Danièle Hervieu, importante socióloga da religião, recentemente publicou uma obra (Vers l´implosion? Seuil, 2022) que evidencia os caminhos do catolicismo na contemporaneidade. Permeada por valores narcisistas e individualistas, as sociedades contemporâneas parecem buscar fundamentos “dinâmicos e práticos”, ou poderíamos entender também como pragmáticos e perversos. Dentro desse paradigma, existe o risco de a espiritualidade exercer uma função narcisista. Nesse contexto, dois eventos presenciados nos últimos anos intensificaram, ainda mais, essa tendência: a pandemia do COVID 19 e as feridas abertas pelos casos de abusos sexuais.
Desde a Conferência de Aparecida, há uma indicação da necessidade da Igreja se conectar com temas antropológicos contemporâneos, sobretudo no que tange à subjetividade e suas demandas. A pandemia, ao contrário, intensificou tendências narcisistas. Mergulhada na cultura do ressentimento, a nossa subjetividade se mostrou demasiadamente individualista, não permitindo abertura ao outro, com o qual constantemente rivaliza. Ou seja, não é possível pedir ajuda, fazer um apelo. É uma atitude não muito aplaudida, pois releva uma “fraqueza”, uma dimensão vulnerável. A subjetividade contemporânea não consegue transformar dor em sofrimento, pois há pouca possibilidade de diálogo e interlocução. Dessa maneira, o sujeito é jogado em um abismo, não encontra sentido. Seu corpo, então, se apega a sentidos imediatos, espaciais, fora das temporalidades que nos permitem vivenciar alteridades e nossa própria humanidade.
É verdade que alguns movimentos católicos se mostram propositores de “alentos antropológicos” aos nossos tempos caóticos. Movimentos que significaram não necessariamente aumento no número de fiéis, mas apenas exercem papel de motivação e “reavivamento” a um número já existente de católicos. O clima de renovação esteve presente nos últimos anos, mas pensamentos conservadores se mostram violentos simbolicamente e se fundamental na repetição, o que leva muitas vezes a insistências neuróticas e aponta para um limite, sobretudo quando pensamos na mudança da juventude à vida adulta. Nesse sentido, Hervieu afirma a coexistência de diretrizes oriundas da Gaudium et Spes e da Humanae Vitae, o que indica desafios e incongruências a serem superadas (HERVIEU, p. 37).
Qual a saída? Seria o alargamento da experiência de uma “Igreja como resistência”, presenciada nos tempos de Francisco. Laudato Sì e Fratelli Tutti são documentos que indicam e aprofundam esse caminho. Hervieu chama esse movimento de uma “Igreja como consciência inquieta” (HERVIEU, p. 52). Questões emergentes são as mais fundamentais ao debate teológico-pastoral dos próximos anos, como a urgência ecológica. Dessa maneira, a Igreja se coloca em escuta atenta e constante aos anseios do ser humano contemporâneo, que está à beira do abismo ou do colapso. Uma consciência inquieta busca interfaces hermenêuticas, conexões fundantes.
O sistema romano faz com que a Igreja mensure sua unidade com base em sua uniformidade doutrinária e organizacional. Por muito tempo, essa visão de unidade foi encarnada em uma civilização paroquial pelo menos formalmente homogênea. A sociabilidade católica desloca-se hoje para o lado dos agrupamentos afins e móveis, cada vez mais alheios ao enquadramento territorial da paróquia. “O catolicismo de amanhã, em minha opinião, será um catolicismo ‘de diáspora’ ou não será” (HERVIEU, p. 62).
A atualização da Igreja Romana ocorreu precisamente no momento da revolução cultural da década de 1960. O Vaticano II foi imediatamente abalado pela grande mudança cultural que as sociedades modernas vivenciaram naquele mesmo período. Esse fato pode ser exemplificado pela resposta da Igreja à formidável revolução introduzida pelo acesso das mulheres à possibilidade de gerir sua fecundidade. A encíclica Humanae Vitae (1968), que proíbe a contracepção, teve consequências dramáticas para a credibilidade da instituição.
Por outro lado, mudanças foram indicadas e concretizadas. A constituição de reforma da cúria romana Praedicate Evangelium de março de 2022 mostra a direção. É sobre uma real descentralização do funcionamento da Igreja que a abordagem sinodal deve conduzir. Não apenas ao nível do governo das congregações vaticanas, mas nas dioceses e unidades pastorais.
Essa tendência envolve fortalecer o status teológico das Conferências Episcopais nacionais (e transnacionais/regionais, como a Amazônia) e aumentar o empoderamento de leigos, mulheres e homens, em todos os níveis. Nesse sentido, a abertura dos ministérios instituídos de leitoras, catequistas (e outros) a leigos e leigas pelos dois motu proprio Spiritus Domini e Antiquum ministerium (2021) vai na direção certa, na direção desta “claramente secular” cultura eclesial com que sonha o Papa Francisco em “Querida Amazônia” (n. 94).
É cada vez mais urgente, nesse contexto, pensar em ampliar os lugares de encontro da Igreja com o mundo e no mundo, por exemplo pela multiplicação de expressões eclesiais de base, oferecendo no coração das cidades espaços para encontros, debates, formação, celebrações, viagens espirituais ou sacramentais. Tipos de “pátios dos gentios” em nível local, assim como o Pontifício Conselho para a Cultura os estabeleceu em nível nacional e global (AMHERDT, Entrevista ao Observatório da Evangelização, 2022).
Uma igreja em saída significa buscar, incessantemente, um encontro com o humano e com seu real.
Referências
HERVIEU, Danièle. Vers l´implosion. Paris: Seuil, 2022.
AMHERDT, François-Xavier. Interview realisée par “Observatoire de l’évangélisation”, PUC-Minas, 2022.
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Prof. René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.