Uma vez abordadas cada uma das categorias do tripé da eclesiologia do Concílio Vaticano II – Reino-Igreja-Mundo, resta inter-relacionar Igreja-Reino e Igreja-Mundo.
O eclipse do Reino Deus na concepção de Igreja, bem como a postura de fuga mundi, foram superados pela renovação conciliar, em sua volta à fontes bíblicas e patrísticas.
O Concílio é claro:
“… a Igreja, enriquecida com os dons de seu fundador, observando fielmente seus preceitos de caridade, de humildade e de abnegação, recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em meio a todas as pessoas, e constitui na terra o gérmen e o princípio deste Reino” (LG5,2).
Frisa o Vaticano II que a Igreja não se identifica com o Reino de Deus, pois, é dele apenas “gérmen e princípio”. E sua missão consiste em anunciá-lo e, enquanto seu sacramento, também em torná-lo presente no Mundo.
Comecemos pela relação Igreja-Reino:
De uma Igreja absorvedora a uma Igreja servidora do Reino
Já vimos que, historicamente e, por longo tempo, a Igreja se auto-identificou com o Reino de Deus. De servidora, tornou-se absorvedora do Reino. Mas, o Vaticano II corrigiu esta anomalia. Afirmou que não é o Reino que está na Igreja, mas é a Igreja que faz parte do Reino, dado que ela é apenas seu “gérmen e princípio”. Pelo Espírito Santo, o Reino de Deus também se faz presente fora da Igreja. A justiça, a paz e o amor, não são monopólios dos cristãos. Onde quer que eles reinem e se faça a vontade de Deus, o Reino de Deus está presente.
Além do Reino de Deus não se restringir à comunidade dos discípulos de Jesus, que é a Igreja, também não acontece somente na esfera estritamente religiosa ou na interioridade secreta da consciência.
O Reino se produz na concretude da realização do amor ao próximo, em suas objetivações empiricamente perceptíveis, apesar da ambiguidade da história. Consequentemente, história da Igreja e história da salvação não coincidem. Há salvação fora da Igreja porque há presença do Reino para além de suas fronteiras.
Assim, como sacramento do Reino, seu “gérmen e princípio”, cabe à Igreja mostrá-lo e testemunhá-lo, sem se orgulhar disso, pois é apenas depositária de um dom a ser partilhado com toda a humanidade.
A relação Igreja-Reino está marcada por uma tensão
A relação Igreja-Reino, em virtude de a Igreja estar marcada pelos limites do humano e peregrinar na história, está caracterizada por uma tensão. Por um lado, há um abismo entre Igreja e Reino e, por outro, estreita relação. Ela se move entre infinita distância e proximidade.
Estreita relação e proximidade no sentido de que os dons do Reino, que são frutos do Espírito, já se fazem presentes na Igreja, ainda que de maneira imperfeita, misteriosa, mas real (Cl 13,2). E abismo e distância porque o Reino de Deus, enquanto plenitude e consumação da história, por mais que a Igreja o antecipe no mundo, suas realizações estarão sempre aquém do Reino definitivo, cuja plenitude se remete à meta-história.
Esta tensão entre o que “já” chegou do Reino de Deus e o que “ainda” se espera que chegue um dia, caracteriza o ser da Igreja. Por isso, a Igreja é peregrina (2Cor 8,6). Vive ao mesmo tempo o “já” da presença do Reino, enquanto depositária dos meios de salvação e, o “ainda não” de sua plenitude, que a projeta para o futuro, a ser antecipado o máximo possível no presente.
Sempre que a Igreja elimina esta tensão, pretendendo se identificar com o Reino, deixa de ser a Igreja de Jesus e eclipsa o Reino.
Acolher e contribuir com a presença do Reino fora da Igreja
Finalmente, a relação Reino-Igreja conclama os cristãos a acolher e a colaborar com a edificação do Reino de Deus, presente para além das fronteiras da Igreja. Sua missão consiste, antes de tudo, em acolher a obra que Deus fez, pelo seu Espírito, também fora dela. Antes do missionário sempre chega o Espírito Santo. Tudo o que é vida, bondade, justiça, amor, paz¸ é obra do Espírito e presença do Reino de Deus, mesmo que se dê de modo implícito e fora da Igreja.
Na verdade, o Espírito Santo está presente, como dinamizador da vida, tanto na obra da Criação, como na obra da Redenção. Como dizia Santo Irineu, Jesus e o Espírito Santo são os dois braços pelos quais o Pai age e faz acontecer seu Reino no mundo.
Além de acolher a obra do Espírito que atua para além de suas fronteiras, a Igreja está chamada também a colaborar com aqueles que agem no Espírito e edificam o Reino, mas não são Igreja (GS 40). Colaborar com iniciativas de adeptos de outras religiões e de pessoas de boa vontade, é colaborar com a obra de Deus, realizada na graça de seu Espírito. O cristão, como cidadão do Reino, é companheiro de caminho de todas as pessoas de boa vontade, sejam elas pessoas de fé ou simplesmente professantes de um “humanismo aberto ao Absoluto” (Paulo VI).
Como dizia Dom Hélder Câmara, “às vezes, não apoiamos certas bandeiras, que são evangélicas, só porque estão em mãos que julgamos erradas”. O mesmo aconteceu com os apóstolos de Jesus: “Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome e procuramos impedi-lo, porque ele não era um dos nossos” (Mc 9,38).
(os grifos são nossos)
Sobre o autor:
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.
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