O ensino social da Igreja segundo o Papa Francisco (2ª parte)

Christoph Theobald

Facultés Jésuites de Paris – Centre Sèvres

papa-francisco

 

II. Dar espaço ao que é “concreto” e diverso: da dimensão social do Evangelho ao ensino social da Igreja

Não basta, de fato, permanecer no plano da Escritura, é necessário, também, tirar dela um ensino que possa ser ouvido e recebido por todas as mulheres e por todos os homens “de boa vontade”, como já dizia João XXIII em sua Encíclica Pacem in Terris, de 1963 (citada por Francisco já no início de Laudato Si’, 3). Para isso, ainda no mesmo capítulo 4 de Evangelii Gaudium e na transição entre as duas partes desse capítulo, o Papa propõe quatro princípios que (cito textualmente o número 221) “orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro”. Esses quatro princípios, todos eles retomados em diversas passagens de Laudato Si’, permitem compreender a distância que nos separa hoje da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Vaticano II e de seu antropocentrismo subjacente, fornecendo, ao mesmo tempo, uma base para o “diálogo social como contribuição para a paz”, tema tratado na segunda parte do mesmo capítulo 4. Retomo sucintamente esses três pontos.

Quatro princípios

Os quatro princípios inserem-se, na verdade, no que acaba de ser dito acerca da tripla ou da quádrupla relacionalidade do ser humano, inevitavelmente permeada por “tensões bipolares” (EG, 212 s.) e conflitos. Eis os quatro princípios:

1. O tempo é superior ao espaço.

2. A unidade se sobrepõe ao conflito.

3. A realidade é mais importante que a ideia.

4. O todo é superior à parte.

Essas formulações um tanto abstratas têm, nos dois textos pontificais, ilustrações muito concretas que mereceriam um longo comentário, o qual não poderei tecer aqui. Não retomarei o segundo nem o terceiro princípio, de fácil compreensão, pois expressam ao mesmo tempo a finalidade messiânica de nossa criação – o Reino de paz de Deus, que consiste em superarmos nossos conflitos – e o risco de confundir nossas ideologias ou utopias com o real de nosso cotidiano em que nosso futuro está concretamente em jogo. Reservarei o comentário do primeiro princípio sobre o tempo e o espaço para a última parte deste trabalho e tratarei agora do quarto princípio: “o todo é superior à parte” (EG, 234-237).

Este princípio é acompanhado por uma comparação entre duas metáforas, comparação essa que nos faz compreender a escolha consciente e pensada do vocabulário estilístico. São as metáforas da esfera e do poliedro, que Evangelii Gaudium considera como duas maneiras de representar as relações entre um “todo” e suas “partes”; nesse sentido, elas nos permitem entender tanto a mutação do “doutrinal” numa concepção estilística da fé como a distância tomada pelo Papa em relação à Gaudium Spes:

O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, […] é necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. […] Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.

Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. […]

A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. […] O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino (EG, 235-237).

Para ilustrar o que foi dito, podemos comparar a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual com a Exortação. Os diferentes capítulos da segunda parte de Gaudium et Spes representam dimensões do humano que formam um todo; são, por assim dizer, projetadas sobre uma esfera – “a antroposfera” ou “antropoceno” (segundo Gaudium et Spes, 2 § 2) – onde se encontram lado a lado, desde o casamento até a paz em todo o planeta, a Igreja estando no meio dessas realidades, logo, na superfície, mas também no centro da esfera, equidistante de cada nível do real, projetando a partir do interior “a luz e a energia” do Evangelho (Gaudium et Spes, 10§ 2) sobre cada realidade e propondo uma regulação doutrinal de sua orientação global, fundamentada na primeira parte do texto que trata da “Igreja e da vocação humana”. O singular, tal ou qual indivíduo, tal ou qual cultura ou língua, tal ou qual povo, não encontra lugar aí, ou melhor dizendo, não é aí considerado objeto de interesse. Estamos antes num universo homogêneo e unidimensional, de acordo com o vocabulário de Laudato Si’, universo dominado não pelo paradigma tecnocrático, mas por uma “doutrina”, embora os dois possam conviver e fortalecer-se mutuamente.

