No contexto da Assembleia do clero da Arquidiocese de Belo Horizonte, cuja caminhada vem sendo norteada pelo Projeto de evangelização “Proclamar a Palavra”, foi priorizado como pauta, refletir sobre os desafios encontrados para ser, de fato, uma Igreja da Palavra.
Para ajudar nesta reflexão foi convidado o teólogo jesuíta, prof. Pe. Francisco Taborda S.J.
Taborda iniciou sua conferência tomando a partir do texto de Sb 18, 14-15. Ele destacou como um primeiro desafio para ser uma Igreja da Palavra a valorização do silêncio interior e exterior. O desafio é que estamos num mundo que não “comunga” esta proposta visto que o barulho se constata através do som alto, dos fones de ouvidos no privado e individual das pessoas; as pessoas estão cada vez mais ligadas aos aparelhos, mas desatentas entre si.
Um segundo desafio para ser uma Igreja da Palavra, segundo Taborda, é o de não confundir a Palavra com a multiplicação de palavras. Impõem-se aqui, o desafio de reaprender a falar por meio dos símbolos, pois, estes contém a realidade simbolizada e, ao mesmo tempo, a torna presente. Na busca de traduzir o que foi dito noutro tempo e muito antes de nós, seremos uma Igreja da Palavra cada vez que usarmos uma linguagem nova para anunciar a mesma palavra de antes.
Para ser uma Igreja da Palavra, fiel à mesma, um terceiro desafio, é o de não obscurecer a Palavra feita carne. Jesus, o Verbo de Deus, deve ser testemunhado vivo no mundo em que vivemos. Neste horizonte, é preciso que Cristo transpareça e se faça presente na proclamação da Palavra. Neste contexto, o desafio é a superação dos shows celebrativos por parte dos ministros ordenados, o que, por sua vez, supera-se ao reconhecer que Cristo se faz presente também através dos leitores, na assembleia e de várias maneiras na liturgia.
Leia, a seguir, na íntegra o texto:
O desafio de ser uma Igreja da Palavra
A antífona de entrada do sexto dia na oitava do Natal servirá como introdução para a temática proposta. Baseando-se em Sb 18, 14-15, o referido introito reza:
Enquanto um profundo silêncio envolvia o universo
e a noite ia no meio do seu curso,
desceu do céu, ó Deus, do seu trono real
a vossa Palavra onipotente.
No contexto do Natal, a Palavra de que fala o introito só pode ser a Palavra feita carne, o Verbo de Deus consubstancial ao Pai. Dele se diz que “desceu do céu”, tal como o expressa também o Credo Niceno-Constantinopolitano. Mas o que primeiramente deve ser observado é que isso acontece “enquanto um profundo silêncio envolvia o universo”. Como que a sugerir que a Palavra só pode ser ouvida se antes houver silêncio. E o texto acrescenta ainda que a Palavra aparece enquanto “a noite ia no meio do seu curso”. Significa que a Palavra é luz para iluminar as trevas da noite.
O silêncio na Igreja da Palavra
O silêncio, onde ressoa a Palavra, é um primeiro elemento a ser considerado. Se é em meio ao silêncio que se pode escutar a Palavra, nossa época histórica não está aberta a essa escuta. Resulta, pois, que o primeiro desafio para sermos uma Igreja da Palavra é valorizar o silêncio.
Que o tempo atual seja infenso ao silêncio não precisa de demonstração. Basta que observemos os passantes nas ruas: uma imensa porcentagem traz fones de ouvido. Poderíamos defendê-los: é um meio de proteger-se contra os ruídos do trânsito. Até pode ser que seja. Mas essas mesmas pessoas, ao chegar em casa, ligam a televisão. Ela tem que estar ligada, embora ninguém esteja sentado diante do aparelho para prestar atenção ao que está sendo transmitido. Caso estas pessoas estejam de carro, já ao entrar nele e ligar o motor, automaticamente o rádio começa a transmitir músicas, propagandas ou o que seja. Se o carro for dotado de um sistema de som de grande potência, toda a rua estará obrigada a ouvir a música que eu quero ou de que eu gosto. Se isso acontece à meia-noite ou às três da madrugada, quando estou voltando de uma balada, problema de quem está dormindo; o que importa é que eu quero ouvir.
