Um prefácio escrito pelo papa Francisco como impulso profético para a "primavera das pastorais sociais", das CEBs e dos movimentos populares

Apresentação

Fico particularmente muito feliz de abrir este volume, resultado da reflexão de muitas vozes, de um grupo de estudiosos de diferentes áreas e competências, que releram a experiência dos assim chamados “Movimentos Populares”, reconstruindo a gênese, os eventos, o desenvolvimento e o significado que teve esse ciclo de encontros com o Papa. Um acontecimento verdadeiramente sem precedentes na história recente da Igreja, da qual é útil recordar.

Esse arquipélago de grupos – associações, movimentos, trabalhadores precários, famílias sem-teto, camponeses sem-terra, trabalhadores ambulantes, vendedores de semáforos, artesãos de rua, representantes de um mundo de pobres, excluídos, não considerados, irrelevantes, que cheiram “a bairro, a povo, a luta” – representa, no panorama de nosso mundo contemporâneo, uma semente, um broto que, como a mostarda, dará muitos frutos: a alavanca de uma grande transformação social.

O futuro da humanidade “não está apenas nas mãos dos grandes líderes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos do povo, em sua capacidade de se organizar e também em suas mãos que regam esse processo de transformação com humildade e convicção ”[1].

Estes “movimentos de pequenos”, que eu defini como “poetas sociais”, homens da periferia, uma vez no centro, como está bem explicitado neste livro, com sua própria bagagem de lutas desiguais e sonhos de resistência, estão colocando na presença de Deus, da Igreja e dos povos, uma realidade frequentemente ignorada e que, graças ao protagonismo e a firmeza profética de seu testemunho, está vindo à luz. Pobres que não se resignaram em sofrer na própria carne uma realidade violenta de injustiça e exploração, mas, ao contrário, que escolheram, como Jesus dócil e humilde de coração, se rebelar pacificamente “de mãos nuas” contra ela. Os pobres não são somente os destinatários preferidos da ação evangelizadora da Igreja, os privilegiados de sua missão, eles são sobretudo sujeitos ativos. Por isso, em nome da Igreja, quero expressar minha mais sincera solidariedade a esta galáxia de homens e associações que anseiam pela felicidade do “bem viver” e não aquele ideal egoísta de “vida boa”. Quero acompanhá-los em sua histórica caminhada autônoma. Essa rede de movimentos transnacionais, transculturais e de várias culturas religiosas representa uma expressão histórica tangível, no modelo poliédrico [2], onde se encontra na base um outro paradigma social, o da cultura do encontro. Uma cultura que tem a ver com a outra, com a diferente de si mesma.

Do conteúdo deste livro, que espero sinceramente que ajude a muitos entender com profundidade e a dar maior visibilidade e significado ao valor dessas experiências, quero sublinhar brevemente alguns aspectos que me parecem muito importantes, na esperança de que as palavras que eu lhes dirigir contribuam para despertar nas consciências daqueles que governam os destinos deste mundo, um renovado senso de humanidade e de justiça, para mitigar as condições hostis nas quais os pobres vivem no mundo.

Os movimentos populares, e esta é a primeira coisa que quero sublinhar, na minha opinião, representam uma grande alternativa social, um grito profundo, um sinal de contradição, uma esperança de que “tudo pode mudar”. Em seu desejo de não se conformar com esse sentido único, centrado na tirania do dinheiro, mostram com a própria vida, com seu trabalho, com seu testemunho, com seu sofrimento que é possível resistir e agir com coragem, boas decisões e seguir na contramão. Gosto de imaginar esse arquipélago de “descartados” do sistema, que comprometendo o planeta inteiro, como “sentinelas” que – mesmo no escuro da noite – perscrutam com esperança um futuro melhor.

O momento em que vivemos é caracterizado por um cenário sem precedentes na história da humanidade, que tentei descrever através de uma expressão sintética que é necessário compreender: “mais do que uma época de mudança, vivemos uma mudança de época”, necessário para entender . Uma das manifestações mais evidentes dessa mutação é a crise transnacional da democracia liberal. Resultado da transformação humana e antropológica, produto da “globalização da indiferença”, à qual tenho mencionado tantas vezes, esta crise gerou um “novo ídolo”: o do medo e da busca de segurança, da qual hoje um dos sinais mais tangíveis é a familiaridade que tantos têm com as armas e a cultura do desprezo, características do nosso tempo, que um notório historiador de nosso tempo definiu como: “a era da raiva”. O medo hoje passou a ser o meio de manipulação das civilizações, o agente causador de xenofobia e de racismo. Um terror semeado nas periferias do mundo – com saques, opressões e injustiças – que explode como vimos em nosso passado recente também nos centros do mundo Ocidental.

