O desafio das relações de poder

Não é tarefa simples refletir sobre a sedução do poder e discernir seus desdobramentos e impactos na vida humana, na família, na complexa organização da sociedade e, o que aqui mais nos interessa explicitar, na dinâmica da vida eclesial. Lidar com o poder é um desafio contínuo e que está muito presente na vida da gente, talvez no mesmo nível de complexidade da busca de equilíbrio diante dos encantos exercidos sobre nós pelo ter e pelo prazer. Enquanto realidades constantes, sempre presentes na dinâmica da vida humana, o modo como lidamos com elas é decisivo em nossas relações cotidianas. Saber compreender e lidar com as dimensões do poder, do ter e do prazer faz toda a diferença na configuração e no jeito de concretizarmos as nossas relações sociais e, igualmente, institucionais no mundo da família, do trabalho, da política e da religião.


O poder nas relações familiares e sociais

No âmbito da família é visível o estrago que o patriarcalismo fez e continua a fazer entre nós. A cultura do poder patriarcal dominou entre nós e continua, com configurações camufladas e intensidades diversas, a fascinar o agir de muitos homens. Não dá para negar ou esconder o fenômeno trágico da violência doméstica como manifestação doentia do patriarcalismo entre nós. São incontáveis as vítimas, muitas delas fatais, que as práticas machistas fazem no seio da família. É trágico o silenciamento violento de mulheres que, em sua legítima busca de libertação e de reconhecimento da igual dignidade humana, ousam questionar sua situação de opressão.

Depois de tanta denúncia e comprovação de violência doméstica, da opressão sobre a mulher, de reflexões críticas e lutas por libertação, por que ainda não conseguimos transformar as relações de dominação e de violência no seio da família em relações de poder compartilhado, relações pautadas pelo respeito mútuo, pelo diálogo, pela corresponsabilidade e pela busca de cooperação na partilha da vida e dos dons e serviços, em vista do desenvolvimento das potencialidades de cada membro e do bem comum? Será que não acreditamos no amor que cuida e promove?

No âmbito da sociedade, infelizmente, não é diferente. O poder econômico e o poder sociopolítico se concretizam como fatores de dominação de uns sobre os outros e de exclusão dos mais pobres e vulneráveis. Quanto mais poder acumulado, maior o mecanismo utilizado para tiranizar, formar castas ou classes, conquistar, impor e ampliar privilégios na dinâmica da vida em sociedade. O poder perde o senso de justiça e de coletividade, o sentido maior de serviço e de cuidado para com o bem estar de todos e assume a diabólica forma de disputa e dominação dos mais fortes sobre os mais fracos. A busca pelo poder, econômico e sociopolítico, passa a ser um fim em si mesmo e quem consegue conquistá-lo, parece tornar-se cego, pois passa a assumir em suas posturas uma espécie de “lógica do vale tudo” para nele se perpetuar e ampliar privilégios em cima de privilégios. No ambiente de trabalho, no interior de muitas empresas, as denúncias de assédio moral e sexual, bem como de diversos outros abusos encetados por quem ocupa cargos de chefia sobre seus subalternos, revela igualmente a presença de manifestações doentias nas relações assimétricas de poder.

Aqui igualmente cabe a questão central: depois de tanta denúncia e comprovação de violência e de exclusão social, de reflexões críticas e de lutas por libertação, de iniciativas criativas participativas e cooperativas, por que ainda não conseguimos transformar as relações de dominação, de exclusão e de violência presentes na dinâmica da vida em sociedade em relações de poder regradas pelo pacto social e pela Constituição, relações de poder fundadas no respeito à vida e aos direitos humanos, no diálogo, na corresponsabilidade e na busca de cooperação na partilha justa dos bens e serviços em vista do bem viver e do bem comum? Será que não acreditamos na paz que nasce da justiça e do respeito mútuo?


E as relações de poder no âmbito religioso?

No âmbito religioso, nas vivências compartilhadas em comunidades de fé, no interior das diversas organizações e instituições religiosas as relações de poder acontecem de forma diferente, humanizada? Com sinceridade temos que reconhecer que infelizmente não. Há igualmente muita denúncia e comprovação de relações de dominação e de abuso religioso, moral e sexual dos mais vulneráveis, relações abusivas causadoras de grande sofrimento para as vítimas e de fragilização dos vínculos ou mesmo de afastamento de muitos cristãos da Igreja por se sentirem escandalizados, feridos, magoados, infantilizados ou menosprezados em seu desejo de participar e contribuir de forma corresponsável.

