Os desafios dos movimentos e novas comunidades
Gilbraz Aragão (1)
Para animar a celebração do Ano do Laicato, de novembro de 2017 a novembro de 2018, retomamos e aprofundamos aqui o Documento 105 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (2), especialmente no tocante à presença e organização dos leigos e leigas em movimentos e novas comunidades eclesiais em nosso país. Ao tratar dos carismas, justamente, o Documento afirma que
“A Igreja é imagem terrena da Santíssima Trindade. ‘Povo de Deus (em relação ao Pai), Corpo e Esposa de Cristo (em relação ao Filho) e Templo vivo (em relação ao Espírito Santo)’. Assim como Deus é um só na diversidade das três pessoas, também a Igreja é unidade na diversidade” (nº 151).
As famílias cristãs hoje avivam a sua fé participando de Comunidades Eclesiais e Pastorais da Igreja, como também em Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades. As primeiras por vezes enfatizam a transformação da sociedade e as últimas a transformação das pessoas, mas todas devem se emular pelo símbolo trinitário e colaborar para a vida comunitária e o serviço eclesial. Contudo, às vezes, na prática a teoria é outra e encontramos cristãos fechados em uma espiritualidade comunitarista, que desdenham da diversidade na Igreja e desperdiçam oportunas complementaridades de carismas – em favor da fermentação do Reino de Deus no mundo.
Pois bem, mas a gente não cuida daquilo que não conhece. Vale a pena rever historicamente como foram surgindo as diversas expressões e organizações do catolicismo brasileiro. Encontra-se por dentro das expressões religiosas populares a experiência de submissão a um Deus absolutamente transcendente, criador e recriador da vida, cujo poder se manifesta nas “leis eternas” da natureza e da sociedade – que é vista como que naturalizada e se encontra igualmente sob a proteção e controle dos “santos”. Paradoxalmente, mostra-se aí a reivindicação de dignidade por parte de um homem sofrido, que através de sentimentos e práticas religiosas consegue clamar: “Deus é Pai, não é padrasto”.
As Irmandades e Confrarias, voltadas para a celebração do culto e das devoções aos santos e almas, foram o principal suporte da religião católica no Brasil. Eram grupos de leigos, gozando de muita autonomia, que organizavam e abrilhantavam as festas nas quais o padre era convidado, para dizer missa e fazer “desobriga”. Nos outros dias do ano, as práticas religiosas eram de âmbito muito familiar ou pessoal: os oratórios domésticos e os velórios, os cruzeiros para mortos, as curas dos benzedores. Nesses momentos, as pessoas com mais jeito e melhor dom, como os beatos e beatas, dirigiam as celebrações e as romarias, os ofícios e peregrinações, trazidos do medievo pelos colonos portugueses e aqui misturados com os cultos de santidade e invocações dos encantados afro-indígenas.
O catolicismo de paróquias com a missa dominical cheia de gente, associações pias e festas do mês de maio e do padroeiro, procissões e vigário de batina, enfatizando os sacramentos e a moralidade, é um catolicismo implantado no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Novas devoções foram implantadas pelo Apostolado da Oração e demais associações para leigos fundadas na época (Filhas de Maria, Liga Católica, Cruzada Eucarística). Até as antigas Irmandades foram passando para o controle paroquial, como as do Santíssimo; reduzindo-se à beneficência para os próprios membros, como as Ordens Terceiras; ou transformando-se em entidades mantenedoras, como as Irmandades de Misericórdia.
Ao mesmo tempo, festas como a da Coroação de Nossa Senhora vieram substituir as Folias de Reis e do Divino, Procissão das Almas e as Festas Juninas. Trazendo as imagens dos oratórios para os templos paroquiais, o clero tornou-se o principal festeiro, dirigindo as novenas e rezas. Para isso, contou com a força das “missões populares” e com a ajuda de congregações que substituíram ermitães e beatos dos centros de romaria. Essa reforma ou romanização da Igreja, para fazer frente aos ares republicanos, estabeleceu novas estruturas eclesiásticas, contudo as suas escolas, sacramentos paroquiais e associações piedosas atingiram pouca gente.