Os movimentos populares podem representar uma fonte de energia moral, para revitalizar nossas democracias, cada vez mais claudicantes, ameaçadas e colocadas na mesa de discussão em inúmeros fatores. Uma reserva de “paixão civil”, de “interesse gratuito pelo outro”, capaz de regenerar um renovado senso de participação, na construção de novos agrupamentos sociais que enfrentem as demandas, mostrando uma consciência mais positiva do outro. O antídoto para o populismo e para a política do espetáculo espetáculo está no protagonismo dos cidadãos organizados, particularmente daqueles que acreditam – como é o caso de tantas experiências presentes nos Movimentos – em suas pelejas cotidianas, enquanto fragmentos de outros mundos possíveis, e lutam para sobreviver à obscuridade da exclusão social. Dessas batalhas “grandes árvores crescerão, densas florestas de esperança surgirão para oxigenar este mundo”.[3] Os Movimentos Populares mostram que a “força de nós” é a resposta para esta hegemônica “cultura do eu”, que olha apenas para a satisfação dos próprios interesses, pois, cultivam – apesar de sua própria precariedade – o sonho de um outro mundo possível, diferente e mais humano.

O crescimento das desigualdades, agora globalizadas e transversais – e desigualdades não apenas econômicas, mas também sociais, cognitivas, relacionais e intergeracionais – é unanimemente reconhecido como um dos desafios mais graves com os quais a humanidade terá que enfrentar nas próximas décadas. Fruto de uma economia cada vez mais separada da ética, que privilegia o lucro e estimula a concorrência, causando uma concentração de poder e riquezas, que exclui como “o pobre Lázaro” bilhões de homens e mulheres . O “presente” para milhões de pessoas hoje é uma condenação, uma prisão marcada pela pobreza, pela exploração, pela falta de trabalho, mas sobretudo pela ausência de futuro. Um inferno que devemos por fim.

Nesse sentido, os Movimentos Populares – com sua “resiliência” – representam uma resistência ativa e popular a esse sistema idolátrico, que exclui e degrada, e com a experiência deles fica claro que a rivalidade, a inveja e a opressão não são necessariamente agentes de crescimento – pelo contrário – mostram que a concórdia, a gratuidade e a igualdade também podem fazer o produto interno bruto crescer.

Os três T

O direito aos “três T’s”: terra, teto e trabalho, direitos inalienáveis ​​e fundamentais, representa os pré-requisitos indispensáveis ​​de uma democracia não apenas formal, mas real, na qual todos os homens, independentemente de sua renda ou posição na escala social, são protagonistas ativos e responsáveis, atores de seu próprio destino. Sem participação, como alguns autores mostram e argumentam bem neste livro, a democracia se atrofia, torna-se uma mera formalidade porque deixa as pessoas de fora da construção de seu próprio destino.

Quero dar uma palavra sobre o terceiro desses “T”, que segundo a Doutrina Social da Igreja é um direito sagrado. Nos últimos anos, o mundo do trabalho mudou vertiginosamente. As recaídas antropológicas dessas transformações são profundas e radicais, e seus efeitos não estão totalmente claros. Há muito tempo estou convencido de que, no mundo pós-industrial, não há futuro para uma sociedade em que haja apenas “dar para ter” ou “dar por dever”.

Trata-se de “criar uma nova via de saída à sufocante alternativa entre as teses neoliberais e as neoestatais. Os movimentos populares são, nesse sentido, um testemunho concreto e tangível, que mostra que é possível contrastar a cultura do descarte, que considera homens, mulheres, crianças e idosos como excessos inúteis ou massa sobrante – e frequentemente prejudiciais – do processo produtivo, através da geração de novas formas de trabalho, centradas na dimensão solidária e comunitária, em uma economia artesanal e popular. Por tudo isso, decidi unir a minha voz e sustentar junto a causa de tantos que praticam os negócios mais humildes – na maioria das vezes, privados do direito a uma remuneração digna, à previdência social e cobertura de pensão. Nesse estado de paralisia e desorientação, a participação política dos movimentos populares pode derrotar a política dos falsos profetas, que exploram o medo e o desespero e que pregam um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.

Tudo o que lhes disse, como mostra este livro, está em total harmonia com a Doutrina social da Igreja e com o Magistério de meus antecessores. Espero, neste sentido, que a publicação deste livro seja uma maneira de continuar – embora à distância – a reforçar essas experiências, que antecipam com seus sonhos e lutas, a urgência de um novo humanismo, para acabar com o analfabetismo da compaixão e o eclipse progressivo da cultura e da noção de bem comum.”

Francisco

  • [1] Encontro com os movimentos populares, Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, 9 de julho de 2015.
  • [2] Evangelii Gaudium.
  • [3] Encontro com os movimentos populares, Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, 9 de julho de 2015.

Fonte:

www.vaticannews.va