Natal de Jesus Cristo“As circunstâncias são de extrema simplicidade e compreensíveis apreensões: o ambiente desfavorável, a solidão, o primeiro parto, as faixas de pano, um lugar de repouso para o recém-nascido. Mas, em si, nada de muito diferente do que ocorre diuturnamente, em todos os tempos, em todos os lugares, com os incontáveis que nascem numa terra que não é sua, nunca será sua… do lado de fora de todas as casas, deserdados filhos de Eva, gemendo, chorando, num vale de lágrimas… Não poderia ser diferente com Jesus Cristo, este arauto do reino da fraternidade, da compreensão, do perdão, da delicadeza, da bondade… coisas que tanto desejamos e amamos, mas que insistimos em deixar de fora das portas de nossa vida… Se voltássemos a ser crianças, por um só instante, e víssemos, com a perspicácia de seu olhar, o que nos tornamos… sem nenhum espaço mais para o inesperado e o que poderia vir e ainda ser. Apenas isto e teríamos em nossa vida um novo Natal.” Frei Prudente Nery
(1952-2009)
Geograficamente, Belém (bit+ilu+lachama: casa de lachama, a deusa cananéia da fertilidade / bet+lahm: casa da carne / bet+laham: casa do pão) era apenas uma pequena vila, encravada nos montes da Judéia, a cerca de 7 km a sudoeste de Jerusalém. Um vilarejo, historicamente, desimportante em Israel, a não ser por dois fatos longinquos e memoráveis. Primeiro, ali, em suas proximidades, fora sepultada (século XVIII a.C.) Raquel, a bela pastora (Gn 29, 17) e esposa predileta do Patriarca Jacó, após dar à luz seu filho Benjamim (Gn 35, 16-19), tornando-se assim um lugar sagrado para todos os descendentes de Jacó. Segundo, oito séculos depois (em torno do ano 1000 a.C), a mando de Deus, por ali teria passado Samuel, o último dos juízes em Israel, à procura de um novo rei. Por sua frente desfilam, então, os sete primeiros filhos de Jessé, o belemita. Sobre nenhum deles recai a escolha de Deus, pois assim afirma o Senhor aos ouvidos de Samuel: Não observes apenas as aparências, nem apenas a estatura… os homens vêem o exterior, mas o Senhor vê o coração. E nenhum destes foi o escolhido (1Sam 16). Por fim, Samuel pergunta a Jessé: Acabaram-se os teus filhos? Ele respondeu: Ainda falta o mais moço, Davi, que está apascentando as ovelhas. Então mandou chamá-lo. Ao vê-lo, disse o Senhor a Samuel: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. Daquele dia em diante, o Espírito do Senhor se apossou de Davi, o pastor, o último dos filhos de Jessé de Belém de Éfrata. Afora isso, nada mais era Belém. Mil anos depois, na mesma e insignificante Belém (Miq 5, 1), distante de Roma, a cidade (urbs) por excelência e lugar do trono de César Augusto, longe de Atenas, Éfeso, Jerusalém, as metrópoles do saber e das riquezas, e Antioquia, onde estava o Palácio de Quirino, uma outra história, na qual Deus repete quase as mesmas palavras: Não observai as aparências. Os homens vêem o exterior, mas Deus vê o mais profundo (coração). A paisagem não mudara muito, apesar dos séculos. Eram os mesmos montes com suas parreiras e resistentes oliveiras. As pastagens continuavam relativamente abundantes e, nelas, pequenos gados e os pastores. E, desta vez, José, um carpinteiro da Galiléia, e Maria, sua esposa. Em Belém, distante de sua casa, localizada em Nazaré, a cerca de 110km, ou quatro dias de viagem em condições ordinárias, deu-se o dia do nascimento de Jesus. As circunstâncias são de extrema simplicidade e compreensíveis apreensões: o ambiente desfavorável, a solidão, o primeiro parto, as faixas de pano, um lugar de repouso para o recém-nascido. Mas, em si, nada de muito diferente do que ocorre diuturnamente, em todos os tempos, em todos os lugares, com os incontáveis que nascem numa terra que não é sua, nunca será