O real e o imaginário em nossos tempos: o sujeito contemporâneo e seus desafios cristãos.

Vivemos em um mundo conectado em informações, que são captadas e assumidas tendo como referência o grau de afeto/emoção que vivenciamos no momento. Por isso, se tendemos a acreditar em algum fato, mesmo que se comprove o contrário racionalmente, acabamos deixando aquela primeira impressão imperar. Esse é o mecanismo de surgimento de negacionismos. Se a rede (ou a bolha) que estamos inseridos afirma que a terra é plana, não importa se os cientistas dizem que o contrário. Estamos na era do “acredito, logo existe”. A Razão tem andado sumida. Qual o problema dessa tendência? O problema é quando estamos em uma democracia. Na democracia, o real deve prevalecer. Ao mesmo tempo, a diversidade. Em uma democracia madura, mesmo que tenhamos maioria de seguidores de uma religião, é preciso que os adeptos de religiões com menor número de seguidores, tenha seus direitos iguais. Por isso mesmo o caminho da Democracia Direta, quando existe maturidade social e política, é o melhor. Na Suíça, por exemplo, existem 4 idiomas oficiais (alemão, francês, italiano e romanche). Não é porque o romanche (língua derivada do latim, muito próxima à sua origem) é falado apenas por menos de 1% da população, que os documentos oficiais não aparecem na referida língua também. Uma proposta atual que irá a referendum também indica essa posição: a proposta de obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas. Curioso é que a maior parte da população não é mais praticante de alguma denominação religiosa (o cristianismo pela Europa, de um modo geral, não se oxigenou pelas novas realidades humanas, como o fez na América Latina). A proposta visa entender a diversidade religiosa trazida pelos refugiados, imigrantes, muitos seguidores do Islamismo. É só quando entendemos os menos favorecidos e excluídos que podemos alcançar um ideal de sociedade justa e ética.

Como seguir o real e evitar paranoias? Elas podem vir de todos os campos, inclusive religioso. Devemos nos abrir às alteridades, aos outros. Sair de nossa bolha e entender outras formas de vida é um caminho. De vez em quando dar uma volta em algum distrito onde a realidade é diferente da sede ou, para quem habita em cidades maiores, deixar seu condomínio e “visitar” o centro da cidade (vivo, real).

O sujeito hoje vive uma transformação, buscando alterar o inesperado em algo previsível, submetido constantemente à sua vontade. Vivemos a era dos excessos. Nesse contexto, o excesso funciona sempre como irrupção de algo que foge ao controle da vontade e que se impõe ao psiquismo como um corpo estranho. Dessa forma, a subjetividade se encontra diante de alguma instância que a ultrapassa. Diante desse cenário, a posição do sujeito é de apatia e consequente melancolia. No entanto, para dar conta desse problema, o psiquismo recorre à compulsão e à repetição, no intuito de circunscrever o caos. O que pretendemos com a repetição? Em um plano inconsciente, sua função é reproduzir o trauma, para que o psiquismo possa antecipar-se ao que não foi possível no passado. Aqui aparecem os sintomas, que não devem ser eliminados de forma abrupta, mas entendidos, nomeados e elaborados. O sintoma sustenta o sujeito. Por isso o risco que existe no consumo de medicamentos psicotrópicos de forma excessiva, pois o sintoma sai, mas com ele vai também o sujeito.

Hoje vivemos uma pobreza em simbolizações. As repetições são desprovidas de ideias e de elementos que possibilitem uma elaboração da subjetividade. Exemplo disso é o empobrecimento das manifestações estéticas, artísticas ou a qualidade e profundidade das propostas literárias.

O real deve orientar o debate político, devendo estar em consonância com os direitos fundamentais. A fome, a miséria, a educação, a saúde (e as lições da pandemia) devem estar em nossa memória. Os alemães têm, em suas diretrizes curriculares, a obrigatoriedade de uma visita pedagógica a um campo de concentração. Por aqui, nossas visitas deveriam ser às antigas prisões de povos africanos escravizados, aos órfãos da COVID-19, às terras e dores de Brumadinho e do Bento e tantas outras feridas expostas da nossa sociedade. O amor só pode ser vivenciado em sua alteridade, de forma relacional. Não é possível de forma narcisista e individualista. Por isso, fica a lição do aniversariante da semana, São Francisco de Assis: “Onde houver ódio, que eu leve o amor”. 

 

Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista semanal da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.