Nossa condição vulnerável e nosso horizonte de Graça

Não é fácil ouvir de outros que devemos ter força de vontade, ou que ela nos falta diante de um comportamento negativo repetido ou mesmo compulsivo. Por mais que sigamos orientações de amigos e colegas, as dicas ou fórmulas mágicas parecem não funcionar conosco. No fim, acabamos adicionando mais culpa ao nosso cenário particular já difícil. Será mesmo que conseguimos mudar comportamentos que consideramos ruins com força de vontade ou seguindo padrões de comportamentos prescritos? Definitivamente, não! Por isso mesmo, não precisamos ter culpa por não conseguir, pois não é esse o processo.

Não podemos negar dois fatos acerca do ser humano: primeiro que agimos a partir de desejos que não são construídos no presente, pois os momentos presentes são constantemente tentativas de suprir vazios e lidar com desejos do passado. Em segundo lugar, esses desejos não são evidentes, não estão escritos em um diário, ao contrário, eles são de uma ordem mais complexa, a do não-dito. Jacques Alain Miller, importante psicanalista francês, nos mostra que o real não pode ser concebido apenas como “necessário”, isto é, a partir da permanência das leis, na forma do superego ou do impossível. Claro, o real está relacionado com o impossível – no sentido do impossível de simbolizar – mas também com a contingência. Se a experiência analítica dá acesso ao real, ela o faz por meio da contingência: contingência de transferência, contingência de manifestações sintomáticas e contingência de conhecimento. Em última instância, o processo de análise permite um maior fluir do inconsciente, retirando as fantasias infantis, por vezes permitidas por traumas passados.

Nossa vulnerabilidade está presente em diversos momentos humanos: quando nascemos estamos em extrema dependência dos outros, somos colocados em um colo, vulneráveis. Quando morremos, também a dependência surge intensamente… Somos vulneráveis na morte.

Dessa forma, alcançamos uma convicção psicanalítica de que o corpo humano possui um excesso de sentido, que não pode ser manipulado pela razão e pela ciência. “Isso porque aqui estariam os registros desejante e pulsional do corpo, irredutíveis que seriam ao conceito de organismo” (BIRMAN, 2001, p. 58). O desamparo humano desloca-se de sua possível passividade para uma tomada de decisão da finitude como gramática genuinamente existencial, um “não-temer” a morte como horizonte que impulsiona a vida a se construir, alicerçada numa esperança de gratuidade. Mais ainda, a ousada profecia de que “são precisamente eles, os justos da história, quem nos sustenta na consciência agônica vivida como experiência de viver até o último suspiro. Uma existência niilista enquanto é vivida nos limites de si mesmo” (MENDOZA, 2011, p.191).

            Contribui também à nossa reflexão, a afirmação do teólogo Hurtado, para quem a partir da kênosis é preciso levar a sério todo o processo da encarnação história de Deus. “Por ela sabemos que a Encarnação não é algo neutro e genérico. É preciso afirmar, portanto, que somente observando o ser pobre de Jesus (e sua identidade com os pobres) podemos perscrutar o verdadeiro ser de Deus” (HURTADO, 2013, p. 97). Deus, em Jesus, mostra seu rosto concreto, sua carne pobre na qual historicamente revela o sentido antropológico e teológico mais profundo do ser humano. A totalidade da vida de Jesus não revela apenas quem Deus é, mas como ele age na história, sempre a partir do corpo concreto do outro.

O apóstolo Paulo afirma nossa dimensão de vulnerabilidade: “Irmãos, temos um tesouro — Cristo — em vasos de barro”. O Papa Francisco conecta Paulo à nossa realidade: “este tesouro de Cristo nós temo-lo, mas na nossa fragilidade: nós somos de barro”.  Francisco afirma que a dimensão de vulnerabilidade humana é um ponto central nas cartas paulinas. Dessa maneira, “o Senhor diz a Paulo: ‘O meu poder manifesta-se plenamente na debilidade. Se não há debilidade, o meu poder não se pode manifestar’”. Nossa condição é de vulnerabilidade e temos necessidade de ser curados. Paulo diz isto com vigor na sua carta aos Coríntios: “estamos atribulados, perplexos, perseguidos, abatidos como manifestação da nossa debilidade”. “Uma das coisas mais difíceis na vida é reconhecer a própria vulnerabilidade”, acrescenta o pontífice.

A dimensão de vulnerabilidade é o horizonte humano em suas possíveis e sublimes singularidades…

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É católico leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.