A maioria da população, conservando elementos da tradição antiga, reinterpretou esse catolicismo reformado, praticando sua religião de modo privatizado ou em comunidades de “cura divina”, abertas ao sincretismo. O núcleo é a devoção aos santos, através de um relacionamento direto e pessoal, mas esse catolicismo de devoção é suplementado pelas práticas sacramentais do catolicismo romano, quais o batismo, primeira comunhão, casamento e os funerais, além das festas dos padroeiros e da semana santa. Ou então, recebe suporte nos pentecostalismos modernos, sintetizando toda a santidade em Jesus Cristo ou no seu Espírito, substituindo a promessa pelo “voto”, mas recorrendo às bênçãos e exorcismos como antigamente.
Frente a essa religiosidade tradicional teocêntrica, que aponta para santos intermediários na busca das bênçãos de um Deus – “Pai” – por vezes distante, para corpos alquebrados em um “mundo perdido”, uma nova evangelização foi surgindo no Brasil em fins do século XX, com os ecos modernos do Concílio Vaticano II. Mas ela desdobrou-se em duas tendências, com ênfases diferenciadas.
O cristianismo de renovação, mais antropocêntrico, criou Comunidades Carismáticas e Movimentos Espirituais que visam a uma experiência psicológica e íntima do Espírito de Deus na própria pessoa, atestando os dons da presença vivificante do Deus vivo no mundo. Por sua vez, o cristianismo de libertação, mais centrado na história e popularizando as experiências de organização da Ação Católica, inventou as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais engajadas: elas criam uma espiritualidade em torno do seguimento do Senhor Jesus na práxis histórica libertária, questionando assim os senhores deste mundo injusto e militando gratuita e vigorosamente por um mundo melhor.
É lastimável que essas tendências, dos grupos de renovação e de libertação, excluam-se mutuamente com frequência – quando deveriam era interpelarem-se criativamente. Mais lastimável ainda é que ambos os grupos não consigam uma presença evangelizadora mais eficaz em meio à religiosidade popular, ou ao menos não com a eficácia evangélica.
Aqui retomamos a inspiração do símbolo trinitário. O Papa Francisco sublinha o aspecto relacional da Trindade: “Acreditar em um Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca trinitária” (LS 239). Tudo está interligado: Deus, as pessoas, a natureza, o cosmo. “O mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações” (LS 240), de relações trifásicas. O mundo trinitário contrasta com o mundo binário, que é fundamentalista e excludente do outro, é o mundo dos verdadeiros contra os mentirosos, que não permite as diferentes cores da realidade social, psicológica e religiosa.
A visão trinitária aponta para um salto qualitativo frente às contradições ou paradoxos, abrindo para a inclusão, desde outros níveis de realidade, daquele Terceiro que é anterior e está para além. Frente à Trindade, os grupos de renovação e os de libertação da nossa Igreja precisam reconhecer o mistério que está entre e além, incluir um Deus que é sempre maior – e que se manifesta, justamente, nos empobrecidos e nos irmãos menores. Esse salto messiânico, místico e ético, resgata com sua memória surpreendente e subversiva o passado e antecipa o futuro. Isso vale para as relações eclesiais, mas também sociais: o Brasil precisa refletir com profundidade o sistema binário da luta dos bons contra os maus. O país necessita fazer um salto qualitativo para sua realidade profunda e trinitária, que já contém a semente daquela possibilidade que está na nossa frente e que pode garantir a paz: a inclusão do Terceiro, de Deus mesmo, e do outro pobre.
Com base nessa revisão histórica e nesse fundamento teológico, podemos então aprofundar os desafios da presença dos leigos e leigas em movimentos e novas comunidades eclesiais em nosso país. O Documento 105 da CNBB bem lembra que
“a respeito da eclesialidade das pequenas comunidades, dos movimentos, das novas comunidades, das instituições eclesiais e de outras formas de associação, pede o Papa Francisco: ‘não percam o contato com esta realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular. Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nômades sem raízes’” (nº 150).