Aqui não temos a pretensão de investigar o que ocorres no seio das diversas tradições religiosas, mas de discutir a gravidade do exercício deturpado do poder clerical e do mau uso das estruturas criadas para o seu exercício no contexto atual do Cristianismo Católico. O problema do clericalismo, enquanto centralização e deturpação do exercício do poder religioso na dinâmica da vida da Igreja, vem sendo objeto de muitas reflexões importantes e está, de forma recorrente, entre as principais preocupações do magistério do papa Francisco, que chega a considerá-lo como um câncer na vida da Igreja. Um rápido levantamento, pela Internet mesmo, dá acesso a centenas de denúncias, depoimentos, investigações e condenações por abuso de poder, pesquisas, análise e reflexões antropológicas, sociológicas e teológico-pastorais pertinentes sobre o clericalismo e suas consequências, seja no sentido de promover, indiretamente, a perda de credibilidade do anúncio da fé cristã como fonte de vida nova e da instituição eclesial, seja para o alcance da ação evangelizadora da Igreja no mundo em que vivemos.

Contemplemos antes de refletirmos sobre as relações de poder humanizadas na dinâmica da fé cristã, o alerta de Jesus aos seus discípulos e discípulas e a sua práxis libertadora enquanto Profeta do Reino de Deus e Mestre do Caminho.


O alerta e exemplo paradigmático de Jesus

Jesus faz um forte alerta aos seus discípulos e discípulas. No Evangelho do Reino, segundo Marcos, lemos que Jesus, ao perceber acirradas disputas de poder entre os apóstolos, disse a eles:

Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.”
Mc 10, 42-45

Este mesmo alerta aparece também no Evangelho segundo Mateus (Mt 20, 25-28) e no Evangelho segundo Lucas (Lc 22, 25-28). Sendo que, neste último, a narrativa assume uma clareza incisiva inquestionável:

Os reis das nações as dominam, e os que as tiranizam são chamados benfeitores. Quanto a vós, não deverá ser assim; pelo contrário, o maior dentre vós torne-se como os mais jovens, e o que governa como aquele que serve. Pois, qual é o maior: o que está à mesa, ou aquele que serve? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve!“.
Lucas 22, 25-28

Jesus se coloca como referência testemunhal paradigmática: depois de explicitar que culturalmente aquele que é servido tem maior dignidade reconhecida do que aquele que serve, diz que ele está em nosso meio “como aquele que serve!”. E encontramos no Evangelho segundo João a narrativa da última ceia, com a descrição do lava-pés (João 13, 1-17), na qual discernimos uma singularidade que oferece grande lucidez para a temática aqui em questão:

Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e voltou ao seu lugar. Disse aos seus discípulos: ‘Entendeis o que eu vos fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor; e dizeis bem, porque sou. Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais assim como eu fiz para vós. Em verdade, em verdade, vos digo: o servo não é maior do que seu senhor, e o enviado não é maior do aquele que o enviou. Já que sabeis disso, sereis felizes se o puserdes em prática.
João 13, 12-17

O modo realista com que Jesus aborda a questão do poder no interior de seu grupo oferece uma chave de compreensão crítica e autocrítica (podemos avaliar os outros e nos autoavaliar) e uma perspectiva libertadora para as relações com o poder e de poder muito interessante. Isso porque Jesus deixa muito claro o que dá legitimidade ao exercício do poder em nossas relações humanas. Não é a possibilidade de exercer qualquer domínio sobre os outros, mas a de decidir, por amor e gratuidade, se colocar a serviço dos outros. Sem essa perspectiva libertadora, a realidade no mostra que o poder facilmente se perverte e se deturpa.

Na 2ª parte deste texto refletiremos sobre o desafio de construir relações de poder humanizadas no seio da Igreja a serviço da evangelização corresponsável e participativa.

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Edward Guimarães
É teólogo católico leigo. Doutor em ciências da religião pela PUC Minas (2020) e mestre em teologia pela FAJE (2006). Professor do mestrado em teologia prática e do departamento de ciências da religião da PUC Minas, universidade onde coordena a equipe executiva do Observatório da Evangelização. É membro da Sociedade de teologia e ciências da religião (SOTER), da comissão para o ecumenismo e o diálogo inter-religioso do Regional Leste 2 da CNBB, do grupo de pesquisa Teologia e Pastoral, do grupo Emaus e da Comunidade Bremen.