O testamento de Josué apelo à fidelidade e à sinodalidade

Mês da Bíblia 2022 (3/3)

Este é o terceiro texto de uma série em que condensamos uma reflexão em torno do livro de Josué, escolhido para o Mês da Bíblia 2022. Você pode ter acesso aos anteriores neste site: 1. Deus está com você; 2. A hospitalidade e a nova organização da terra.

“Seja firme e corajoso, não tenhas medo”

Josué é descrito como o juiz, o líder do povo de Deus, que não perde a sintonia e o foco do projeto do Deus Libertador. Sente, quando o povo se desvia deste projeto. Ele se penitencia, diante da derrota da primeira arrancada contra Hai, e usa de franqueza com Deus (Js 6, 3-8). Em sua vida, martelava aquele mantra: “Seja firme e corajoso, não tenhas medo”. Ele tinha certeza que, sendo fiel à Palavra de Deus, ele e o povo seriam bem sucedidos, em todos os empreendimentos (cf. Js 1, 6-9).

Josué, no exercício de sua liderança, zelava pela memória da caminhada do povo e pela fidelidade a Deus. Aí estava a garantia da promessa feita aos antepassados, e a certeza da vitória nas lutas e conquistas do povo. Esta memória, sempre viva, dava sustentação na caminhada do presente, e firmava o esperançar no futuro. Sentindo o peso da idade, e vivenciando a responsabilidade da sua missão de animar o povo a perseverar na caminhada, Josué convoca todo Israel, com seus anciãos, chefes de família, juízes e oficiais, para uma assembleia, onde ele iria deixar o seu Testamento.

O Testamento de Josué não é de coisas materiais. É o testemunho da sua experiência de fé; da certeza da presença de Deus na caminhada do povo; e da fidelidade a Deus, que garantia a conquista da terra e a permanência do povo nela. Josué deixa, no seu Testamento, a recomendação, para que o povo seja sempre fiel à lei de Deus. Não se desviar dela, nem para um lado e nem para outro. Ela é o foco, que vai nortear toda a caminhada do povo. Josué recomenda ao povo muito cuidado, para não cair na idolatria, adorando deuses falsos. Eles têm propostas bonitas, mas são falsos e enganadores. Por isso, recomenda: “apeguem-se unicamente a Javé, seu Deus” (Js 23, 8).

 

“Amem a Javé, seu Deus”

Em seu Testamento, a preocupação de Josué é que o povo não se acomode, e não reproduza o sistema opressor, que tira a vida e a liberdade do povo. O miolo, o cerne de seu Testamento é este: “Amem a Javé, seu Deus” (Js 23, 11). No entanto, se o povo for infiel a Deus que o libertou, e se misturar com a idolatria das nações vizinhas, Javé usará esta infidelidade como chicote, nas mãos dos inimigos, para surrar seu povo; e como espinhos, nos seus olhos. Fica claro, no Testamento de Josué, que o destino do povo está nas mãos do próprio povo. Isso nos aponta para as eleições deste ano de 2022. Nossa participação nesse processo e nosso voto podem ser uma ferramenta, para recuperar a dignidade de vida do povo, favorecer oportunidade de Terra, Teto e Trabalho para todos; pode ajudar a defender e proteger a Mãe Terra. Por isso, não podemos perder nem o rumo e nem o prumo do Deus libertador. Onde vamos reconhecer a presença de Deus, acima ou no meio do povo? O Deus que, na Bíblia, caminhou com seu povo, na posse da terra, deseja o quê para seu povo, hoje?

O Testamento de Josué é ainda muito oportuno, para uma avaliação das lideranças de nossas Comunidades e da Sociedade em geral. Um líder deve ter o senso do coletivo, o foco no bem comum; deve ser capaz de partilhar as decisões a serem tomadas. Ter o sentimento do povo marginalizado, e não das elites. Isto é possível, quando, a exemplo de Josué, o líder cultiva a contemplação de Deus, procura Deus nas pessoas, nos fatos, nos acontecimentos. Quando cultiva a intimidade com a Palavra de Deus, meditando-a e guardando-a e seu coração, para guiar suas ações e decisões. Ser ativo participante, na reflexão da Palavra na Comunidade. Líder é todo aquele/a que conduz a Arca da Aliança, quer dizer, a Palavra de Deus, nas atividades e lutas da Comunidade, independentemente de ter ou não um cargo específico.

 

Assembleia de Siquém, apelo à sinodalidade

O livro de Josué termina com um grande acontecimento: a Assembleia de Siquém, onde é celebrada a Aliança de compromisso do povo com Deus. Esta Aliança de Siquém nos lembra a Aliança do Sinai, que celebrou o Êxodo, o movimento de libertação da escravidão do Egito. Agora, trata-se da conclusão do movimento da Conquista e Partilha da Terra com esta Aliança. Esta Assembleia começa, com um relato da memória da ação de Deus, caminhando, libertando e promovendo a vida de seu povo. Um relato que traz à memória os patriarcas; menciona a liderança de Moisés, na caminhada do Êxodo e do deserto; lembra a ação de Deus, na derrota dos inimigo; e a conquista da Terra fértil. Este capítulo procura valorizar o passado, atualizar a ação de Deus na vida do povo (presente) e acenar para um futuro de união e fraternidade.

Josué reúne as 12 tribos de Israel, convoca os anciãos, os chefes, os juízes, os administradores e fala a todo o povo. Ele destaca que a mão protetora de Deus acompanhou toda a trajetória de conquista da terra, e garantiu o sucesso.

