O tripé da concepção de Igreja do Concílio Vaticano II: Reino-Igreja-Mundo (5)

Vimos, na reflexão anterior, que Jesus pregou o Reino de Deus e quis a Igreja para ser seu sacramento, assim como a fundou no Espírito Santo. A Igreja, portanto, procede de Jesus e do Espírito Santo. Mas, qual é a sua razão de ser? Com que finalidade ela foi fundada e instituída por Deus? 

Tradicionalmente, a razão de ser da Igreja era atribuída à “salvação da humanidade”. Apesar de ter parte de verdade, entretanto, é uma definição simplista e ambígua, pois ainda que não exista salvação fora de Jesus Cristo, existe salvação fora da Igreja. Esta, enquanto sacramento do Reino de Deus, é uma mediação de salvação privilegiada, mas não a única. Como diz o Vaticano II, pelo Espírito, Deus salva também por outros meios que só ele conhece. Na realidade, continuam existindo maneiras de entender a razão de ser da Igreja, que o Vaticano II superou. Para não nos alongarmos, vejamos brevemente o modo como entendia a razão de ser da Igreja na eclesiologia pré-conciliar e a compreensão atual segundo o Concílio. 

I – A razão de ser da Igreja na eclesiologia pré-conciliar

Na eclesiologia tradicional, superada pelo Vaticano II, havia basicamente três maneiras insuficientes de compreender a razão de ser da Igreja:

1. A Igreja está no mundo “para tornar possível a salvação”.

Ora, a rigor, não é a Igreja que salva, mas Deus. Além do mais, a salvação oferecida por Deus a toda a humanidade não passa necessariamente pela mediação da Igreja. A graça salvadora atua na Igreja e também fora dela. Neste particular, o papel específico da Igreja consiste em “qualificar” a salvação universal oferecida a todos, dando-lhe, através da comunidade dos discípulos de Jesus, uma visibilidade particular. 

2. Ela está no mundo “para tornar mais fácil a salvação”.

É verdade que a Palavra de Deus e os sacramentos, meios dos quais a Igreja é depositária e vividos no seio de uma comunidade eclesial, são o caminho mais adequado na busca e na acolhida da salvação. Entretanto, viver segundo o Evangelho não é mais fácil. Como advertiu o próprio Jesus – “estreita é a porta e apertado é o caminho que conduz à vida” (Mt 7,14). Além disso, infelizmente, muitas vezes a Igreja, por suas infidelidades e contradições, pode tornar-se um caminho mais difícil de acesso ao Reino de Deus. 

3. Ela está no mundo para explicitar ou apontar o caminho da salvação.

Em parte é verdade, pois, quando uma pessoa de “boa vontade” se torna cristã, é tarefa da Igreja reconhecer como cristão todos os seus valores vividos e compatíveis com o Evangelho. Entretanto, a função da Igreja com relação à salvação não se reduz à sua explicitação, precisamente porque ela não é a única mediação de salvação, ainda que constitua uma forma original e especial, uma mediação privilegiada. 

II – A razão de ser da Igreja segundo o Vaticano II

Frente a estas três maneiras insuficientes de entender a razão de ser da Igreja, na ótica da renovação do Vaticano II, poderíamos evocar três maneiras satisfatórias.

1. A Igreja, enquanto sacramento do Reino, está no mundo “para permitir que Jesus Cristo perpetue na história da humanidade a forma evangélica da salvação”.

Essa forma consiste em visibilizar ou mostrar com a vida o que Jesus disse e fez. Sem testemunho e obras concretas, a Igreja é sal que perdeu sua força, que “de nada mais serve que ser pisado pelos homens” (cf. Mt 5, 13). Como sacramento do Reino, a Igreja só será sinal de salvação, na medida em que for também seu instrumento. Por isso, a missão da Igreja é continuar a obra redentora de Jesus, dizendo o que ele disse, fazendo o que ele fez, vivendo como ele viveu.

2. Ela está no mundo “para fazer com que a forma evangélica de salvação chegue a um maior número possível de pessoas”.

Esta é a missão da Igreja: “ide pelo mundo inteiro. E anunciai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). A forma evangélica de salvação, que pela Palavra revelada e os sacramentos é uma forma privilegiada, foi dada à Igreja para ser comunicada a todos os povos, de todos os tempos e lugares. Em outras palavras, esta “objetividade” não é propriedade da Igreja e nem ela pode guardar para si. Ela a recebeu, no Espírito, para ser partilhada com toda a humanidade – “recebestes de graça, dai de graça” (Mt 10,31). Por isso a Igreja é essencialmente missionária, uma “Igreja em saída”, cuja missão é “tornar presente o Reino de Deus no mundo” (EG 172). 

3. A Igreja está no mundo “para que seja comunitariamente partilhada a responsabilidade de anunciar o Evangelho do Reino”.

Enquanto realidade coletiva, o Reino de Deus só é autenticamente anunciado quando mostrado com a vida, quando respaldado pelo testemunho de uma vivência comunitária da fé. A fé cristã é inter-relação com Deus, com os irmãos e com a criação. Diz o Vaticano II que Deus quis nos salvar em comunidade, como povo. O Reino é uma realidade coletiva, a vivência fraterna da justiça, da paz e do amor. Quem acolhe o Reino inaugurado por Jesus, adere a uma comunidade de fé, de vida e missão. A Igreja é uma forma especial desta comunidade, por isso é seu sacramento, seu sinal e instrumento.

Sobre o autor:

Agenor Brighenti

Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.

Fonte:

www.amerindiaenlared.org