Reino-Igreja-Mundo constituem o tripé da eclesiologia do Vaticano II, em sua “volta às fontes” bíblicas e patrísticas. Nos artigos anteriores, abordamos o que se entende por Reino e por Igreja, tanto na Bíblia como no itinerário da teologia.
Vamos, agora, tratar do “mundo”, ao qual a Igreja pertence. O mundo constitui o lugar e a finalidade da missão da Igreja, que é a de tornar presente nele o Reino de Deus, do qual ela é sacramento. Vamos fazê-lo em dois momentos. Neste artigo, veremos o que se entende por mundo na filosofia grega e na Bíblia. No seguinte, como a Igreja foi compreendendo o mundo em seu itinerário histórico pela reflexão pela teologia.
Como os gregos concebiam o mundo
Vamos, aqui, nos limitar ao pensamento clássico, anterior e contemporâneo ao nascimento do cristianismo. O termo grego para designar o mundo é “cosmos” que, originariamente, significa “ordem”, oposto a “caos”. Era utilizado somente pelos filósofos. Depois, com o estoicismo, tornou-se linguagem corrente. O que chama a atenção é que o significado do termo tem uma valoração qualitativa e positiva do mundo. Trata-se de um todo fundamentado internamente, como uma ordem harmoniosa (originariamente o termo se aplicava à ordenação jurídica e, logo, também ao ornato das mulheres; daí deriva o termo “cosméticos”). Também chama a atenção que o mundo tenha sido caracterizado com um conceito tomado da esfera humana, marcando a estreita relação entre o mundo do humano e o mundo das coisas.
Por “cosmos”, Platão designa “céu e terra, deuses e homens” (o mundo sensível é somente projeção do mundo real, só apreensível espiritualmente). Já para Aristóteles, o mundo é a natureza – uma realidade que opera incansavelmente, segundo a essência de Deus. Por isso, para ele, a ciência mais importante não é a antropologia, como para Platão, mas a cosmologia.
Mas, a concepção de mundo, que iria preponderar e influenciar o cristianismo, viria de uma corrente filosófica e espiritual dos estoicos, à qual o apóstolo Paulo e Santo Agostinho, por exemplo, foram ligados antes da conversão. Para o estoicismo, Deus é a razão (alma) do mundo, que penetra tudo e sua providência é a lei do mundo. Entretanto, por uma forma de espírito invejoso de Deus, o cosmos está desvirtuado e nos leva a separarmo-nos de Deus. Consequentemente, a salvação não está em adaptar-se à realidade do cosmos ou à contemplação de sua beleza, mas na fuga do mundo sensível e do próprio corpo, através da gnose. Só pela gnose, uma espécie de ascese da mente, se pode caminhar em direção ao ápice supremo da alma, que é Deus. Tanto o platonismo, como o estoicismo, terão grande influência sobre o cristianismo.
A concepção de mundo para os judeus e os cristãos
Ao contrário de Platão, para o povo de Israel, o mundo não é o espaço supremo e divino, que abarca deuses e seres humanos. Também não é, como para Aristóteles, uma realidade que opera segundo a essência de Deus. Muito menos o mundo se opõe a Deus, como para o estoicismo. Na revelação recebida por Israel, o mundo aparece como o “não-divino”, a obra boa do Deus supra-mundano. Tanto que o mundo será logo objeto imediato de louvor ao poder de Deus e de admiração por seu sábio governo e ordem do mundo.
Ao contrário do estoicismo, em que o mundo sensível se opõe ao espírito, para Israel, o mundo é bom, pois foi Deus quem o criou. Não foi criado, como para o gnosticismo, por uma divindade inferior, como vingança ao deus superior, aprisionando nele partículas (almas) do deus superior, fazendo do mundo uma prisão da alma. Ainda que a fé em Javé seja anterior à ideia de “criação”, entretanto, quando esta aparece, o mundo será objeto de louvor imediato ao poder criador de Javé. No Primeiro Testamento, o mundo não se opõe a Deus, nem é emanação ou prolongamento de Deus (panteísmo), mas “criação” de Deus. Deus é “Criador”, pois criou o mundo do nada – creatio ex nihilo.
No Segundo Testamento, o mundo é bom, pois foi criado por Deus e criado em Cristo – tudo foi criado por Ele e para Ele. … sem Ele, nada do que existe teria sido feito (Jo 1,10). É verdade que, “desde Adão”, o mundo está marcado pelo pecado e, portanto, é um “mundo caído”. Entretanto, continua bom e obra do Criador. Por isso, deve-se ter cuidado em distinguir, no Segundo Testamento – “mundo do pecado” e “pecado do mundo”. No mundo, há um “mundo do pecado”, que afasta cada vez mais de Deus, sinônimo de “hostilidade a Deus” e “condenado à perdição”. Mas, o “pecado do mundo” foi vencido pelo “Salvador do mundo”, que embora o mundo esteja sobre a influência do mal, em princípio, já está redimido e destinado à salvação definitiva.
Por isso, para o Segundo Testamento, os discípulos de Cristo vivem (são) “neste” mundo (Jo 17,11), mas não vivem (são) “deste” mundo (Jo 17,14), porque em Cristo já pertencem a outro mundo celestial. Tanto que Jesus não pede que o Pai os tire do mundo (Jo 17,15), ao contrário, os envia ao mundo (Jo 17,18). E, precisamente porque eles pertencem, desde agora, a outro mundo “celestial” (redimido) (Ef 2,7), e não vivem segundo o modo deste mundo (Rm 12,2), podem usar livremente das coisas do mundo (1Cor 3,22ss).
Como se pode perceber, o Segundo Testamento nunca prega a fuga do mundo enquanto “criação”, apesar da exortação de usar as coisas do mundo como se não as usasse (1Cor 7,31).
Sobre o autor
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.
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