“O tradicionalismo como barreira para a vivência da fraternidade universal proposta pela Fratelli Tutti”, com a palavra Alisson Cosme Cesar e Gustavo Ammar de Sousa

O texto a seguir foi elaborado pelos alunos Alisson Cosme Cesar e Gustavo Ammar de Sousa para o seminário promovido pela disciplina Pedagogia Dialógica Participativa, Corresponsabilidade e Ação Pastoral, ministrada pelo prof. dr. Edward Guimarães.

Confira:

O tradicionalismo como barreira para a vivência da fraternidade universal proposta pela Fratelli Tutti

Alguns acham que a tradição é um museu de coisas antigas. Gosto de repetir o que disse Gustav Mahler: ‘A tradição é a salvaguarda do futuro e não a custódia das cinzas. (FRANCISCO, Discurso no final da Assembleia Sinodal 26/10/2019)

INTRODUÇÃO

No atual momento vive-se uma situação de instabilidade causada por alguns movimentos que distorcem a noção sobre a Tradição da Igreja. Esta situação gerada atrapalha mudanças que são propostas pelo tempo em que vivemos. O papa Francisco, atento às necessidades da humanidade no período atual, por meio da Carta Encíclica Fratelli Tutti indica um caminho no qual a Igreja deve estar aberta ao diálogo e a disposição de viver a fraternidade universal. Este cenário proposto pelo papa Francisco contrasta com a doutrina pautada no eclesiocentrismo pregada pelos tradicionalistas.

Para confecção deste trabalho nos utilizaremos como base para compreendermos sobre as origens e os principais pensamentos do tradicionalismo o capítulo 2 do livro A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões. Escrito por João Décio Passos. Para compreensão sobre a ligação deste tema com a Carta encíclica Fratelli Tutti serão utilizados outros três textos, a saber: Comunicação na Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. Escrito por dom Joaquim Giovani Mol Guimarães. Solidariedade: considerações à luz da encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco. Escrito por Claudiano Avelino Santos. Fratelli Tutti: um guia para a leitura da encíclica do Papa Francisco. Escrito por Antônio Spadaro.

DESENVOLVIMENTO

1. Algumas considerações sobre o tradicionalismo

1.1. Origens do tradicionalismo

Antes de adentrarmos de forma mais profunda no assunto relacionado ao tradicionalismo, é necessário fazer uma distinção entre o tradicionalismo e a Tradição. Quando se fala de tradicionalismo, o conceito sobre esse assunto está ligado a preservação de práticas exercidas em um determinado período de tempo. A Tradição por sua vez está ligada ao conteúdo e a forma como a fé é vivida e praticada ao longo da história.

Com isso pode-se concluir que a Tradição não é o ato de repetir práticas executadas em um determinado período de tempo e que pertencem apenas a esse período. A Tradição é sempre crescente, ou seja, progride com os desafios que lhe são impostos pelos tempos em que se situa, e busca sempre respostas e meios de lidar com os novos desafios. A Tradição não se intimida com as mudanças que acontecem naturalmente com o passar dos tempos, mas se utiliza delas para se tornar mais forte.

Neste sentido, o tradicionalismo age de uma forma inversa a Tradição. O tradicionalismo refuta qualquer forma de avanço na maneira de pensar e agir da sociedade. Com isso, quando a sociedade enfrenta questionamentos sobre novos costumes e hábitos sendo adquiridos pelas novas gerações, aqueles que seguem a linha tradicionalista se levantam contrários a essas mudanças.

A origem do tradicionalismo católico remonta do período da revolução francesa (1789 –1799). Um período histórico marcado por intensas mudanças. A partir desse momento histórico, a sociedade européia que possuía como principal referencia a religião, de modo especial o catolicismo, começa a colocar como referencial o próprio sujeito. Este é o processo que passa de uma sociedade teocêntrica para uma sociedade antropocêntrica.

Inicialmente o tradicionalismo francês foi criticado pela Igreja. Porém, com o passar dos anos e a perda constante de poder temporal por parte da Igreja, ou seja a diminuição do poder papal, isto através do processo de unificação da Itália, a perda dos estados pontifícios, o discurso dos Papas contra a modernidade se tornou mais intenso, promovendo durante um período um discurso antimodernista por parte da Igreja. Este discurso é utilizado até os dias atuais por aqueles que seguem a linha tradicionalista.

1.2. Principais fundamentações do tradicionalismo

Neste período de grande defesa por parte da Igreja da manutenção de seu poder temporal, estão presentes as principais fundamentações para os atuais tradicionalistas. Pode-se dizer que possuem três fontes principais de fundamentação de seu pensamento antimodernista: os concílios modernos, os documentos papais deste período e a escolástica.

Os chamados concílios modernos são aqueles que aconteceram como objetivo de controlar os impactos que os avanços da modernidade provocavam na Igreja. São eles os concílios de : V Latrão, Trento e Vaticano I. Estes concílios reafirmam as tradições da Igreja, realçando sua dimensão sacramental, ritual e hierárquica. Estes concílios enfatizam a questão doutrinária da Igreja.