Por causa disso, foram levantados (cf. nº 149) critérios de eclesialidade a serem observados, para que as Comunidades Eclesiais de Base, as pequenas comunidades, os movimentos, associações, as novas comunidades, sejam autenticamente cristãs: a primazia dada à vocação de cada cristão à santidade, favorecendo e encorajando a íntima unidade entre a vida prática e a própria fé; a responsabilidade em professar a fé católica no seu conteúdo integral, acolhendo e professando a verdade sobre Cristo, sobre a Igreja e sobre a pessoa humana; o testemunho de uma comunhão sólida com o Papa e com o bispo, na estima recíproca de todas as formas de apostolado na Igreja, estima que se concretiza ainda mais com o pároco e a equipe de presbíteros no caso da paróquia formada em rede de comunidades; a conformidade e a participação na finalidade apostólica da Igreja, que é a evangelização e santificação das pessoas; o empenho de uma presença na sociedade a serviço da dignidade integral da pessoa humana mediante a participação e solidariedade para construir condições mais justas e fraternas.
No que diz respeito aos desafios e oportunidades específicos dos grupos de renovação cristã, dos movimentos e novas comunidades que enfatizam a transformação pessoal, frente a esses critérios, são chamadas, pois, a incluir o seu contraponto de engajamento social e de inserção nas comunidades locais. Mas também precisamos lembrar (cf. nº 214) que os leigos têm o direito de fundar associações e governá-las, respeitada a devida relação com a autoridade eclesiástica, e “é necessário reconhecer-se a liberdade associativa dos fieis leigos na Igreja. Essa liberdade constitui um verdadeiro e próprio direito que não deriva de uma espécie de concessão da autoridade, mas, que promana do Batismo” (nº 215).
Devemos destacar, ainda, a presença ativa e benfazeja de associações laicais nascidas a partir dos carismas das ordens e congregações religiosas, que contribuem para que muitos cristãos leigos e leigas vivam profunda espiritualidade e assumam presença junto aos mais pobres numa perspectiva de assistência, promoção humana e no compromisso sociotransformador.
Nesse sentido, reconhece e apela o Documento 105:
“A Igreja conta hoje com uma gama variada de associações de fiéis que agregam leigos, outras que agregam leigos e clérigos, e outras ainda, leigos e leigas consagrados, cada qual com seu carisma e com seus modos próprios de organização e seus métodos de ação. Trata-se de uma variedade que ganha visibilidade como grupo identitário dentro e até mesmo fora dos espaços eclesiais. Ao mesmo tempo em que reconhecemos a riqueza dessa diversidade, apelamos para que se considerem os desafios para a vivência eclesial no espírito da unidade na diversidade” (nº 218).
Com efeito, as novas comunidades, espaços mistos de vida leiga, religiosa e clerical, que pedem de cada membro uma adesão estável e visível a uma pedagogia espiritual cristã, tornaram-se um fenômeno forte no catolicismo brasileiro. Como em outros momentos da história da Igreja, o caminho desses movimentos e comunidades passa pela inserção na caminhada das Igrejas Particulares e pelo acolhimento, por parte dessas Igrejas, da diversidade desses carismas e pedagogias espirituais.
Diz o Documento 105:
“As pastorais, movimentos, associações, serviços eclesiais, novas comunidades e outras expressões possuem o seu processo formativo sistemático em função dos seus carismas e objetivos. No entanto, convém que participem também da formação desenvolvida na Igreja diocesana, cujo bispo é sinal visível e artífice da comunhão eclesial. A autonomia de cada movimento só tem sentido dentro da maior comunhão eclesial e se concretiza nas formas de inserção e vínculos com as Igrejas Particulares e comunidades eclesiais locais” (nº 221).
Os dons existem para a edificação da Igreja e não podem servir como busca de poder religioso dentro da comunidade: a inserção em espaços eclesiais mais amplos e o serviço conjunto em defesa da vida no mundo deve ser a meta. O diálogo e a abertura para as relações complementares, portanto, é a pista para a construção da unidade: quanto maior for a comunhão, mais eficaz será o testemunho de fé da comunidade.
“Na busca desta inserção e num gesto de acolhimento, a CNBB, por meio da Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato e junto com o CNLB, tem realizado encontros nacionais e regionais com dirigentes de movimentos e serviços eclesiais, e com associações laicais e novas comunidades estabelecendo um diálogo fraterno e construindo caminho de unidade e comunhão, cujo sinal visível é o bispo diocesano. Além disso, com o mesmo objetivo, lideranças de todos estes segmentos participam, anualmente, de seminários com os bispos referenciais de leigos e das CEBs, realizados pela Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato” (nº 222).
