O perdão é um tema urgente em nosso tempo! Os horizontes do perdão se configuram em processos de elaboração de traumas causados por crimes, tragédias, exclusões sociais ou por elementos que, simplesmente, fazem parte das dores da vida de toda e qualquer pessoa. É preciso, por isso, atestar que ocorreu uma ferida e entender a sua trajetória, os seus efeitos e impactos sociais, humanitários e pessoais. Podemos apenas pensar em horizontes de perdão, por isso mesmo, quando temos possibilidades hermenêuticas, propiciadas por sociedades democráticas ou grupos de resistência, que não aceitam pagar violência com violência. É possível alcançar um estado de harmonia e de paz, quando buscamos caminhos para a ressignificação. Para tanto, torna-se imprescindível elementos como a tolerância, a justiça e a reconciliação. Como afirma o filósofo francês Paul Ricoeur, o perdão é difícil, mas possível. Perdoar não é uma obrigação, não é casual, mas extraordinário, um transbordamento, um dom, expressão do divino no humano, profundamente humano! Cremos que, participantes de uma tradição cristã, em várias abordagens corre, como um rio de água viva, a possibilidade de um perdão maior. Daquela fonte que de tanto amor, torna-se vítima que perdoa, matando a própria inimizade. A história de Cristo mesmo como antecipação escatológica de um novo reino no qual todos são irmãos. No artigo a seguir, Leonardo Boff faz uma apresentação profunda do tema, tomando como inspiração o livro “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) organizado por Dom Vicente Ferreira e pelo professor René Dentz (membro da equipe executiva do Observatório):
Por iniciativa do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor da região da tragédia de Brumadinho-MG e do professor e psicanalista René Dentz, foi organizado um livro que recolhe excelentes estudos sobre o perdão: “Horizontes de Perdão” (Editora Ideias & Letras 2020, pp.180). Sua singularidade reside no fato de terem sido escolhidos exemplos de perdão de diferentes países com suas culturas e tradições próprias.
Queremos comentar esta obra por sua alta qualidade e por abordar um tema de grande atualidade, também largamente abordada pelo Papa Francisco na sua encíclica social Fratelli tutti (2020).
O livro “Horizontes de Perdão” tem como foco pensar o perdão a partir do sofrimento concreto e terrível, suportado por vítimas humanas inocentes ou por todo um povo vitimado durante séculos. Aqui reside sua grande força e também o seu poder de convencimento.
Um exemplo, descrito e analisado pelo bispo Dom Vicente Ferreira e de René Dentz, também organizador desta obra, vem do Brasil, das tragédias criminosas do rompimento de duas barragens da mineradora Vale, em Mariana-MG no dia 05 de novembro de 2015, matando 19 pessoas e destruindo a bacia do Rio Doce, com 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, e Brumadinho-MG, no dia 25 de janeiro de 2019, com a ruptura da barragem da mesma mineradora Vale, vitimando 272 pessoas, soterradas sob 12,7 milhões de metros cúbicos de lama e detritos.
O livro abre com um minucioso estudo do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor, poeta, músico e profeta: “Brumadinho: o perdão a partir das vítimas de crimes socioambientais”. Precede-o uma pertinente análise de conjuntura global, sob a hegemonia do capital, uma máquina de fazer vítimas no mundo inteiro. A mineradora Vale representa a lógica do capital que prefere o lucro à vida, aceitando o risco de dizimar centenas de pessoas e de danificar profundamente a natureza. Mesmo consciente dos danos perpetrados, reluta em compensar com justiça e equidade as famílias e pessoas afetadas.
Dom Vicente procura entender o processo vitimatório da globalização do capital com as categorias do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos e a compreensão da violência com a psicanálise de Sigmund Freud que, face à nossa capacidade de superar a violência, se mostra, de certa forma, cético e resignado.
Dom Vicente supera esta resignação com a contribuição da mensagem cristã bem no espírito da Fratelli tutti do Papa Francisco. Esta testemunha o sacrifício da vítima inocente, do Crucificado que rompeu o círculo da vingança e do ressentimento com o perdão a seus algozes. Esta visão foi bem desenvolvida pelo pensador René Girard, referido no estudo. Este pensador francês emerge como um dos que melhor estudou a dinâmica da violência que se origina pelo desejo mimético excludente (alguém quer só para si um objeto excluindo a terceiros), mas que a proposta cristã mostrou que este desejo mimético pode ser transformado em includente (desejamos juntos e compartilhamos o mesmo objeto) pelo perdão incondicional.
Mas esse perdão coloca a exigência de justiça a ser praticada por aqueles que provocaram o desastre criminoso, no caso os responsáveis da mineradora Vale. Essa luta, o bispo a leva com determinação e ternura, com canto, poesia e oração junto com a comunidade dos sofredores que ele incansavelmente, com uma generosa equipe, acompanha. Cabe citar novamente o que diz a Fratelli tutti: “Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto… Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama” (n. 241).
