Na véspera da reunião dos líderes das conferências nacionais dos bispos católicos em Roma, na qual se discutirão os abusos sexuais do clero, Michele Dillon, professora de sociologia na Universidade de New Hampshire e autora do livro é Catholicism Postsecular: Relevance and Renewal (Catolicismo pós-secular: relevância e renovação), em artigo publicado por National Catholic Reporter, em 15/02/2019, afirma que:
A linguagem eufemística é usada preferencialmente para mistificar e distrair e, especialmente, negar uma dada realidade. Autoridades da Igreja usam a linguagem eufemística, argumentou Bourdieu, para se inocular do reconhecimento da verdade real das práticas da Igreja, e para convencer os leigos (e outros) de que não há nada arbitrário a respeito do poder hierárquico e o privilégio clerical que ele incorpora.
Com outras palavras “É como um manual para esconder a verdade: primeiro, use eufemismos em vez de palavras reais para descrever as agressões sexuais nos documentos da diocese. Nunca diga ‘estupro’, diga ‘contato inadequado’ ou ‘problemas de limite’. (…) Quando um padre precisa ser removido, não diga por quê: diga aos paroquianos que ele está de licença médica ou que está sofrendo de ‘esgotamento nervoso’. Ou não diga nada“.
A menos que as autoridades da Igreja venham a reconhecer as posições de privilégio e poder que elas ocupam, e como isso pode distorcer seu entendimento do sacerdócio, sobre equidade, sobre sexo e abuso sexual, é difícil ver, atualmente, uma saída da crise que eles criaram. A eufemização permitiu à hierarquia mascarar as duplas verdades – celibato/atividade sexual e serviço sacerdotal/poder – que sustentaram o status consagrado de muitas gerações de católicos.
Confira, a seguir, o provocante artigo da socióloga Michele Dillon:
A eufemização do poder da Igreja católica
Líderes das conferências nacionais de bispos católicos irão se reunir em breve, entre 21 e 24 de fevereiro de 2019, em Roma, para confrontarem coletivamente o flagelo do abuso sexual do clero, que foram permitidos por lideranças fracassadas, durante várias décadas. Ações concretas são urgentemente necessárias e esperadas impacientemente.
Qualquer política emergente, no entanto, se não for construída sobre o reconhecimento dos líderes da Igreja de como o poder sacramental (ordenação) pode contribuir para a fermentação do abuso, dificilmente será eficaz na eliminação da atividade sexual do clero e o seu acobertamento. Essa tarefa requer escolhas ativas do papa Francisco e de seus colegas, para chegar à verdade e delineá-la.
O grande sociólogo francês Pierre Bourdieu, já falecido, escreveu em seu livro Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação sobre como os jogos de palavras, incluindo eufemismos, são uma estratégia crucial na reprodução da Igreja Católica da desigualdade entre a hierarquia e os leigos. A linguagem eufemística não é simplesmente um jargão ou a abreviação pragmática. É usada preferencialmente para mistificar e distrair e, especialmente, negar uma dada realidade. Autoridades da Igreja usam a linguagem eufemística, argumentou Bourdieu, para se inocular do reconhecimento da verdade real das práticas da Igreja, e para convencer os leigos (e outros) de que não há nada arbitrário a respeito do poder hierárquico e o privilégio clerical que ele incorpora.
Eu pensei em Bourdieu em agosto de 2018, enquanto lia as conclusões do relatório do grande júri da Pensilvânia sobre abuso sexual nas dioceses católicas do país. O relatório documentou várias instâncias de eufemização em ação. E de fato chamou a eufemização pelo que é.
Resumindo a análise dos arquivos sobre abusos sexuais em dioceses, conduzidos pelo FBI, o grande júri escreveu: “É como um manual para esconder a verdade: primeiro, use eufemismos em vez de palavras reais para descrever as agressões sexuais nos documentos da diocese. Nunca diga ‘estupro’, diga ‘contato inadequado’ ou ‘problemas de limite’. (…) Quando um padre precisa ser removido, não diga por quê: diga aos paroquianos que ele está de licença médica ou que está sofrendo de ‘esgotamento nervoso’. Ou não diga nada“.
Eufemismos, como o grande júri notou, escondem a verdade. Mas qual é a verdade que está sendo escondida? Obviamente, a verdade sendo escondida é de que padres católicos (e alguns bispos e cardeais) estão fazendo sexo com crianças (e com adultos). Essa verdade não deveria ser encobertada. Revela uma flagrante violação da personalidade e dignidade de uma criança; uma violação que, não obstante sua criminalidade e independente de qualquer avaliação psicologicamente benigna comunicada aos oficiais da igreja, seria e deveria ser vista como uma violação da Lei Natural, a tese ancorando o raciocínio moral católico.
Essa verdade também revela um comportamento que é, claramente, uma violação do voto celibatário, obrigado pela ordenação ao sacerdócio. Assim, a eufemização serve para ocultar a dupla verdade ou a “coexistência de opostos” que, segundo Bourdieu, é necessária para sustentar o poder da Igreja.
Esta é a verdade que, como afirmou o Concílio do Vaticano II, embora a Igreja compreenda todo o povo de Deus – leigos e ordenados –, na prática, a Igreja é estruturada pela desigualdade sancionada e consagrada pela ordenação sacerdotal.
O fato de que o clero se envolve em sexo e o fato de que tais clérigos são protegidos pela igreja, material e simbolicamente (através de uma linguagem eufemística), ilumina a dupla verdade do celibato e da atividade sexual. Isto também transmite a verdade de que o sacerdócio, como o Vaticano argumenta, é diferente – “é de outra ordem”, ligado ao “mistério de Cristo” (Congregação para a Doutrina da Fé, “Mulheres no Sacerdócio Ministerial”) – mas, no entanto, concretizada em formas particulares pela Igreja. De fato, sua concretização revela a dupla verdade na alegação da Igreja de que “o sacerdócio é um serviço e não uma posição de privilégio ou poder humano sobre os outros“.
Francisco constantemente denuncia o clericalismo e expressa preocupação de que “o poder sacramental [se torne] estreitamente alinhado com o poder em geral” (Alegria do Evangelho). E ele enfatiza que a Igreja “não é uma elite de padres, de pessoas consagradas, de bispos – mas que todas as pessoas formam o Povo Sagrado e Fiel de Deus”. Na verdade, o poder na Igreja está ligado inseparavelmente à ordenação, e, por definição, consagra uma cultura clerical, bem como práticas excludentes em relação aos não-ordenados. A linguagem, não importa o quão habilmente esteja empregada, não pode obscurecer essa realidade.
A menos que as autoridades da Igreja venham a reconhecer as posições de privilégio e poder que elas ocupam, e como isso pode distorcer seu entendimento do sacerdócio, sobre equidade, sobre sexo e abuso sexual, é difícil ver, atualmente, uma saída da crise que eles criaram. A eufemização permitiu à hierarquia mascarar as duplas verdades – celibato/atividade sexual e serviço sacerdotal/poder – que sustentaram o status consagrado de muitas gerações de católicos.
Mas a eficácia dessa estratégia pode estar diminuindo, como sugerido pelo declínio da confiança dos leigos na liderança da Igreja encontrada em um estudo da Pew Research. A cúpula de fevereiro oferece uma oportunidade para forjar uma estratégia diferente.
(Tradução: Natália Froner dos Santos. Os grifos são da equipe do Observatório)
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