Em compensação, a visão do mundo da Exortação Evangelii Gaudium pode ser compreendida de acordo com o modelo do poliedro. O discurso doutrinal que enfatiza os princípios não perde sua necessária função reguladora, mas nunca conseguirá alcançar “cada cristão, onde quer que esteja” (EG, 3), nem mesmo “cada pessoa que habita nesse planeta” (LS, 3) de acordo com a singularidade de cada um que se relaciona, integrada em conjuntos sociais e ambientais cada vez maiores, mas mantendo sua “originalidade”, segundo a expressão do texto. Somente uma abordagem estilística permite isso, pois é sensível à confluência de todas as partes num dado singular em que essas partes mantêm sua originalidade, sendo, ao mesmo tempo, habitadas pelo todo que é a “plenitude da riqueza do Evangelho”.

O fim do antropocentrismo

Há ainda outra razão, no entanto, na passagem da esfera ao poliedro, que leva o Papa a conceber a realidade de um modo diferente da Constituição Gaudium et Spes: a oposição, hoje necessária, a um “antropocentrismo despótico” ou “desviado” (LS, 68, 69, 118, 119 e 122), que se manifesta especialmente na onipresença do paradigma “tecnocrático” e do “mito do progresso” (LS, 60 e 78), como já foi mencionado anteriormente. É particularmente o terceiro capítulo de Laudato Si’ sobre “a raiz humana da crise ecológica” que se refere a isso. Ele marca com o maior rigor a distância tomada em relação à Constituição pastoral do Vaticano II, que mantinha uma relação mais positiva com o antropocentrismo moderno. Essa distância pode ser resumida nas duas formulações que seguem: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes”, lemos em Gaudium et Spes, 12 § 1. Laudato Si’, 93 faz a seguinte correção: “Hoje, crentes e não crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”.

A Encíclica situa-se, de fato, entre duas posições consideradas extremas, o mito do progresso e aquele que consiste em querer impedir qualquer intervenção do ser humano no ecossistema (LS, 60), entre um antropocentrismo desviado e seu contrário, o biocentrismo (LS, 118): “Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros […]” (LS, 60). Fruto do antropocentrismo moderno e de suas consequências científicas e técnicas, a tomada de consciência da “autonomia legítima” das realidades terrestres (GS, 36 e LS, 80 e 99) não é negada, e sim reposicionada em novo marco, fornecido por uma teologia da criação mais equilibrada. Esta corrige os mal-entendidos resultantes de uma compreensão errada da prescrição feita ao homem de “dominar a terra” (Gn 1, 28), como se essa passagem “favorecesse a exploração selvagem da terra”, ao passo que se trata, na Bíblia, de “cultivar e guardar o 13 jardim do mundo” (Gn 2, 15; LS, 67) (6) . A Encíclica não nega que “o pensamento judaico-cristão desmistificou a natureza”, mas não tira a conclusão (que poderíamos atribuir à Constituição pastoral, às voltas com todos os contenciosos entre ciência moderna e fé) de um antropocentrismo unilateral. Ela tenta antes articular o respeito pela fragilidade da terra com “a responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo, com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades” (LS, 78).

Pluralismo e diálogo social

A ênfase na pluralidade das culturas e estilos de vida, bem como naquilo que é infinitamente concreto e diverso, sem jamais renunciar ao “todo”, compreendido de maneira poliédrica (se assim posso dizer), leva-nos diretamente à segunda parte do capítulo 4 de Evangelii Gaudium, que trata naturalmente do “diálogo social como contribuição para a paz”. Encontramos ali, certamente, os três ou quatro tipos de relação vital que nos constituem e, sobretudo, os dois planos – nossos “estilos de vida”, constitutivos de nossas culturas, e sua especificação cristã (“o estilo de vida do Evangelho”) – já abordados na primeira parte deste trabalho. Pois falar de diálogo social é algo que exige que nos perguntemos como estabelecer um diálogo, com o que somos, com os outros membros, religiosos ou não, da sociedade. A questão levantada desde o início deste trabalho – como o Evangelho do Reino pode introduzir-se efetivamente em nossa realidade social, econômica e política – aparece novamente de uma forma mais específica.

