Se Santo Agostinho chama o Natal de “aniversário” – conforme vimos no primeiro artigo desta série, ainda que com um sentido mais profundo e um significado mais abrangente do que o habitual, São Leão Magno vai muito além. Não são poucos os sermões de sua autoria que trazem consigo elementos-fonte para os textos eucológicos do tempo do Natal, sobretudo pela marcante teologia presente nos libbeli do Sacramentário Veronense, também chamado de Leonino.
Para este Papa, cujo pontificado se deu entre 440 e 461, a celebração da Natividade do Senhor passa muito distante da lembrança de uma data. É verdadeiro sacramento, pelo qual “o círculo do ano faz-nos outra vez presente (reparatur, isto é re+apresentação) o mistério (sacramentum) da nossa salvação.” Ou seja, Leão Magno compreende que, pelas vias da ritualidade litúrgica, os fiéis podem participar do nascimento de Cristo, uma vez que foram “admitidos” neste evento. A alegria e o prazer de celebrar o Natal se funda no fato de, pelo “nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual Ele Se vestiu da carne da nossa natureza” se explica em razão de “nos tornarmos consortes da natureza divina”.
A Liturgia, portanto, dá acesso ao acontecimento. É porta de ingresso no mistério. Não é apenas um ensino sobre ele, mas a condição de nossa participação nele, afinal “o que era visível em nosso Salvador passou para seus mistérios”, segundo o mesmo Papa Leão (CIC 115). Por esta razão terá muita importância para Ele o advérbio “hoje”.
“Hoje o Verbo de Deus apareceu vestido de carne… Hoje, os pastores souberam pelas palavras dos Anjos que o Salvador tinha nascido… Hoje, aos que estão à frente dos rebanhos do Senhor foi entregue nova forma de mensagem (…) A festa de hoje renova para nós o sagrado início da vida de Jesus, nascido da Virgem Maria. E enquanto adoramos o nascimento do nosso Salvador, celebramos também o nosso nascimento. Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão: o Natal da cabeça é também o Natal do Corpo.”
Deste modo, continua noutro lugar, “o Natal do Senhor, em que o “Verbo se fez carne”, não tanto o havemos de lembrar como acontecimento do passado, mas antes imaginá-lo como se o vissem agora nossos olhos.” E como o veem senão pela condicionalidade da mesma carne assumida pelo Verbo, cujos ritos litúrgicos são verdadeira extensão? Aliás é exatamente isto que afirma o Catecismo da Igreja Católica ao tratar da Economia Sacramental presente na Igreja: que pelos gestos (ritualidade) e palavras (Sagrada Escritura e eucologia) o mesmo Cristo age no hoje dos fiéis (cf. CIC 1088). A lógica é simples: se Deus nos alcançou na carne, abrançando e assumindo nossa humanidade para comunicar o Deus, é pela mesma carne que este mistério pascal “permanece e atrai tudo para a vida”.
A eucologia das missas do Natal do Senhor nos apresentam com nitidez esta compreensão:
“Concedei, ó Deus, que sejamos renovados, ao celebrarmos o Natal de vosso Filho, que se faz alimento e bebida neste divino mistério.” (Oração depois da comunhão na Missa da Vigília)
“Acolhei, ó Deus, a oferenda da festa de hoje, na qual o céu e a terra trocam seus dons, e dai-nos participar da divindade daquele que uniu a vós a nossa humanidade.” (Oração sobre as oferendas, Missa da Noite)
“Nós vos pedimos, ó Deus, que estas oferendas realizem em nós o mistério do Natal.” (Oração sobre as oferendas da Missa da Aurora)
“Ó Deus que, admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a sua dignidade, dai-nos participara da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade.” (Oração do Dia da Missa do Dia)
Conclui-se, pois, que a celebração do Natal do Senhor deve nos orientar na participação de um acontecimento e não, simplesmente, nos referir a uma data perdida no passado e que o caminho para isso passa por assumir os ritos como porta de acesso ao mundo do Deus-Conosco.
Sobre o autor:
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da paróquia São Sebastião e São Vicente
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