Quando contemplamos nossas juventudes secundaristas e universitárias ocupando corajosamente espaços políticos simbólicos em suas escolas e incomodando a tranquilidade acomodada de tantos já acostumados e resignados com essa sociedade socialmente injusta e desigual, não há como não recordar de Jesus de Nazaré, o profeta da Galileia!
Não há dúvidas quanto a tal fato. Segundo os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), na véspera da festa da Páscoa, Jesus “invadiu” e “tumultuou” ao estorvar a dinâmica de funcionamento do templo de Jerusalém. De acordo com o evangelista Mateus, Jesus incomodou de maneira frontal a tranquilidade do funcionamento do templo. Ele “entrou no templo e expulsou todos os que ali estavam vendendo e comprando. Derrubou as mesas dos que trocavam moedas e as bancas dos vendedores de pombas.” (Cf. Mt 21, 12. Veja também em Mc 11, 15-16; Lc 19, 45-46) E diz que os sumos sacerdotes e os escribas ficaram indignados com essa “invasão”, e que, inclusive, questionaram a autoridade de Jesus e não reconheceram qualquer legitimidade em seus atos naquela sagrada propriedade.
Acontece que ao interrogarem o “invasor”, o que colheram foram reflexões muito críticas, sob a forma de parábolas. E perceberam imediatamente que estavam diante de um homem livre e corajoso diante de Deus e dos seres humanos (Cf. Mt 21, 23-44).
Diante das provocações de Jesus, resolveram prendê-lo, mas ficaram com medo das multidões que o tinham na conta de profeta. Mas o que aquele subversivo da ordem fez não poderia ele sair impune. E eles não desistiram. Resolveram, ao sair dali, fazer um plano perverso para incriminá-lo.
Jesus percebeu-lhes a maldade e disse-lhes com toda clareza: “Hipócritas! Por que me armais uma cilada?”(Cf. Mt 22, 15-22). E pagou um alto preço por concretizar essa postura crítica diante da autoridade. Quando lemos, no capítulo 23, as advertências de Jesus contra eles (“Não imiteis as suas ações! Pois eles falam e não praticam”) e as críticas abertas e diretas (“aí de vós, escribas e fariseus hipócritas! Guias cegos! Serpentes! Víboras que sois! Sepulcros caiados!”), imediatamente encontramos as motivações reais e concretas para a perseguição, prisão e condenação de Jesus à morte. Todos sabem que “quem cutuca onça com vara curta” não sai ileso. “Eles armaram um complô para, à traição, prenderem Jesus e o matarem.” (Cf. Mt 26, 4).
O que um teólogo pretende, ao recordar esse fato tão visitado pelos cristãos, já que todos os anos a liturgia da Semana Santa recorda e atualiza a memória da fidelidade profética de Jesus ao Reino, até as últimas consequências?
A vida cristã nutre-se da memória perigosa de Jesus. A prática libertadora do profeta da Galileia, seus ensinamentos e posturas, inspiram e fundamentam as ações dos discípulos e discípulas de ontem e de hoje. A vida de Jesus tornar-se paradigma e o grande critério de avaliação e auto-avaliação crítica das posturas de cada cristão e da Igreja. Ao recordar os feitos de Jesus, refletimos sobre nossas ideias, atitudes e ações. Confirmamos profeticamente determinados posicionamentos ou, ao percebermos miopias e contradições, corrigimos as rotas. Isso se chama conversão e faz parte do processo diário da busca de ser cristão. A história do cristianismo está cheia de exemplos concretos de mudança de mentalidade e de postura. Basta conhecer de perto, por exemplo, a trajetória de vida de Oscar Romero e Helder Câmara para compreender o que queremos dizer e aonde queremos chegar.