Francisco a aborda de uma maneira espantosamente nova: não pelo vértice da verdade (embora essa perspectiva apologética não seja negada), mas fazendo advir o “estilo de vida do Evangelho” dentro dos “recursos” dos quais dispõe a humanidade para atravessar a crise social e ecológica que enfrenta. Essa maneira de situar a fé fica especialmente nítida no início do capítulo 2 de Laudato Si’, sobre o Evangelho da criação. O Papa reconhece perfeitamente que “alguns relegam para o reino do irracional a riqueza que as religiões possam oferecer” (LS, 62), mas também mostra que a complexidade da crise exige uma pluralidade de interpretações e aportes: “É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade” (LS, 63). Ele acrescenta que “as convicções da fé oferecem aos cristãos – e também a outros crentes – grandes motivações para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (LS, 64).

No entanto, a ideia de “recurso” supõe que adotemos uma visão multidimensional do homem no seio da criação e que, por conseguinte, todos os atores envolvidos, todas as disciplinas intelectuais e todas as sabedorias – não apenas as ciências e a técnica – tenham voz ativa no diálogo social. É justamente a “sabedoria” que liga aquilo que move a todos e os “recursos” oferecidos pelas religiões e pela tradição cristã, pois a “sabedoria” se insere, por um lado, na “cultura” tomada em toda a sua complexidade e envolve, por outro lado, o conjunto das tradições religiosas, com a especificidade, ao mesmo tempo, da narrativa bíblica.

Essa abordagem espantosamente nova confere todo o seu peso teológico ao reconhecimento do “movimento ecológico” e do fato de ele já ter uma longa história. O “espiritual”, portanto, não é absolutamente reservado aos cristãos, mas já se revela como o fruto do trabalho da sabedoria no seio da humanidade. A sabedoria também se expressa nos textos citados pela Encíclica, não somente nos das diferentes conferências episcopais nacionais e continentais, mas também, e principalmente, na Declaração do Rio sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, reconhecida como “profética” pela Laudato Si’ (LS, 167 e 186), e na Carta da Terra de Haia (LS, 207).

Espero que possamos ter compreendido a postura ao mesmo tempo humilde e exigente que a Igreja assume, pela voz do Papa Francisco, no diálogo social: “nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos”, é o que podemos ler no final da longa introdução, no capítulo 4, de Evangelii Gaudium (EG, 184). E em Laudato Si’, Francisco repete duas vezes que a Igreja “compreende que deva ouvir e promover o debate…” (LS, 46 e 188) (7) .

Para concluir esta parte, convido-os então a ter em mente isto: os dois textos do Papa Francisco não se contentam absolutamente com uma argumentação bíblica, mas desenvolvem um verdadeiro ensino social particularmente atento à sua admissibilidade universal. A Exortação e a Encíclica vencem esse desafio graças a um novo interesse pela narrativa da criação e por uma nova filosofia social, ambos expostos à distância da abordagem antropocêntrica e homogênea da Constituição Gaudium et Spes. A diferença diz respeito à maneira de dar espaço à alteridade e àquilo que é diverso e plural – significado pela metáfora do poliedro –, portanto, ao diálogo social que, se for verdadeiramente conduzido, não deixará de introduzir a fé cristã como “recurso” vital ou como estilo de vida, baseado no princípio de “gratuidade”. Isso me encaminha para uma breve e última parte.

Notas:

(6) Essa interpretação unilateral poderia ser encontrada em Gaudium et Spes, 12 § 3: “A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído (tamquam) senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir (eisque uteretur), dando glória a Deus. Também em 34 § 1: “Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar (subiciens) a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade.”

(7) Trata-se de uma alusão a Gaudium et Spes, 33 § 2. 15

Fonte: IHU