O Reino de Deus, de promessa no Primeiro Testemento, se fez realidade com Jesus de Nazaré. O Messias esperado o inaugura e o anuncia ao povo de Israel e aos gentios. Sobretudo por meio de parábolas, o Reino ocupa um lugar central e hegemônico na pregação e na obra do Nazareno.
Entretanto, com sua morte e ressureição, a mensagem por ele propagada é colocada num novo contexto. Como se tem agora de reafirmar que Jesus era o Messias prometido e que ele vive, o pregador tende a tornar-se o pregado e o Reino passará a ser identificado com a Igreja, quando na realidade ela é seu sacramento e mediação.
Da centralidade do Reino à centralidade das virtudes
Diferente dos evangelhos sinóticos, em cujo centro da mensagem cristã está o Reino de Deus inaugurado e pregado por Jesus, particularmente em João e em Paulo, o centro tende a ser o Cristo ressuscitado e a vivência das virtudes.
Prova disso é que o Reino de Deus, colocado na boca de Jesus mais de 100 vezes nos evangelhos, em todos os escritos paulinos aparece apenas 11 vezes. Além disso, foi-se interpretando o Reino segundo a cultura dos interlocutores do anúncio. Por exemplo, além de Paulo deslocar o Reino para o “futuro último”, para além da história (1Cor 6,10), o compreende a partir de categorias “moralizantes” – segundo uma lista de virtudes e vícios, enfatizada pela filosofia popular grega, especialmente o estoicismo. Para Paulo, os que não vencerem tais vícios, “não herdarão o Reino dos céus” (1Cor 6,9).
Enquanto que para Jesus a centralidade da mensagem está no Reino de vida e felicidade para todo o gênero humano já a partir desta vida, em Paulo o centro da mensagem cristã é o pecado e a vitória sobre os vícios, acompanhados de forte apelo ao desprezo da matéria, do corpo, do amor humano e da sexualidade. Com isso, se dá o deslocamento da centralidade do Reino (tema dos evangelhos sinóticos) para a centralidade da virtude (tema da filosofia helenista).
Isso não quer dizer que Paulo adulterou a mensagem de Jesus. Mas, a passagem do cristianismo do mundo judeu ao mundo helênico contribuiu para uma interpretação do Reino segundo o contexto dos novos interlocutores. E esta compreensão não só entrará no cristianismo, como se tornará preponderante. Isso mostra que a fé transmitida e que chegou até nós, não vem só de Jesus, mas é uma mescla de mensagem evangélica, tradições judaicas do Primeiro Testamento e de fortes doses de cultura helenista ou greco-romana.
De uma Igreja servidora a uma Igreja absorvedora do Reino
A Igreja no Oriente, conforme atestam os escritos dos Santos Padres, ainda que tenha colocado em evidência uma compreensão do Reino de Deus com traços espiritualistas, sempre o distinguiu da Igreja. Já a Igreja no Ocidente, ao trazer o Reino para a intra-história, tenderá a identificá-lo com a Igreja.
Santo Agostinho vai falar da Igreja como regnum Christi (reino de Cristo) e regnum coelorum (reino dos céus), que neste mundo é regnum militiae (reino militante) e, portanto, aguarda sua consumação na escatologia final. Para ele, a Igreja se identifica com o reino milenário do Apocalipse (Ap 20,4), sendo a última forma da civitatis Dei peregrinans (cidade de Deus peregrinante).
Com isso, a Igreja, em lugar de “sacramento do Reino” e mediadora da salvação de Jesus, passa a ser “absorvedora” e não “servidora” do Reino de Deus.
Na Idade Média, é a teologia de Santo Agostinho que no plano sócio-político dará suporte ao modelo de cristandade, no qual se vai fazer uma interpretação política do Reino de Deus: na Igreja, o imperador é o “novo Davi”, que toma “as rédeas do senhorio régio”; já o papa é o “novo Moisés”, cuja soberania deriva da participação na realeza de Cristo. Com isso, a Igreja, ao absorver o Reino, se torna autorreferencial, reafirmando que fora dela não há salvação.
Na Reforma protestante, a doutrina de Lutero assume a teologia de Agostinho, enfatizando a existência de dois reinos: o Reino de Deus, um reino espiritual, essencialmente invisível, no seio do qual se dá a justificação pela fé; e, o reino mundano, que é a lei, do qual o cristão deve tomar distância. Por sua vez, para a contra-Reforma, tal como concebe Inácio de Loyola, o Reino de Cristo se identifica com a Igreja, por isso, ela é santa e divina, não peca e não erra: “é sem dúvida impossível que Cristo permita alguma vez em sua Igreja um juízo propriamente errôneo sobre alguma coisa discutida” (Exercícios Espirituais, n. 35).
Na Idade moderna, como a teologia fica atrelada à concepção de Santo Agostinho, são a cultura e as ciências, em especial a filosofia, que tentam trazer o Reino de Deus do espiritual para o concreto da história. Afirma-se que religião é alienação e que felicidade e a vida em plenitude dependem de uma nova sociedade fundada na justiça, na paz e no amor, a qual o ser humano deve fazer acontecer com seu trabalho. Crê-se que o futuro está ao alcance da humanidade, nesta vida. O Reino não é de Deus, mas do ser humano e está ao seu alcance, por sua intervenção na história.
Na Idade contemporânea, a teologia se renova, passa a distinguir novamente Igreja de Reino de Deus e colocar em evidência que o Reino é espiritual e concreto; tem sua plenitude na outra vida, mas começa nesta vida; tem uma dimensão transcendente, mas é também imanente; tem um “ainda não” e também um “já”.
A teologia latino-americana dirá que o Reino é plenitude de vida e salvação, já a partir desta vida, pois o fim que se espera, deve-se ir antecipando, o máximo possível na história, cujos destinatários privilegiados, na perspectiva das bem-aventuranças, são os pobres e os excluídos.
Sobre o autor:
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.
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