Em nossos dias, quanto mais vivenciamos um mundo de interações, maiores complexidades surgem. A ordem parece se extinguir, dando lugar ao caos e ao aleatório. No entanto, o caos assusta. Diante de um cenário sem resposta em um primeiro momento, o ser humano tende a se apegar emocionalmente a um conteúdo de solução clara e rápida (mesmo que paranoica e irreal). Todo esse contexto abre enorme espaço para as paranoias. O conhecimento paranoico se fundamenta através do eu, por isso uma sociedade narcisista tende a ser uma sociedade de maior pós-verdade. Nesse contexto, é pelos olhos do outro que conhecemos o mundo; portanto, desconhecemos que somos um outro. Pelas bolhas que conhecemos e nelas nos alimentamos e validamos aquele mesmo conhecimento.
Alguns estudiosos intitularam o mundo em que vivemos daquele da “pós-verdade”, onde o real não importa mais, mas sim aquilo que eu quero que exista. O afeto e a emoção contam mais para afirmar alguma coisa sobre o mundo do que a razão e a crítica. Esse fenômeno é presenciado mesmo em diversos campos do saber. No campo psíquico mesmo, estamos presenciando diversos métodos frágeis e rasos que propõem “curas” a partir de elementos místicos e mágicos, sem ter passado por uma crítica acadêmica, por pesquisa mais fundamentada. Por outro lado, podemos também chamar tudo de patologia e encontrar um medicamento para resolver. Esse fenômeno também é notado nos discursos liberais, aqueles que afirmam que todos os problemas sociais do nosso mundo seriam resolvidos pela privatização. É um processo que inclui a privatização do próprio eu e da política, pois não teria mais sentido a busca pelo bem comum, o diálogo em busca da solução de conflitos (que não existiriam mais, seria o “fim da História”). Um mundo ideal estaria à disposição! Nesse contexto, a tecnocracia entra em cena, um discurso ingênuo (por vezes arcaico e de caráter quase religioso), para fornecer todas as soluções. O que é mais irônico é que esses discursos surgem principalmente da Economia e do Direito. Ora, e quando, de repente, todo o discurso econômico ou jurídico não se concretizou na realidade? O que aconteceu? Então os tecnocratas dizem: “a realidade está equivocada”. Eis a paranoia! Felizmente algumas mentes mais lúcidas, mais críticas e trabalhadoras e menos “manualescas” (que sustentam seu conhecimento em manuais) percebem que o caminho da Economia e do Direito é mais árduo e complexo: aquele do diálogo interdisciplinar e que reconhece as complexidades ao nosso redor.
As religiões infelizmente também foram, em grande medida, para esse caminho. Os discursos são rasos, superficiais e repetitivos, abrindo as portas à compulsão. Presenciamos um “consumo” da religião, assim como consumimos produtos. No entanto, diante dos cenários de depressão e ansiedade, cada vez mais as repetições funcionam como paliativos e será preciso entender o ser humano de forma mais séria e densa. Por isso sempre alerto aos seminaristas para estudarem bastante filosofia, teologia, psicanálise, para entender o ser humano do século XXI e não acabarem sendo “padres-gurus de autoajuda” e pregando ilusões.
O que presenciamos na política de hoje? Nas últimas semanas vivenciamos uma avalanche de fake news. Elas possuem alguma função? Sim, dentro de uma lógica de pós-verdade, ela cria um mundo específico, onde alguns grupos querem habitar. Muitos não dão conta de habitar na fluidez e precisam de elementos repetitivos, compulsivos e ideias claras e distintas que prometem a saída do caos e das complexidades. Por isso os negacionismos são tão paranoicos e fora da realidade, acreditando ter revelado um mistério a poucos revelado, um segredo oculto, uma conspiração perigosa. Enquanto isso, a humanidade caminha e podemos perder o rumo da História, atrasados, arcaicos e paranoicos.
O sujeito hoje volta suas preocupações para ele mesmo, sua imagem, por meio de um processo que podemos intitular de “estetização da existência”. Nele, o que importa para o indivíduo é a exaltação do seu próprio eu, unicamente. O cuidado neurótico com a própria imagem é verificado no cuidado com o corpo, seja pela imagem, seja pela busca de uma saúde inabalável. O sujeito vive essa estetização do eu através das curtidas e pela admiração contínua dos outros. “Constitui-se aqui a manipulação do outro como técnica de existência para a individualidade, maneira privilegiada para a exaltação de si mesmo. Com efeito, para o sujeito não importam mais os afetos, mas a tomada do outro como objeto de predação e gozo, por meio do qual se enaltece e glorifica” (Birman, 2021, p. 180).
Na cultura do espetáculo, que é importante para o indivíduo é a exigência infinita da performance, onde o que é importa é a exaltação do eu. O sujeito se transforma em um rei ou em um mito, sendo cada um dos seus atos aplaudidos pela massa, mesmo que sejam atos mais ridículos e bizarros imagináveis.
Nos dias atuais, o que direciona o indivíduo é a busca desesperada por soluções mágicas: terapias alternativas, drogas, vícios diversos, coachings, entre outros. Há também uma tentativa de desvendar segredos interiores praticando esportes de forma compulsiva. Há uma depredação de sua própria subjetividade, identificando-a com elementos simples, rasos, repetitivos, miméticos (aqui no sentido de padronizados). Nesse sentido, cria-se um ambiente cultural no qual não existe mais espaço para a fraternidade, a amizade, o amor genuíno, o afeto gratuito e até mesmo para o desejo em sua singularidade. O único aspecto que interessa aos sujeitos é circunscrever severamente o território medíocre de sua existência à custa do gozo predatório sobre o corpo do outro, outro que é desconhecido, sem rosto e identidade. As individualidades não se afeiçoam mais aos corpos que lhe possibilitam prazer e gozo, meras mediações que funcionam como acréscimo das suas imagens narcísicas. Dessa maneira, não se cultivam mais alguns rituais simbólicos fundamentais para a instauração da sociabilidade e à existência humana lapidada, como o nascimento e a morte.
Por isso, Papa Francisco nos recorda que a nossa vida deve ser narrada, assumindo sua dimensão de temporalidade e consequente historicidade.
“A nossa vida é o “livro” mais precioso que nos foi confiado, um livro que muitos infelizmente não leem, ou o fazem demasiado tarde, antes de morrer. No entanto, é nesse livro que se encontra aquilo que se procura inutilmente por outros caminhos”. Retoma o pensamento de Santo Agostinho: no final deste percurso, notará com admiração: «Tu estavas dentro de mim, e eu fora. Lá, eu procurava-te. Deformado, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo». Daqui deriva o seu convite a cultivar a vida interior, para encontrar o que se procura: «Volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade»” (Audiência Geral, 19 de outubro de 2022).
Prof. René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista semanal da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.
Excelente e oportuno artigo. Infelizmente, não vemos boas perspectivas de mudar este estado de coisas.