Podemos definir o fenômeno do clericalismo de muitas maneiras, mas, a grosso modo, trata-se da concentração do poder eclesial nas mãos dos clérigos, ou seja, quando a tomada de decisões concentra-se exclusivamente nas mãos dos ministros ordenados – bispos, padres e diáconos. Desse modo, os cristãos leigos e leigas ficam totalmente excluídos de participar ativamente das diversas instâncias deliberativas da vida da Igreja. A Igreja passa a se autocompreender como mera hierarquia querida por Deus.
Quando o ministério da ordem, em cada um de seus graus, deixa de ser compreendido como serviço específico ao Reino e ao Povo de Deus e cada clérigo deixa de ser um servidor qualificado chamado a anunciar-testemunhar o querigma, cuidar do crescimento espiritual dos cristãos, acompanhar seus passos, animar a sua caminhada e soerguê-los nas eventuais quedas, a fraternidade e as relações de poder se tornam dominadoras e violentas. O Batismo, que a todos irmana na mesma comunhão e missão, a Palavra de Deus, que é luz para o caminhar coletivo, e, até mesmo, a própria pessoa de Jesus, cuja práxis libertadora está consignada no Evangelho do Reino e da Justiça de Deus, neste contexto hierárquico, tendem a perder a força de irradiação que sustenta e dá credibilidade atrativa à vida cristã. Os critérios de discernimento na dinâmica e na gramática da vivência da experiência cristã, seja no nível pessoal, seja no âmbito das comunidades de fé e partilha de vida, passam a ficar concentrados na ambivalente vontade deliberativa dos clérigos, cada qual em seu nível hierárquico próprio. O arbítrio de cada clérigo na prática decide, enquanto instância superior, o que pode e o que não pode e os próprios rumos do ser Igreja, muitas vezes sem qualquer explicitação de sua fundamentação na Palavra de Deus, na Tradição ou no Magistério da Igreja. E ainda pior, quase sempre, sem prestar contas ou ser avaliado pelo povo de Deus no exercício de sua missão. Muitos ministros ordenados inclusive não aceitam críticas e muitos leigos e leigas, infelizmente, corroboram este lugar do ministro ordenado acima de qualquer suspeita.
Esta compreensão estreita do ministério ordenado tem favorecido ou se tornado a causa primária de inúmeras deturpações no seio da Igreja e criado situações que entravam e impedem o crescimento de grande parte dos cristãos e das comunidades em sua caminhada de vivência da fé e do seguimento de Jesus. Muitos inclusive se afastam da Igreja quando descobrem as contradições e perversidades, pois, não se sentem corresponsáveis na dinâmica e nem sujeitos eclesiais capacitados para interferir, denunciar ou transformar tais deturpações.
A origem histórica do clericalismo na Igreja remonta ao início da cristandade, no século IV, quando o perseguido cristianismo nascente passa a ocupar o lugar hegemônico de religião oficial do Império Romano e é imposto a todos os seus súditos. Desde então, os ministros ordenados assumiram uma áurea sagrada e passaram a ser uma espécie de casta quase intocável, a qual se atribuía e reconhecia, legitimamente, o exercício do poder decisório na vida eclesial e, de forma crescente, na vida da sociedade. Doravante, a nobreza (poder temporal) e o clero (poder divinal) passaram a caminhar de mãos dadas e com paulatina cumplicidade no exercício do poder sociopolítico.
Ao longo da história, na sociedade e na Igreja, aconteceram muitas crises e tentativas de superação dessa realidade eclesial, muitas vezes promíscua, dessa compreensão do ministério ordenado e dessas imperiais relações de poder. No âmbito da vida em sociedade, a Revolução Francesa, o Iluminismo, a Modernidade com seu processo de secularização e o surgimento da figura do estado laico, podem ser evocados como marcos importantes de limitação ou recusa frontal da legitimidade sociopolítica do poder do Clero. Já no âmbito da vida eclesial, o Concílio de Trento, concílio de contra-reforma protestante, bem como o Concílio Vaticano I, com sua teologia de neo-sacralização do ministério da ordem, podem ser considerados pontos altos de maior recrudescimento dessa compreensão autocompreensão hierárquica da Igreja. O Concílio Vaticano II foi a maior tentativa eclesial, ainda que um tanto quanto fracassada, de superação do clericalismo na Igreja. Muitos teólogos, como João Batista Libanio, analisam os pontificados de Paulo VI, pelo menos em sua última fase, e, sobremaneira, o de João Paulo II e de Bento XVI como uma verdadeira “volta da grande disciplina” e de centralização do poder eclesial na Curia Romana. A renúncia do papa Bento XVI é compreendida por muitos vaticanistas como resultante de uma grave crise de poder na Cúria Romana.
Já esses primeiros cinco anos de magistério do papa Francisco tem sido caracterizado por muitos como não apenas uma retomada do espírito do Concílio Vaticano II, mas como um verdadeiro e ambicioso projeto de reforma da Igreja. Talvez, por isso, vem encontrando tanta oposição interna, e às vezes desleal e anti-fraterna, por alas ultraconservadoras e clericalistas. Francisco tem feito recorrentes críticas à cultura clerical imperial e corrompida que permanece vicejante e ocupa muito espaço estratégico na dinâmica da Igreja:
“Mas o que acontece com esses outros – aqueles que seguem o caminho do clericalismo – a quem se aproximam?… Sempre se aproximam do poder em vigor ou ao dinheiro. E são maus pastores. Eles só pensam em como escalar no poder, serem amigos do poder e negociam tudo ou pensam apenas em seus bolsos. Estes são os hipócritas, capazes de qualquer coisa. A essas pessoas não lhes importa o povo. E quando Jesus lhes dá aquele bonito adjetivo que utiliza frequentemente para eles – “hipócritas” -, eles se ofendem: ‘Mas não, não, nós seguimos a lei’“.