O tesouro precioso que a vida cristã é chamada a oferecer ao mundo não é o modelo de uma sociedade perfeita. Ao contrário, ainda que seja sempre carregado nos vasos de argila de nossos limites, contradições e ambiguidades e, portanto, realidade sempre necessitada de vigilância, avaliação crítica e autocrítica, purificação e conversão, nós cristãos somos chamados a testemunhar, como um fermento transformador da Igreja e de toda a sociedade, a unidade fé-vida. Como nos ensina Carlos Mesters, grande biblista e mestre na arte de educar para leitura popular da Palavra de Deus, a Bíblia e a vida formam o livro pelo qual Deus nos fala. Um deve iluminar o outro na busca da vontade de Deus: viver e conviver, libertados para a prática da justiça, da misericórdia e do amor fraterno. Nessa unidade inseparável fé-vida, urge discernir a presença amorosa de Deus a nos inquietar e a nos impulsionar, criativamente, para a defesa da vida como valor maior.
Assim, acolher a fé no Deus de amor que se revela em Jesus, leva-nos, pela força do Espírito Santo, a viver em comunidades de fé pautadas pela alegria da partilha de vida e pela prática da justiça, da misericórdia e da fraternidade. Impulsiona-nos a abrir o nosso coração para acolher os peregrinos e marginalizados e a dar as mãos aos movimentos populares que defendem a igualdade cidadã e a vida digna para todos. Trata-se de dar testemunho, com o próprio sangue se preciso for, dessa vida nova engendrada quando o amor ocupa a centralidade de nosso ser e agir.
Quando contemplamos nossas juventudes secundaristas e universitárias ocupando corajosamente espaços políticos simbólicos em suas escolas e incomodando a tranquilidade acomodada de tantos já acostumados e resignados com essa sociedade socialmente injusta e desigual, não há como não recordar de Jesus de Nazaré, o profeta da Galileia!
As posturas dessas juventudes devem receber amplo apoio de todos nós. E digo não apenas dos professores e professoras, dos pais e mães, dos cidadãos e cidadãs comprometidos com a construção diária e constante de outra sociedade possível. Devem encontrar sobretudo em nós cristãos: solidariedade, amizade, legitimidade e o encorajamento de irmãos e irmãs, dispostos a dar as mãos e a lutar juntos com eles pela nova sociedade.
Na moral cristã, a vida humana é o bem maior. E nas situações de extrema necessidade – como esta que está sendo criada pela PEC 241/ 55 quando penaliza justamente quem mais precisa, os mais pobres e socialmente vulneráveis e que o faz de uma forma profundamente incoerente e parcial – o bem coletivo está acima do individual. Além disso, há direitos sociais garantidos pela nossa Constituição, como o direito à saúde, à educação, à moradia digna, dentre outros, que não são negociáveis. Ainda mais quando temos consciência sociopolítica de que o ajuste fiscal proposto pelo atual governo não envolve a todos e, incoerentemente, mantém e amplia privilégios para poucos.
Termino utilizando uma categoria teológica para avaliar a postura dos jovens ocupados. Esses jovens estão concretizando uma verdadeira e importante “profecia externa”. Diante de uma profecia, nós cristãos não podemos ser indiferentes sob pena de cairmos em omissão ou hipocrisia.
Jesus tomou consciência de sua missão quando percebeu, com clareza, que a realidade, na qual estava inserido, era profundamente injusta e geradora de pobres e excluídos. Discerniu que estava diante de uma realidade contraditória com o projeto salvífico do Deus da Vida. Não podia ficar indiferente ou passivo. Ele andou na contramão do sistema dominante e permaneceu fiel até o fim.
Os jovens secundaristas e universitários, mesmo que não sejam cristãos, fazem como Jesus. Ao perceberem criticamente o agravamento das desigualdades promovido pelo perverso projeto da PEC 241/ 55, prestes a ser aprovado em nosso país, sem qualquer discussão séria com a sociedade, eles não ficaram indiferentes. Decidiram ocupar e, como Jesus, corajosamente, andar na contramão.
Prof. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
É autor, pela Paulus, juntamente com João Batista Libanio, do livro “Linguagens sobre Jesus. A linguagens dos jovens e da libertação”. É doutorando em Ciências da Religião pela PUC Minas, mestre em Teologia pela FAJE, professor do Departamento de Ciências das Religião e secretário executivo do Observatório da Evangelização PUC Minas.