Se você faz uma festa, o som não pode faltar, mas bem alto. Quem quiser conversar que grite. Silêncio é morte. Falar sussurrando talvez sirva para um velório. Grite mais alto que o som que deveria ser “som ambiente”. Se você for à Igreja, também deve haver um som alto, senão supostamente não atrai os jovens. O “silêncio sagrado” em que o Concílio insiste é para a Europa, não para o Brasil. Ponha o microfone na maior altura e quem puxa o canto que o faça sobressaindo a todos, de forma que não se note se a assembleia está ou não acompanhando o canto, participando dele. O importante é que o som se imponha a nossos ouvidos. Assim fazem os neopentecostais: nessas tantas Igrejas de garagem, o som é ouvido no quarteirão inteiro e às vezes para lá do quarteirão, embora a igreja tenha apenas cinco fiéis.
Para ouvir a Palavra requer-se silêncio. Silêncio exterior e silêncio interior. A Sacrossanctum Concilium o apresenta como condição para a participação ativa dos fiéis (cf. SC 30). Em nossa cultura que detesta o silêncio, será um ato contracultural fomentar o silêncio. Mas é uma verdadeira participação na liturgia e – não só – constitui condição para assimilar a Palavra de Deus. Sem silêncio interior e exterior (pois não há silêncio interior sem silêncio exterior), a Palavra de Deus entra por um ouvido e sai pelo outro. Educar nossos contemporâneos e a nós mesmos para o silêncio é o primeiro desafio que se apresenta para sermos uma Igreja da Palavra.
A linguagem simbólica na Igreja da Palavra
Um segundo desafio é não confundir a Palavra com a multiplicação de palavras, o nosso blá-blá-blá que às vezes confundimos com a transmissão da Palavra de Deus. A sabedoria antiga tinha um dito latino muito sábio: Non multa, sed multum. Poderíamos traduzir livremente – ou mais exatamente – perifrasear: Não muitas coisas/palavras, mas um conteúdo de peso. E conteúdo de peso não significa um texto hermético. Quanto mais profundamente tivermos assimilado um conteúdo, tanto melhor poderemos expressar para qualquer auditório.
Exemplificando mais uma vez com a liturgia, não se transmite a Palavra pela multiplicação de pseudo-homilias ou de comentários para cada parte da celebração. As muitas explicações não substituem o simbólico, ainda mais nestes tempos em que o simbólico é entendido como um “faz de conta”.
Uma Igreja da Palavra não pode ser uma Igreja que reduz tudo a discursos, por mais elaborados que seja. O desafio é reaprender a falar por meio de símbolos. Nossa linguagem sobre Deus não pode ser simplesmente a linguagem oral; ela tem de ser simbólica. Símbolos não exigem explicação; devem falar por si mesmos. E o fazem, se executados com tranquilidade, dignidade, sem pressa, com abundância de material visível.
Para falar claro: derramar umas gotas d’água na cabeça de alguém não diz nada – ou diz muito pouco – mesmo que seja canonicamente suficiente para um batismo válido, mas um banho batismal, em que alguém mergulha na água e sai com vida é significativo, percebe-se que se trata de morte e vida. Semelhantemente se poderia dizer do pão da eucaristia. As hóstias que usamos – poderia dizer-se ironicamente – requerem um duplo ato de fé: primeiro precisamos crer que aquilo é pão; depois que é o corpo de Cristo. Uma unção não pode ser um simples besuntar de leve uma pessoa com o polegar. E nada disso pode ser substituído por doutas explicações. Por mais que nos detenhamos em longos esclarecimentos, as muitas palavras não substituem a eloquência do símbolo.
É, portanto, desafio para ser Igreja da Palavra o aprender que os símbolos contêm a realidade simbolizada e a tornam presente. Num mundo em que há tanto ruído, tantas palavras vazias ecoando por aí, numa cultura em que símbolo significa “faz de conta”, é urgente educar e educar-nos para “ouvir” os símbolos. A principal maneira de fazê-lo é valorizar o simbólico pela maneira de executá-lo.
