“Para nós cristãos, o evangelho qualifica a política ou é esta que mundanizou o evangelho? Os cristãos continuam a ter o papel de mudança na vida pública. […]O modelo de polarização está dentro da própria Igreja. O Papa Francisco recentemente afirmou que o evangelho une, a ideologia divide. Os cristãos deixaram de fazer essa memória faz muito tempo.
Contudo, vale ressaltar que, como já foi afirmado, não se trata de negar o valor e a importância da política, mas afirmar o seu lugar e como o evangelho pode qualificá-la. Há aproveitadores querendo fazer da boa noticia de salvação para todos uma via para a tomada do poder. Querem assumir o lugar de César, negando o que é da vontade de Deus. Essa é forma mais desonesta de aproveitar-se do evangelho.”
Por Pe. Matias Soares
A relação entre a política e o evangelho é real. Os dois fenômenos são indissociáveis porque em ambos está o ser humano. As fontes são diferentes, contudo. Enquanto a política tem suas raízes na cultura grega; o evangelho tem sua base na cultura judaica. A primeira tem a finalidade de promover a liberdade dos cidadãos (Hannah Arendt), o segundo é a boa noticia que é anunciada por Jesus de Nazaré, que chama todos à conversão para o Reino de Deus. O ponto de encontro das duas perspectivas é a história. Nenhum dado da cultura como construção humana é indiferente à importância do que a política e o evangelho significam para a existência humana e de toda a criação. O mesmo ser humano, que é o animal político, é aquele que é vocacionado a voltar-se integralmente para à vontade de Deus e promover, com a sua vida, o seu Reino de justiça e vida plena para todos (Jo 10,10).
Há uma passagem do evangelho que ratifica essa relação dialética: (Mc 12,17). O César representa a dimensão do poder humano. Esse reino ou Estado que os homens vão tentando construir. O que é de Deus já está pronto e é garantia da libertação e salvação (Lc 4, 18-19). Mais uma vez, o tema da liberdade aparece e é o ponto de encontro de ambos os caminhos. Enquanto um tem por instrumentos a via da retórica, os acordos e a coação, como Hobbes desenvolveu, o segundo tem por força impulsionadora o Espírito Santo. O seu fundamento é o amor. Enquanto a primeira tem a lei dos homens como parâmetro de conduta, em sociedade, o segundo confirma que pela prática das bem-aventuranças, que traduzem o sentido da autêntica felicidade, faremos a experiência da perfeição evangélica, que é a digníssima vocação cristã (Mt 5,3-12; 5,48; 25,31-46). Santo Agostinho escreveu a magistral obra a Cidade de Deus, na qual ele faz essa interpretação filosófica e teológica desta relação. O Estado com o poder, a Igreja com a autoridade. No Bispo de Hipona teremos a síntese das duas formas de sistemas estruturantes da civilização ocidental, que se encontram e marcam a condução da organização social, através das suas instituições, até a época moderna. Nesta última fase, a história terá o fortalecimento da dimensão política, sem a participação pública da religião. Ética não se confunde mais com moral. O individuo assume a sua autonomia e postula o Estado e a Igreja como objetos de suas vontades. O papel do Evangelho para a transformação social foi sendo esquecido com o tempo.
Fazendo essa sintética apresentação, o que desejo questionar é: para nós cristãos, o evangelho qualifica a política ou é esta que mundanizou o evangelho? Os cristãos continuam a ter o papel de mudança na vida pública. O cristão convertido à mensagem genuína do evangelho é semente que faz acontecer o bem na sociedade. Houve uma apropriação indevida daquela mensagem. Trocaram o sentido da conversão pelo uso da força e da violência. Partem do histórico, mas esquecendo de Deus, falam de utopia, mas renegam a esperança. A narrativa é de uma dialética que nega, e não a que confirma todos os que são imagem e semelhança de Deus. O não-reconhecimento do outro, é uma negação de si e do próprio Deus (1Jo 4,20). O modelo de polarização está dentro da própria Igreja. O Papa Francisco recentemente afirmou que o evangelho une, a ideologia divide. Os cristãos deixaram de fazer essa memória faz muito tempo.
Contudo, vale ressaltar que, como já foi afirmado, não se trata de negar o valor e a importância da política, mas afirmar o seu lugar e como o evangelho pode qualificá-la. Há aproveitadores querendo fazer da boa noticia de salvação para todos uma via para a tomada do poder. Querem assumir o lugar de César, negando o que é da vontade de Deus. Essa é forma mais desonesta de aproveitar-se do evangelho. Na conjuntura atual, o Papa Francisco é a referencia global para o que significa tomar e acreditar no evangelho para a transformação da sociedade. Isso é política. Mas, a boa e salutar política. Por isso, retomando o pensamento dos seus predecessores, ele afirmou que a política é uma forma sublime da vivência da caridade.
Os cristãos têm uma responsabilidade tremenda na transformação do que a sociedade está vivendo. Todavia, não podemos esquecer que estamos no mundo, mas não somos dele (Jo 17,14-16). O cristão é chamado a ter uma postura política sim, mas a partir do evangelho. Façamos essa memória! Não tenhamos medo de ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13), para que a justiça e a paz possam se abraçar. Assim o seja!
PADRE MATIAS SOARES PERTENCE À ARQUIDIOCESE DE NATAL-RN. ATUALMENTE MORA NO PIO BRASILEIRO, EM ROMA, E FAZ MESTRADO EM TEOLOGIA MORAL NA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE GREGORIANA. COLABORA COM O OE ENVIANDO-NOS ARTIGOS DE OPINIÃO.
“A política é a virtude de promover o bem comum.” (Papa Paulo VI).