Os documentos papais deste período foram escritos com o intuito de reafirmar o conteúdo destes concílios anteriormente mencionados. A temática desses documentos é variada, porém o objetivo é semelhante: defender a Igreja dos perigos oriundos dos tempos modernos, diante disso o discurso presente nesses documentos possui em geral um caráter eclesiocêntrico.

O principal modelo teórico utilizado para a propagação das idéias teológicas deste período e ainda hoje utilizado pelos adeptos do tradicionalismo é o da escolástica. Este modelo que se utiliza de ideias provenientes da tradição bíblico cristã e das filosofias gregas, sobretudo oriundas das correntes platônicas, estóicas e aristotélicas. O método escolástico influencia fortemente a teologia dos manuais, ou seja, aquela forma de se fazer teologia pronta, de cima para baixo, onde apenas se repetem os manuais produzidos previamente e autorizados pelas autoridades eclesiásticas.

2. Algumas considerações sobre a Carta Encíclica Fratelli Tutti

A Fratelli Tutti tem por objetivo o convite para a construção de um novo mundo onde todos sejam irmãos por meio da fraternidade e da amizade social. É uma carta encíclica datada em 3 de outubro de 2020, em que os elementos da Doutrina Social da Igreja e a Laudato Si’, estão profundamente presentes com o intuito de promover uma grande comunicação que seja capaz de gerar uma consciência planetária no cuidado com esta casa comum que é a Terra e a promoção da dignidade humana por meio da cultura do encontro, do diálogo e da abertura ao irmão construindo pontes ao invés de muros neste mundo.

Esta carta encíclica quer superar a cultura de ódio, indiferença, discriminação, preconceitos, tudo o que é mal e ruim presente na sociedade. Tudo que é capaz de destruir o ser humano, a família e o planeta. Quer acabar com tudo o que possa tirar a humanidade da pessoa criada para fazer o bem e não o mal. Sonhar uma única humanidade e que somos todos irmãos é o que deseja o papa Francisco.

Os problemas globais, tais como: racismo, desemprego, cultura do descarte, aborto, armamento, fome, miséria, a lógica capitalista de mercado, consumismo e a grande desigualdade social que não possibilita oportunidades de mudança e crescimento humano, impedem a vivência da fraternidade que precisa ser restaurada, segundo os valores do evangelho, para que esta mudança de pensamento ocorra.

A capacidade de amar é o que humaniza. É o bem capaz de mudar as pessoas e o meio de colocar em prática no mundo a Fratelli Tutti. Uma Igreja em saída, que rompa com o egoísmo e se abra ao próximo e ao mundo, é uma importante chave de leitura nesta carta. Ninguém é estranho neste mundo, não há estrangeiro, é necessário derrubar o muro da indiferença a fim de promover a paz, a acolhida, a boa política que zele pela vida, pelo bem comum, pelo desenvolvimento humano integral e não pelos interesses pessoais, pela morte, pelo ódio e pela guerra entre as nações. Um mundo mais justo e humano só será possível de ser realizado quando o ser humano for capaz de amar e respeitar.

Sendo assim por meio do aqui foi sintetizado a luz desta carta encíclica e por meio do conteúdo estudado nesta disciplina, a solução para tudo é voltar à fonte, ao amor que, para nós cristãos, é identificar-se com a pessoa e os ensinamentos de Jesus Cristo. Este é o caminho essencial para a fraternidade universal e crucial para romper com toda indiferença e egoísmo a fim de construir um mundo mais justo, humano e digno, em que todos, de fato, sejam irmãos.

3. Barreiras colocadas pelo tradicionalismo à aplicação da fraternidade universal proposta pela Fratelli Tutti

O tradicionalismo possui algumas bases doutrinais que são comuns a todos os seus grupos. Dentre estas se podem destacar algumas que conflitam diretamente com a ideia de uma Igreja dialogal. Portanto, uma Igreja que está aberta a ouvir e aceitar diversas manifestações que a sociedade tem como necessidades de ser pelo menos debatidas junto a Igreja. Dentre estas bases doutrinais podemos destacar a busca por uma sociedade cristã, o eclesiocentrismo e uma moral objetivista.

O tradicionalismo enfatiza a busca por uma sociedade cristã. Esta busca se dá com a justificativa de que a salvação e implementação do Reino só se dará se a sociedade como um todo for submissa ao cristianismo. Mas não no sentido das ideias do cristianismo, porém no sentido de uma submissão institucional à Igreja. Por isso pode-se afirmar que o tradicionalismo prega um eclesiocentrismo. Nesse sentido, no modelo tradicionalista a única fonte da verdade é a Igreja católica. Portanto aqueles que dela fazem parte não precisam exercitar o diálogo com os que pensam diferente para chegar à verdade, mas apenas para convencê-los da verdade. Esta verdade do tradicionalismo que se pauta em um modelo de moral objetivista. Este estilo de moral se caracteriza por impor regras de comportamento sem levar em consideração a necessidade e o momento em que o outro vive. Todos devem viver de forma igual a moral, sobretudo em relação a sexualidade, e aqueles que não se adéquam a este modelo, estão condenados ao inferno.

