos no cultivo da memória e no desafio de dar continuidade à missão de Jesus de anunciar e testemunhar o Reino de Deus no mundo, o bispo Teófilo de Antioquia[1] é reconhecido entre aqueles que tiveram grande importância.

Teófilo mostrou a importância de refletirmos sobre o como percebemos a presença amorosa e atuante de Deus em nossa vida e o como concretizamos a nossa relação de proximidade com Ele. No seu escrito Primeiro livro a Autólico[2], ele diz:

Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos…

Mas, se quiseres, podes curar-te. Coloca-te nas mãos do médico e ele operará os olhos de tua alma e do teu coração. Quem é esse médico? É Deus que cura e vivifica através do Verbo e da Sabedoria.

Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras…[3]

Muito interessante saber que o nome Teófilo significa “aquele que cultiva a intimidade da amizade com Deus”. O modo como Teófilo de Antioquia nos fala da importância de cuidarmos dos “olhos da fé”, para assim percebermos o amor atuante de Deus sempre conosco, nos dá acesso à própria experiência da intimidade amorosa que ele cultivava com Deus.

Deus age e continuará a agir amorosamente em toda a criação e na vida de cada um de nós, independente de nosso grau de percepção, pois seu amor se revelou em Jesus Cristo gratuito, universal e incondicional. No entanto, quando a fé nos dá olhos para captar essa presença divina em nosso meio e nem nossa vida, esta adquire um sentido maior. Passamos a viver cientes de sermos generosamente cuidados e amados por Deus. Passamos a desejar também nós a assumirmos posturas de cuidado e de amor uns aos outros e com a nossa Casa comum. Daí a importância da educação da fé. É sobre isso que aqui queremos falar.

 

Como falar de Deus hoje?

Mas como falar de Deus, esse Mistério Maior que nos envolve? Esta é uma questão importante, pois, ela é decisiva nos rumos do processo de educação da fé. O modo como falamos de Deus pode ajudar ou criar dificuldades para o desenvolvimento dos “olhos da fé”.

É comum, ao falar de Deus, utilizarmos categorias pessoais: sol, luz, energia, pai, mãe, esposo, rocha firme, porto seguro etc. Atribuímos a Ele, igualmente, características humanas e, muitas vezes, as aplicamos como se fossem absolutas: ódio, rancor, vingança, ciúme, castigo, mas também afeto, amizade, amor, proteção, amparo nas dificuldades etc. Em outros momentos, O caracterizamos como uma espécie de “deus otiosus”, que cria e depois se afasta da criação, ou de “deus absconditus”, que não é possível ser definido por estar sempre inacessível e escondido dos olhos da humanidade.

Então, como falar do Deus, captado na experiência cristã como Pai criador, proximidade amorosa, fonte e sustentação de tudo que existe, que se encarnou em nossa história e que se tornou conhecido, pela luz do Espírito Santo, no Filho feito homem, Jesus de Nazaré, “em tudo igual a nós menos no pecado”, mas que hoje é fisicamente invisível para nós?

Nesses tempos de crise ecológica, quando percebermos, de forma crescente, a necessidade urgente de refletirmos sobre a nossa relação com a Casa Comum, brotou-nos uma intuição catequética que aqui queremos compartilhar. Propomos que recuperemos o falar de Deus, como nos ensinaram os Santos Padres, por analogia.

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A experiência da água em nossa vida e a experiência de Deus

De forma simples, façamos uma analogia bem livre a partir da água… A água pura e cristalina é acolhida, apreciada e compreendida por todos de forma atrativa, sem muitos esquemas e elaborações conceituais. Quando estes se tornam complexos, excessivos e difíceis de ser compreendidos ou explicados significa que a realidade por eles retratada tornou-se como a água poluída, opaca e repulsiva, que ao invés de fazer bem, faz, na verdade, mal.

A religião, que deveria ser um prisma que irradiasse a presença de Deus ou um acesso seguro à fonte de água pura para o sedento, infelizmente, de forma frequente, torna-se por demais doutrinal, repleta de intrincadas conceituações, normatizações e rigorismos moralistas, realidade distante da vida concreta das pessoas. Já não serve como mediação histórica que favorece o acesso das pessoas à experiência límpida e refrescante da presença de Deus. E o que é ainda pior, ela tantas vezes passa a dificultar o acesso das pessoas à experiência do amor de Deus.

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Como contemplar a presença próxima de Deus a partir da água?

Fomos criados por Deus a sua imagem e semelhança e carregamos em nós a centelha divina e o dom do espírito que nos faz seus interlocutores.

A água, em sua forma pura, permite o reflexo de quem dela se aproxima. E assim como o ser humano, quando olha para a água, nela vê o seu reflexo, do mesmo modo, quando contempla pela fé o rosto de Deus em Jesus, reconhece a si mesmo nele implicado e interpelado ao amor.

