Em uma série de dez artigos, vamos nos debruçar sobre a concepção de Igreja (eclesiologia) do Concílio Vaticano II. É importante revisitar o Concílio, pois, como denunciaram os bispos da América Latina em Aparecida, nos dias atuais, há “algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Vaticano II” (DAp 100b). É um alerta sério, pois estão ao nosso redor modelos de Igreja e modelos de pastoral esclerosados, expressão de um passado sem retorno.
O Concílio Vaticano II não mudou a Igreja, em sua volta às fontes bíblicas e patrísticas, apenas resgatou o modelo de Igreja neotestamentário, que se havia perdido de vista, desde o início da Idade Média, situando-o no tempo presente.
Não vamos abordar, aqui, a eclesiologia do Vaticano II como um todo. Vamos nos restringir ao tripé que lhe dá fundamento, que é o trinômio Reino-Igreja-Mundo. Concretamente, faremos uma abordagem teológica e pastoral de cada uma destas categorias, para depois relacionar a Igreja com o Reino de Deus e também com o Mundo.
A Igreja como “gérmen e princípio” do Reino
Depois do Concílio Vaticano II, já não se pode conceber o “ser” e a “missão” da Igreja, fora do trinômio Reino-Igreja-Mundo. A Igreja, em seu modelo neotestamentário, está intrinsicamente unida ao Reino de Deus e ao Mundo. Por um lado, a Igreja é sacramento do Reino e, por outro, está inserida no mundo, onde precisa torná-lo presente. Não é o Reino e o mundo que estão na Igreja, mas é a Igreja que está no Reino de Deus e no mundo.
Com relação à Igreja enquanto parte do Reino, diz o Vaticano II:
“… a Igreja, enriquecida com os dons de seu fundador, observando fielmente seus preceitos de caridade, de humildade e de abnegação, recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em meio a todas as pessoas, e constitui na terra o gérmen e o princípio deste Reino” (LG 5,2).
E, enquanto parte do mundo, afirma o Concílio:
“… a Igreja existe neste mundo e com ele vive e age” […] “composta de pessoas membros da cidade terrestre, chamadas a formarem já na história do gênero humano a família dos filhos de Deus” (GS 40, 1-2).
Assim, dado que o Reino é símbolo dos desígnios do Criador para toda a Criação, a Igreja também se remete ao mundo, para nele contribuir com a edificação de um Reino que a transcende. Da mesma forma que não há Igreja sem Reino de Deus, também não há Igreja fora do Mundo. Pretender colocar-se fora do Mundo, é continuar dentro dele de forma alienada. E mais que isso, além de não poder sair do Mundo, a Igreja existe para a “salvação do mundo”. Segundo o papa Francisco, a Igreja existe para evangelizar, que consiste em “tornar presente o Reino de Deus no mundo” (EG 72).
O eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo
Foi no tripé Reino-Igreja-Mundo que nasceu a Igreja de Jesus, sob o dinamismo do Espírito em Pentecostes, e deste modo se fez presente em seu caminhar histórico, até o final do século IV. Entretanto, por razões que veremos mais adiante, a partir do século V, gradativamente, deu-se na Igreja o eclipse do Reino de Deus e a fuga do mundo (fuga mundi), que se prolongou até a realização do Vaticano II.
Com a volta às fontes bíblicas e patrísticas, o Concílio resgatou o modo de ser Igreja segundo o modelo normativo neotestamentário. De uma Igreja servidora do Reino no mundo, a Igreja tinha se tornado absorvedora do Reino e também do mundo. Tornou-se uma Igreja auto-referencial, quando na realidade ela é o sacramento histórico-salvífico de um Reino que não acontece somente na Igreja como comunidade socialmente constituída pelos batizados. Menos ainda na interioridade secreta da consciência, mas se produz na concretude da realização do amor ao próximo, já a partir deste mundo, apesar da ambiguidade da história, em suas objetivações empiricamente perceptíveis.
Reino e mundo são constitutivos da Igreja
O Concílio Vaticano II pôs em evidência que o Reino de Deus é mais amplo do que a Igreja e está presente para além de suas fronteiras. A Igreja é uma de suas mediações, ainda que privilegiada, pois dispõe dos sacramentos e da Palavra Revelada, mas não a única. Consequentemente, enquanto servidora de um Reino que ultrapassa suas fronteiras, seu raio de atuação vai além do espaço intra-eclesial, abarca o mundo. A Igreja existe para testemunhar e edificar o Reino de Deus no mundo, juntamente com outras Igrejas, religiões e pessoas de boa-vontade.
Assim, como gérmen e princípio do Reino de Deus na concretude da história, a missão da Igreja não é deste mundo, mas se dá “no” mundo e “para” o mundo. O cristão não é tirado do mundo, ao contrário, é chamado e enviado para a salvação do mundo. Dado que Deus enviou seu Filho para salvar o mundo, a Igreja só é mediação da salvação de Jesus Cristo no mundo, na medida em que, com sua ação evangelizadora, o assume e contribui com sua redenção. Consequentemente, o mundo não é indiferente ao cristão, nem exterior ou separado de uma suposta “vocação celestial”, pois é no mundo que acontece a salvação. Só quando a Igreja se encarna no mundo, torna-se sacramento da salvação do mundo, que é o Reino de Deus, que começa neste mundo e encontra sua plenitude no outro mundo vindouro.
Sobre o autor:
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM. Foi um dos peritos da equipe de sistematização do Sínodo para a Amazônia.
Fonte:
Mais uma excelente contribuição do Pe. Brighenti para a reflexão sobre o papel da Igreja – e nosso – na construção / manifestação do Reino inaugurado por Jesus. Vamos acompanhar os demais artigos da série.