Com isso, a mentalidade importada do tradicionalismo torna-se uma barreira para a implementação da Fratelli Tutti, uma vez que as ideias centrais do papa Francisco nesta encíclica direcionam a Igreja para uma abertura a compreender as principais necessidades da sociedade mundial, para então viver uma verdadeira fraternidade universal.

PARA REFLETIR…

1. Diante de tantas polaridades presentes na Igreja, como colocar em prática a Fratelli Tutti?

2. O que se esconde por meio de um pensamento conservador que é incapaz de acolher a Fratelli Tutti?

CONCLUSÃO

A Fratelli Tutti tem por objetivo promover a fraternidade e a amizade universal tendo em vista a construção de um mundo mais justo, humano e digno para todos. Diante de uma realidade cruel de desigualdade, preconceito, exclusão, racismo, indiferença, fome, miséria e tantos outros males que afligem o mundo, a Fratelli Tutti tem por objetivo amenizar estas indiferenças, fazendo com que todos sejam irmãos e irmãs. Proposta ousada que gera reflexão e que na atualidade é o papel da Igreja.

Uma Igreja em saída, capaz de ir ao encontro do próximo, rompe com o egocentrismo e faz abrir-se à alteridade. Uma Igreja toda ministerial faz romper com o clericalismo e com o tradicionalismo fazendo emergir a consciência de cristãos batizados dispostos a evangelizar. Uma Igreja Sinodal, que busca o diálogo consigo mesma e com a sociedade é a chave para estar presente no mundo e não se acovardar diante dos problemas sérios que ferem a humanidade, além do fato, de não temer diante dos problemas que ferem a sua moral e a ética.

Estas propostas, muitas delas colocadas em prática, como o Sínodo da Amazônia, o ministério do catequista e o motu próprio Traditionis Custodis, faz com que a Igreja permaneça unida e que esteja presente no mundo evangelizando e avançando. A Economia de Clara e Francisco também muito contribui para que a solidariedade, o respeito a vida, a natureza e a ajuda mútua sejam colocados em prática, bem como a eficácia da ética e moral. Esta é a fraternidade universal e a Igreja que vivo, anuncio e desejo que os cristãos conheçam e vivam a fim de sermos todos irmãos em Cristo Jesus, filhos de um único Pai.

Alisson Cosme Cesar

Ao evidenciar as bases da fundamentação teórica do tradicionalismo, consegue-se compreender um pouco o porquê do fechamento destes grupos às novas realidades. Este fechamento se dá por trazer de volta um período que já foi superado, onde a Igreja católica e o cristianismo tiveram que enfrentar uma mudança de postura frente a sociedade que já não os enxergava como antes. Porém, apesar da compreensão do porquê deste fechamento em um determinado período histórico, deve-se ressaltar que este período já passou e os problemas enfrentados pela pastoral nos tempos atuais são outros, pois a forma como o ser humano compreende aquilo que está ao seu redor.

Como propostas para superarmos essas barreiras, tendo em vista que o tradicionalismo é um problema que gira em torno do eclesiocentrismo e este por sua vez na maioria de suas incidências provém do clericalismo, poderia ser uma forma de enfrentamento do problema uma mudança de paradigma na formação sacerdotal, com ênfase maior na Igreja enquanto Povo de Deus.

Outra alternativa seria em relação a catequese de iniciação cristã, onde nas bases das comunidades poderia se trabalhar a mentalidade cristã para uma vivência do evangelho de forma inclusiva e que se aceite o outro.

Além disso, poderia se criar uma conscientização entre os pregadores em geral, sobretudo àqueles de maior destaque nas grandes mídias para a pregação de um cristianismo que se preocupa em promover as pessoas através dos seus valores, que são a paz, a inclusão, o amor, diferente de pregações onde se tem como principal objetivo uma uniformização da sociedade no âmbito dos costumes.

Gustavo Ammar de Sousa

REFERÊNCIAS

GUIMARÃES, Joaquim Giovani Mol. Comunicação na Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. Vida Pastoral, São Paulo, nº339, p. 5-15, maio-junho de 2021.

PASSOS, João Décio. A força do passado na fraqueza do presente: O tradicionalismo e suas expressões. Paulinas, São Paulo, 2020.

SANTOS, Claudiano Avelino. Solidariedade: considerações à luz da encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco. Vida Pastoral, São Paulo, nº339, p. 17-23, maio-junho de 2021.

SPADARO. Antônio. Fratelli Tutti: um guia para a leitura da encíclicado papa Francisco. Unisinos, 2021. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603448-fratelli-tutti-um-guia-para-a-leitura-da-enciclica-do-papa-franciscoartigo-de-antonio-spadaro. Acesso em: 04/08/202