Para entender melhor a dinâmica da violência e do perdão, alguns autores foram seminais: o filósofo francês Paul Ricoeur com seu livro “La mémoire, l’histoire, l’oubli” (Paris, Seuil 2000) e Franz Fanon, “Os condenados da Terra” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1968).
A reconciliação e o perdão não terminam em si mesmos. Novamente a Fratelli tutti é inspiradora:
“Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação alcança-se de maneira proativa, ‘formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura’ (n. 213). E os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz ‘só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo'” (n. 229).
Releva enfatizar: cada povo e cada grupo encontraram caminhos próprios para chegar ao perdão. Assim, por exemplo, para os afrodescendentes brasileiros é imprescindível para um perdão real que os brancos que os vitimizaram pela escravidão reconheçam a desumanidade que cometeram, reforcem a identidade africana e os restaurem na sua dignidade ofendida. Bem se disse: “o perdão é mais que uma justa justiça, antes é da ordem da doação – doação aos outros”.
No Congo Brazzaville, país marcado por sangrentas guerras civis, o conceito chave foi “palaver”, recorrente nos países do sul do Saara.
“Palaver” implica buscar a verdade pelo diálogo, pela liberdade de todos falarem, independentemente de seu lugar social e de gênero, até se elaborar um consenso em função da paz social; todos se perdoam mutuamente, sem penalizar ninguém, mas todos se propõem corrigir os erros. O texto mostra como esse pacto pela ganância do poder de grupos e pela vasta corrupção que assola o país não conseguiu prevalecer e ter sua sustentabilidade garantida. Mas vale a tentativa.
Na África do Sul, o conceito-chave no processo de reconciliação e de perdão, conduzido pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, foi a categoria “Ubuntu”. Ela fundamentalmente expressa essa profunda verdade antropológica: “eu só sou eu através de você”. Todos se sentem interligados. A estratégia era: o vitimador confessa seu crime com toda sinceridade; a vítima escuta atentamente e narra a sua dor; restaura-se a justiça reparadora e restaurativa, eventualmente aceita-se uma punição curativa, exceto para os crimes mais hediondos de lesa-humanidade, que são encaminhados ao tribunal competente.
Outra contribuição trabalha estudos avançados de mereologia (como as partes se relacionam com outras partes, como elas se situam no todo e como dentro dele se movem). Os dois autores articulam os dados numa certa harmonia, base para o perdão, assim definido por eles:
“A superação do afeto negativo e do julgamento em relação ao ofensor, não negando a nós mesmos o direito a tal afeto e julgamento, mas se esforçar em ver o ofensor com compaixão, benevolência e amor”.
O pressuposto antropológico é que por mais criminoso que alguém seja, nunca é só criminoso, jamais deixa de ser humano com muitas outras virtualidades também positivas. Da mesma forma, por mais que a população trazida violentamente da África para ser escrava no Brasil, nunca os senhores de escravos conseguiram matar-lhes a liberdade. Eles resistiram e procuraram sempre conservar sua identidade cultural e religiosa. O quilombolismo é disso uma prova ainda hoje visível nas centenas de quilombos existentes, onde se vive uma vida mais comunitária, igualitária, na linha do “Ubuntu”.
Entretanto, enquanto não se parar de dar um download do ressentimento e do espírito de vendetta, nunca se rasgará o caminho para um verdadeiro perdão. Não se trata de esquecimento, mas de não deixar de ser refém de um interminável ciclo de amargura e de mágoa.
Nesse ponto do perdão generoso, o cristianismo mostrou seu capital humanístico. Como o texto de Dom Vicente o mostra e especialmente o da Colômbia que assim o expressa: perdoar o imperdoável não é só uma amostra como o espírito humano pode revelar a sua transcendência, a sua capacidade de estar para além de qualquer situação por mais desumana que se apresente, mas é acima de tudo o dom da graça divina. Perdoamos porque fomos perdoados por Deus e por Cristo cuja misericórdia não sofre nenhuma limitação.
A justiça é irrenunciável. Mas não é ela que escreve a última página da história humana. Excelentemente respondeu o filósofo Roger Icar a Wiesenthal, aquele que buscava no mundo todo criminosos nazistas: “O perdão sem justiça revela fraqueza, mas uma justiça sem perdão representa uma força desumana”.
Estes textos revelam a excelência das reflexões sobre o perdão, dos melhores publicados nos últimos tempos. A parte desumana no ser humano pode, pelo perdão e pela reconciliação, ser resgatada e transformada. Essa é a grande lição que esta notável obra “Horizontes de Perdão” nos quer transmitir, tão bem organizada pelo bispo-pastor Dom Vicente de Brumadinho e pelo erudito psicanalista René Dentz.
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Leonardo Boff
Teólogo, filósofo, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/609602-o-perdao-a-grandeza-e-a-dignidade-das-vitimas-de-extrema-violencia-artigo-de-leonardo-boff