Enfim, esperamos que o Ano do Laicato também envolva os movimentos e novas comunidades católicas, no mutirão rumo a uma Igreja mais participativa, através de Conselhos e de Ministérios assumidos comunitariamente, bem como uma Igreja mais engajada na transformação humanista da sociedade, que continua se desumanizando por individualismos e grupos fechados em interesses mesquinhos. Recordamos que no cristianismo primitivo toda a comunidade tinha um caráter “sacerdotal”, na medida em que sua vida comunitária devia participar da “obra sacerdotal” de Cristo. Não simplesmente na celebração litúrgica, mas no empenho amoroso da vida de cada um e de todo cristão, devido ao poder transformador do único sacrifício de Cristo.
Porém, na medida em que a Igreja foi crescendo, tornou-se mais comum distinguir entre os cristãos ordenados para as celebrações públicas (o clero) e os não ordenados (os leigos). Depois, o aparecimento do monaquismo aprofundou essa distinção, entre leigo e monge, o qual devia se devotar à espiritualidade. Com isso a liturgia passou a ser privilegiada e se tornou assunto clerical, ficando os leigos reduzidos a espectadores. Essa ideia de classes tornou-se forte na eclesiologia católica, até que o Concilio Ecumênico Vaticano II recordou que a vida de todo cristão é sacerdotal, na medida em que ele se entrega ao poder do amor, encarnado na autodoação salvífica de Jesus. E o ministério cristão ordenado é revisto, então, como uma chamada para servir e coordenar esse sacerdócio de todos os batizados.
A Igreja, pois, é esse povo enviado ao mundo em missão para construir o Reino vindouro de Deus, povo que olha para o futuro com humildade e esperança. A fé, o batismo e o discipulado são, pois, realidades fundacionais na Igreja. Todos os cristãos, em virtude do seu batismo, participam do sacerdócio de Cristo, e todos são chamados a entregar suas vidas a um sacrifício vivo de santidade. O Documento 105 da CNBB afirma que os cristãos leigos e leigas devem ser convocados a participarem consciente, ativa e frutuosamente dos processos de planejamento, das decisões e execução da vida eclesial e da ação pastoral através das Assembleias paroquiais, diocesanas, regionais e nacionais, e os Conselhos pastorais, econômico-administrativos, e missionários, em todos os níveis.
A formação integral é fundamental para que as leigas e leigos cresçam na fé, no testemunho nas diferentes realidades, sejam presença dos valores evangélicos na sociedade, contribuam significativamente neste momento de mudança de época que está surgindo, e pode ser melhor ativado sobretudo através do reconhecimento do protagonismo das mulheres e dos jovens.
No campo da política, lembra o Documento 105, é preciso impulsionar os cristãos a construírem mecanismos de participação popular que contribuam com a democratização do Estado e com o fortalecimento do controle social e da gestão participativa do espaço público. No mundo do trabalho, é preciso criar grupos de partilha e de reflexão para os diferentes profissionais, estimulando-os a serem discípulos missionários em sua atuação cidadã. No âmbito das famílias, devemos apoiar a pastoral familiar, para que as famílias possam educar os seus filhos para uma alegria esperançosa e caridosa e para a defesa da vida. É também necessário fortalecer as pastorais sociais em espírito missionário para responder às necessidades de cada realidade de exclusão e sofrimento. Que elas se articulem entre si e com os movimentos sociais, atuando na democracia direta e participativa, por meio dos Conselhos de Cidadania e na proposição de políticas públicas de inclusão.
Fica aqui o desafio para os movimentos e novas comunidades católicas, de sentirem e agirem com toda a Igreja. Fica aqui o desafio à Igreja católica, de acolher a riqueza de espiritualidades e pedagogias das suas novas comunidades.
Notas:
1. Gilbraz Aragão é doutor em teologia, professor e pesquisador no campo dos estudos de religião na UNICAP.
2. Todas as referências de números se referem ao Documento no 105 da CNBB – Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade – Sal da Terra e Luz do Mundo (Mt 5, 13-14). Edições CNBB, Brasília – 2016.
Fonte:
Grupo de reflexão da Comissão episcopal de pastoral para o laicato da CNBB. Sujeitos eclesiais. Sal da terra e luz do mundo. Reflexões sobre o Documento 105. São Paulo: Paulinas, 2018, pp. 93-103.