O testemunho na Igreja da Palavra
O texto do introito citado para iniciar esta reflexão fala também de que a Palavra desce do céu, quando “a noite ia no meio de seu curso”, ou seja, em meio à maior escuridão. A Palavra vem para iluminar, é, como diz o salmo, “lâmpada para meus pés” e “luz para minhas veredas” (Sl 119,105). Para iluminar a noite atual, a Palavra precisa ser traduzida, testemunhada, concretizada, senão estaremos escondendo a luz “debaixo da caixa” em vez de pô-la “sobre o candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão na casa” (Mt 5,15). Eis um novo desafio, ou melhor: um novo aspecto do desafio de ser uma Igreja da Palavra: dizer com linguagem nova o que foi dito na linguagem de outros tempos. É descobrir a imagem adequada para traduzir e transmitir a Palavra do Evangelho eterno (cf. EG 157). Mas traduzir é principalmente testemunhar nas circunstâncias atuais a Palavra que não nos foi dita para nos informar sobre uma verdade, mas para vivê-la no dia a dia. A Palavra, como dizia Paulo VI, “não adquire todo o seu sentido senão quando ela se torna testemunho” (EN 15) e reconhecia que nossos contemporâneos escutam “com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres […] ou então se escuta[m] os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41; cf. EG 150).
Este desafio de ser luz nas trevas consiste em sermos testemunhas daquilo que cremos, sem por isso deixar de “dar a razão de nossa esperança” (1Pd 3, 15; cf. EN 22) pelo anúncio explícito, também ele em linguagem inteligível a nossos contemporâneos.
O encontro com o Ressuscitado na Igreja da Palavra
Por fim, o grande desafio de que nossas palavras não obscureçam a Palavra feita carne que é o próprio Verbo de Deus que veio armar sua tenda no meio de nós (cf. Jo 1, 14) e, ressuscitado, continua presente no mundo. Trata-se de crer e dar testemunho da presença viva do Cristo ressuscitado no mundo em que vivemos, sem esquecer que o Ressuscitado é o Crucificado que traz em seu corpo glorioso as chagas da paixão (cf. Jo 20, 20.27). Por isso o papa Francisco não se cansa de convidar-nos a contemplar todas as chagas de Jesus nas chagas de nossos contemporâneos sofredores. Lembra-nos assim de uma verdade já recordada por Paulo VI na encíclica Mysterium fidei, quando, falando da diversidade de formas como Cristo está presente entre nós, menciona – para além da presença na liturgia ensinada pelo Concílio em Sacrossanctum Concilium 7 – a presença de Cristo no pobre e necessitado (cf. Mt 25) (cf. MF 35).
Para que a liturgia testemunhe a presença do Ressuscitado e nele transpareça sua presença, é preciso que o ministro ordenado que a preside, renuncie a ser protagonista. Com as palavras de Bento XVI na Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum caritatis: “Contradiz a identidade sacerdotal toda tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da ação litúrgica” (SCar 23). Nesse sentido, presidir a eucaristia não é ser um showman, um cantor, um ator teatral, um animador de auditório, mas ser um mistagogo, alguém que, por sua atitude, por suas palavras, por seus gestos, introduz no mistério, que é Cristo presente. “É preciso que ele cresça e eu diminua” (Jo 3, 30).
Tomemos consciência ainda de que o ministro ordenado que preside a eucaristia não pode ser protagonista até porque Cristo não está presente somente através de sua pessoa e atuação. O Concílio ensina que ele está presente na própria assembleia litúrgica, de acordo com a promessa de Jesus: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali eu estarei, no meio deles” (Mt 18, 20). É o que o Missal Romano para o Brasil nos instrui a repetir tantas vezes exclamando “Ele está no meio de nós”, quando o ministro ordenado deseja “O Senhor esteja convosco”. Já no início da celebração louvamos a Deus por nos ter reunido em Cristo: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”. Já neste início, na assembleia reunida, Cristo está presente vivo, ressuscitado em seu corpo que é a Igreja. O papa Francisco recordou-o no discurso dirigido aos participantes de 68ª Semana Litúrgica da Itália: “Por sua natureza a liturgia é, de fato, ‘popular’ e não clerical, sendo – como ensina a etimologia – uma ação para o povo, mas também do povo”.