Na liderança de Josué, é interessante notar como ele procurava sempre despertar a memória do povo: Abraão e sua descendência (Js 24, 3-4); Moisés e a saída do Egito (Js 24, 5-7); a travessia do Jordão (Js 24, 8-10); a tomada de Jericó (Js 24, 11-13). Procurava mostrar que Deus é o referencial, é o foco que o povo não podia perder. Zelava sempre pela fidelidade do povo a Deus, que nunca descuidava de seu povo. Incentivava o povo a fazer a faxina de tudo que era sinal de idolatria, quer material, quer de ideia.

A pauta principal da Assembleia de Siquém foi a proposta colocada por Josué ao povo reunido: Escolher ser fiel a Deus e a seu projeto, deixando de lado as idolatrias dos povos vizinhos. Josué é muito firme em sua liderança; e arremata, dizendo: “Escolham hoje a quem vocês querem servir”; e dá o seu testemunho: “Quanto a mim e à minha família, serviremos ao Senhor!” (Js 24, 15). Diante desta decisão, o povo, a uma só voz, assume o compromisso de fidelidade ao Senhor: “Longe de nós, abandonarmos o Senhor, para servir a deuses estranhos” (Js 24, 16). Josué lembra ao povo que compromisso com Deus é coisa séria. Com Deus não se brinca. Ele lembra ao povo que Deus é fiel na sua Aliança, não aceita concorrência. No livro de Josué, se oficializa o culto a um único Deus. Um Deus ciumento, um Deus da memória.

No entanto, é importante lembrar que o Livro de Josué teve a sua redação final, depois do Exílio da Babilônia. A causa do povo ter perdido a terra e voltado para a escravidão foi o esquecimento da Aliança, foi ter esquecido a Deus. O Livro tenta ajudar o povo a voltar à sua fidelidade a Deus. Não tem como, andar em dois caminhos: ou levamos à frente a construção de uma sociedade justa e fraterna, onde todos tenham vida e liberdade; ou vamos reforçar um sistema de morte, onde o povo é reconduzido à perda de seus direitos trabalhistas, de seus direitos previdenciários, de sua dignidade no trabalho, enfim, a uma nova forma de escravidão.

Em cada momento da história, Deus suscita lideranças, para a defesa e garantia da vida de seu povo. Deus criou o mundo para todos. Ele nos oferece uma vida digna. Quer que sejamos felizes, já neste mundo. Ele quer que todos tenham acesso à terra, teto e trabalho. Quer vida em abundância para todos os seus filhos e filhas. A história do povo de Deus é um espelho para nós. Assim como eles reconheceram a mão de Deus, agindo a favor da vida do povo, nós também somos chamados a abrir os olhos e reconhecer, no hoje de nossa história, a mão operosa e generosa de Deus, agindo no meio de nós. O Senhor continua a descer, para libertar o seu povo, e para conduzi-lo a dias melhores, à plena dignidade de filhos de filhas de Deus.

 

Do ontem para hoje

A pauta da Assembleia de Siquém é muito provocante, para o momento eleitoral que estamos vivendo. Também nós temos de tomar uma decisão. Que tipo de Sociedade estamos querendo: a que busca a vida prá todos, ou a que segue um projeto de morte? Uma sociedade onde todos tenham liberdade e qualidade de vida, sem tanta desigualdade, ou a que alimenta a violência, a injustiça, o ódio e o racismo? A nossa resposta será dada: no nosso compromisso com a defesa da vida, e nas urnas. É preciso alargar a visão, iluminar os olhos da mente e do coração, para compreendermos a esperança, à qual o Senhor nos chamou e chama (cf. Ef 1, 18).

A Assembleia de Siquém nos lembra da importância de caminhar juntos. Este é o desejo de Deus para nós e para toda a Igreja. Sínodo significa “caminhar juntos”. A nossa Igreja, conduzida pelo Papa Francisco, está nos lembrando que a Sinodalidade não é uma novidade, faz parte da natureza da Igreja. Recentemente, tivemos lampejos desta Sinodalidade: no Sínodo da Amazônia e na Assembleia Eclesial Latino-Americana e Caribenha. Precisamos caminhar juntos, na missão. É preciso ir pegando o ritmo, o dinamismo da Sinodalidade, a começar de nossos Conselhos Pastorais Comunitários, Paroquiais e Diocesanos, Conselhos Municipais de Saúde, Educação, Assistência Social e outros.

A Sinodalidade deve se converter, no nosso jeito de ser e de agir; deve fazer parte de nossa cultura. Somente um espírito sinodal e uma cultura sinodal serão capazes de transformar as nossas estruturas, para que sejam mais participativas. Por isso, precisamos sinodalizar nossas reuniões, nossas decisões, nossos Conselhos, nossas Pastorais, nossas Celebrações. Que tudo seja guiado pelo Espírito, que nos leva a caminhar juntos, decidir juntos, planejar juntos, avaliar juntos…

Para aprofundamento: A Sinodalidade está animando ou amedrontando as nossas lideranças? Por quê? O que podemos fazer para avançar, neste caminhar juntos?

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* Doutor em teologia, membro do grupo de pesquisa de Teologia Pastoral (FAJE) e da SOTER- Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. Redator da Revista O Lutador, Integrante do MOBON – Movimento da Boa Nova. Membro do Observatório de Evangelização – PUC Minas.