Assim como a água, sem violentar-nos, revela-se necessária para a vida do ser humano, do mesmo modo, as vivências religiosas, sem nos forçar, são chamadas a, de forma envolvente, nos proporcionar rica experiência do amor de Deus como uma fonte abundante que sacia da mais pura alegria. Um encontro que amplia o horizonte de nossa esperança e nos dá profundo sentido espiritual.

Deus, qual fonte cristalina, oferece-nos algo infinitamente superior ao que nossas buscas podem encontrar nos livros de autoajuda ou nas esfuziantes experiências esotéricas. O que encontramos em Deus, na verdade, é a experiência de um amor gratuito e generoso que corrige nossas buscas egoístas de autossatisfação, de intimismo espiritual individualizante e de vazio existencial.

Deus promove e provoca libertação de nossa liberdade para a prática da justiça e da misericórdia. Ele faz com que a pessoa comprometa-se livremente para o amor fraterno. Faz-nos desejar construir outra sociedade possível!

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A necessidade diária de consumo de água revelar-nos a necessidade do cultivo de uma relação íntima com Deus em nosso cotidiano. A água nossa de cada dia ajuda-nos a perceber a importância do cultivo da espiritualidade, da oração e da vida compartilhada em comunidade de fé.

Outro ponto importante é que com a água, os animais, principalmente o ser humano, purificam-se das sujeiras adquiridas no caminho. Com a “água divina” não é diferente: em contato com a misericórdia infinita e gratuita do amor de Deus todos podem purificar-se e renovar a esperança de vida nova.

Nesse sentido, a água utilizada no batismo revela a dimensão simbólica do compromisso com uma caminhada de conversão a Deus. Com a experiência da graça divina, nós temos forças para romper com o cultivo de posturas autocentradas, egoísticas, fechadas ao amor. Na linguagem religiosa, com a graça de Deus nós aprendemos a dizer não ao pecado.

 

O ciclo da água e a percepção do amor de Deus sempre conosco

Com a água podemos também expressar a beleza do rosto de Deus, captado, pela luz do Espírito, na vida de Jesus, o Profeta da Galileia. O ciclo da água ajuda na ilustração da contínua e discreta relação de amor que Deus estabelece conosco.

Enigmática em sua origem, nasce das entranhas das rochas, manifesta-se sob a forma de nuvem, de precipitação de chuva e de evaporação pelo calor solar. Enquanto nuvem provoca o horizonte de esperança e de alegria; em estado líquido, ao cair em forma de chuva, lava, purifica, abastece os lençóis freáticos, rios e lagos, torna a terra fecunda, sacia a sede dos seres vivos; em estado sólido nos trópicos, mantém a temperatura de nossa casa comum; em estado gasoso, evapora e volta para o céu para continuar o seu ciclo contínuo, sendo fonte de equilíbrio para o dinamismo da vida.

Não se trata de uma bela analogia para refletirmos sobre a presença discreta e amorosa de Deus sempre conosco? Sendo completo em si mesmo, por amor, Deus cria e sustenta a autonomia da criação; e para autorevelar-se ao ser humano, faz-se proximidade amorosa: torna-se ser humano e parte de nossa história, mostrando-se, em Jesus, estradeiro conosco; e, pela força do Espírito Santo, revela-se luz e força que sustenta e suscita autonomia na caminhada da humanidade.

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Deus, Fonte e o Sustento da Vida em abundância para todos, assim como a água, é o nosso combustível interior. Se precisamos aprender, mais do que nunca e de forma urgente, a bem cuidar de nossa relação com a água, igualmente, precisamos bem cuidar de nossa relação íntima e vital com Deus. Lembrando-se que simples como a água, Deus revela-se disponível e acessível a todos. Todos podem, portanto, experimentar a alegria e a saúde espiritual que é sentir-se saciado por sua presença de amor e comprometer-se com a busca do bem-viver.

[1] Teófilo de Antioquia, teólogo, escritor cristão, apologista e padre da Igreja, foi o sexto bispo de Antioquia, da Síria e exerceu seu ministério entre o ano 169 e 188.

[2] Esta obra trata-se de uma defesa aos cristãos que continuavam a ser perseguidos no Império Romano.

[3] Para acessar ao texto completo de Teófilo: https://domvob.wordpress.com/2012/02/02/primeiro-livro-de-sao-teofilo-de-antioquia-a-autolico/

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Paulo Vinícius Faria Pereira

Estudante de Ciências Sociais e Teologia (PUC Minas)

Colaborador Jovem do Observatório da Evangelização.

2 Comentários

  1. A grandeza que se exprime na simplicidades das palavras… muito leve e profundo o texto

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