Outro aspecto desse desafio de ser Igreja da Palavra é deixar que transpareça que Cristo está presente na proclamação da Palavra, através do ministério dos leitores. Estes emprestam suas bocas para que Cristo fale à Igreja. O Concílio afirma que ele está presente “quando na Igreja se leem as Sagradas Escrituras” (SC 7). É ele, pessoalmente, o Cordeiro imolado, o único capaz de abrir o livro da história de Deus no meio dos humanos. À luz de Cristo, iluminados por ele, tornamo-nos capazes de entender o sentido da história, de nossa história particular e de toda a história da humanidade. Toda essa história nos fala dele e de sua presença entre nós.
Mas o Concílio acrescenta mais: também a palavra da pregação, a atividade missionária da Igreja “torna Cristo presente, autor da salvação” (AG 9; cf. Lc 10, 16). Ou, nas palavras de Paulo VI: “Cristo está presente à sua Igreja, enquanto ela prega, sendo o Evangelho, assim anunciado, Palavra de Deus, que é anunciada em nome de Cristo, Verbo de Deus encarnado, e com sua autoridade e assistência” (MF 36). Aqui se manifesta a nossa responsabilidade ao pregar. Não deixemos que nossas muitas palavras se sobreponham ou obscureçam a única Palavra que deve ser ouvida: a Palavra feita carne que habitou entre nós. Para não nos desviarmos, a homilia e a catequese devem ser como que incubadas na reflexão sobre a Escritura e na oração.
Essas diversas formas de presença são reais. Como Paulo VI ensina: a presença de Cristo sob as espécies eucarísticas “chama-se ‘real’, não por exclusão como se as outras [formas de presença] não fossem ‘reais’, mas por antonomásia porque é substancial” (MF 41), ou seja: as demais maneiras da presença de Cristo não são fictícias e meramente nominais, metafóricas, irreais.
Por fim, lembremos que assim é graças à ação do Espírito Santo. Como disse lapidarmente o teólogo oriental Inácio Haquim, posteriormente eleito patriarca ortodoxo de Antioquia:
Sem o Espírito Santo, Deus está distante; Jesus Cristo fica no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, um despotismo; a missão, uma propaganda; o culto, uma simples recordação; o agir, uma moral de escravos.
No Espírito Santo, porém, e em sua sinergia indissociável, o cosmo se levanta e geme até que dê à luz o Reino; o ser humano luta contra a carne; o Cristo Ressuscitado está aqui presente; o Evangelho é poder de vida; a Igreja significa a comunhão trinitária; a autoridade é um serviço libertador; a missão, um novo Pentecostes; a liturgia, um memorial e uma antecipação; e o agir humano é divinizado.
(Os grifos e subtítulos são nossos)
Pe. Francisco Taborda, SJ é doutor em Teologia pela Universidade de Münster, Alemanha. É professor emérito de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). A produção bibliográfica de Taborda compreende 29 livros (muitos dos quais reedições revistas e aumentadas ou traduções de seus livros para outros idiomas), 64 capítulos de livros, 115 artigos científicos e 316 resenhas. Grande parte desta produção é dedicada aos temas que trabalhou em sua docência e pesquisa: sacramentos e mariologia. Uma parte significativa é o resultado de seu trabalho como membro em equipes teológicas: CRB: Conferência dos Religiosos do Brasil (1982-2000), CLAR: Confederação Latino-Americana de Religiosos (1981-1997), e como assessor: AEC: Associação de Educação Católica do Brasil (1980-1986), CIMI: Conselho Indigenista Missionário do Mato Grosso (1986-1996), INP: Instituto Nacional de Pastoral (1987-1995). Dentre suas obras podemos mencionar: O Memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009; Matrimônio, aliança, reino: para uma teologia do matrimônio como sacramento. São Paulo: Loyola, 2001; A igreja e seus ministros: Uma teologia do ministério ordenado. São Paulo: Paulus, 2011; Nas fontes da vida cristã: uma teologia do batismo-crisma. São Paulo: Loyola, 2001; Sacramentos: práxis e festa. Petrópolis: Vozes, 1987; Cristianismo e ideologia. Ensaios Teológicos. São Paulo: Loyola, 1984.