Papa Francisco
Para estimular o nosso estudo para compreender e combater o clericalismo na Igreja, alguns testemunhos importantes:
“Não há dúvidas de que o clericalismo está na raiz da crise de abuso. O clericalismo é isolacionista e insular – corta o ‘ar’ da solidariedade genuína e compartilhamento da vida com os leigos, criando uma classe separada, uma casta, dentro da Igreja… Quando as pessoas criam ‘pequenas elites’, como os chama o papa Francisco, a tentação é de preservar ‘a nós mesmos’ e ‘nossa visão/vida/privilégio’ em detrimento da ‘deles’ – os leigos, ‘os que não entendem’, ‘os que não estão sobrecarregados como nós’... Os leigos, que ouvem reiteradamente que o sacerdote é especial e exclusivamente santo – ‘mudança ontológica’, ‘marca indelével’ – não é levado a acreditar que o clero pode pecar… e depois quando surgem essas alegações e elas são corroboradas, a quebra de confiança é irreparável… Há certos modos em que o clericalismo machuca a todos. Os leigos são vitimados e infantilizados; o clero é isolado e deve ser sobre-humano.“
Profª. Natalia Imperatori-Lee
“Superar o clericalismo significa criar relações abertas, transparentes e iguais entre (bispos,) padres e leigos. Uma comunidade assim está disposta a permitir a correção moral dos sacerdotes pelos leigos e não simplesmente a correção dos leigos pelos sacerdotes. Essa comunidade é aberta e está disposta a aprender com todos os seus membros… Apenas uma comunidade de relações humanas e transparência maiores poderá identificar e erradicar comportamentos abusivos. Onde o clericalismo esconde a psicologia do padre por trás de um véu de pseudobeatificação, Francisco nos pede para olhar realisticamente os seres humanos à nossa frente e responder de acordo. Da mesma forma, os padres apreendidos por uma mentalidade de clericalismo precisam renunciar ao orgulho de uma divindade ou santidade especial e, em vez disso, devem procurar se tornarem mais profundamente humanos (como Cristo)… Também é importante reconhecer que o clericalismo cria uma cultura na qual os padres não-abusivos não podem se desculpar abertamente ou ser vistos como moralmente falhos. No esforço de parecerem tão impassivelmente perfeitos quanto um ícone bizantino, os padres não têm mais uma maneira de discutir francamente suas próprias limitações morais. Eles se tornam cativos de sua própria beatificação falsa. Este é o verdadeiro fundo de verdade por trás da importante percepção de que os sacerdotes completamente degradados moralmente são capazes de chantagear aqueles que quebraram suas promessas de celibato em relações consensuais com adultos. Somente um padre cativo de uma noção inflada de superioridade moral é incapaz de viver a humilhação da revelação de suas próprias falhas humanas – e somente uma comunidade que se recusa a lutar com a humanidade de seus sacerdotes é capaz de colocar uma venda em seus próprios olhos e viver em meio aos abusos inaceitáveis e intoleráveis que estão escondidos da vista“.
Prof. Jason Blakely
Tem saído inúmeros artigos e reflexões sobre a grave questão do Clericalismo na vida da Igreja. Para aprofundar na complexidade deste tema e compreender as inúmeras deturpações que tem provocado, sugerimos as seguintes leituras:
1. Especialista em casos de abuso diz que a questão é ‘quem somos enquanto Igreja’;
2. Especialista diz que abuso de poder é a raiz da crise de abusos sexuais na Igreja;
3. Clericalismo: a cultura que permite o abuso e insiste em escondê-lo;
4. Abuso sexual e a cultura do clericalismo. Artigo de Jason Blakely;
6. Abusos na Igreja. Padre Zollner: “Clericalismo? Leva aos crimes mais hediondos”;
7. Abusos sexuais: a Igreja deve questionar-se sobre a sua parte de responsabilidade;
Fonte de pesquisa: IHU
Prof. Edward Guimarães
O autor é teólogo leigo, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Ele é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e doutorando em Ciências da Religião pela PUC Minas.
Clericalismo, é o excesso de vaidade. A afirmação que padre é padre e leigo é leigo nos constrange muito. Somos povo de Deus e para o Reino devemos trabalhar.
Professor Edward, obrigado por partilhar um texto tão instigante e dotado de grande assertividade ao analisar a conjuntura de nossa missão evangelizadora radicada na Igreja Católica. De fato, o clericalismo é um dos fortes entraves que nos impedem de avançar na construção efetiva do Reino. Infelizmente os ministros ordenados o fortalecem e mesmo os leigos, que ainda não se libertaram de uma prática restrita e dominadora, também são seus grandes sustentadores. Precisamos atuar, como leigos, para dinamizar as práticas evangelizadoras e do seguimento de Jesus, assumindo responsabilidades e também reivindicando espaço no corpo da Igreja, que é “povo de Deus em Movimento”. Na Igreja do Brasil e mesmo na Arquidiocese de BH, apesar de prevalecerem na prática de parte dos clérigos e leigos alguns itinerários que fomentam o tradicionalismo, vejo um espaço relevante para atuarmos na construção do projeto de Jesus de Nazaré em uma perspectiva libertadora, que garanta equidade entre os múltiplos sujeitos eclesiais que tornam a Igreja viva e presente na sociedade. Vamos nessa luta dispostos a colaborar, sempre pedindo o discernimento do Espírito Santo e nos espelhando nos caminhos de Jesus. Um abraço fraterno!