sua… do lado de fora de todas as casas, deserdados filhos de Eva, gemendo, chorando, num vale de lágrimas. Aparentemente, uma desventura fortuita, uma infelicidade circunstancial dos pais de Jesus. Ocorreu que, enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, diz Lucas. Se bem observarmos, porém, um dado permanente da história humana. É sempre assim, enigmaticamente, sempre assim: Nunca há lugar para o essencial, na hospedaria dos homens. Sempre tudo lotado a mais não conter: o tempo, o espaço, a mente, as esperas, os corações, as preces, a vida. Roma, eternamente preocupada em produzir decretos. Quirino, ele tem que governar. Os governados, estes devem cumprir seus muitos deveres. Jerusalém, fiel a seu próprio nome (Jerushalajim: a sagrada), cuida intensamente das coisas do templo. E Belém, também nela não há mais nenhum lugar. Não, nada disso é apenas uma fatalidade casual, mas quase uma constante em nosso mundo: para aquilo que verdadeiramente é sagrado em nossa vida nunca temos lugar nas estalagens de nós mesmos. Não poderia ser diferente com Jesus Cristo, este arauto do reino da fraternidade, da compreensão, do perdão, da delicadeza, da bondade… coisas que tanto desejamos e amamos, mas que insistimos em deixar de fora das portas de nossa vida. Tem razão Gibran Kalil Gibran, em seu triste e verdadeiro poema em prosa: Visita-nos a verdade guiada pelo sorriso de uma criança ou o beijo da amada e nós trancamos as portas de nossos sentimentos em sua face como diante de um criminoso. O coração humano apela para nós e a alma nos chama, mas permanecemos mais surdos do que o metal e insensíveis. Assim os anos passam e seguimos distraídos e os dias e as noites nos convidam, mas permanecemos indiferentes… Vivemos no pó, quando os céus nos querem e pisamos o pão da vida, enquanto choramos de fome. Amamos a vida, mas vivemos tão longe dela. Talvez isso, apenas isso precisasse acontecer, nesta noite, como o grande milagre de nossa própria redenção. Que, com os olhos de uma criança, contemplássemos a nossa vida, sem distorções e, com sua espontaneidade e irreverência, perguntássemos, sem perturbação, e respondêssemos a nós mesmos, com a veracidade das crianças, sem mil desculpas: Para que serve esta estranha normalidade de nossa vida, em que nos ocupamos com tudo, de manhã à noite e até em nossos sonos, cheios de tudo, enquanto nossa alma, em misteriosa saudade, se sente assim tão longe do essencial. Se voltássemos a ser crianças, por um só instante, e víssemos, com a perspicácia de seu olhar, o que nos tornamos: Não tanto adultos, mas adulterados no que de melhor éramos ou poderíamos ser. Em vez de soberanos, apenas soberbos. Em vez de pacíficos, apenas apáticos. Em vez de tolerantes, apenas indiferentes. Em vez de ricos, apenas repletos de posses. Em vez de firmes, apenas inflexíveis. Em vez de resistentes, apenas insensíveis. Em vez de fortes, apenas truculentos. Em vez de experientes, apenas rígidos e aprisionados em nossos costumes. Trancados no domínio de nossas conquistas, como Roma dentro de seu império. Reclusos em nossos afazeres, como Quirino em seus palácios de Antioquia. Impenetráveis, como Jerusalém atrás de seus muros. Como as hospedarias de Belém: sem nenhum espaço mais para o inesperado e o que poderia vir e ainda ser. Apenas isto e teríamos em nossa vida um novo Natal. Se saíssemos, por um pouco ao menos, das fortalezas de nossa normalidade e, quais pastores na noite, olhássemos para o alto, para a vastidão do infinito que recobre o mundo como um manto de delicadeza, se contemplássemos as estrelas do céu que nunca serão nossa posse, mas que ornam de cintilante beleza o escuro da noite, se ouvíssimos, como eles, a delicada melodia de nossa solidão no universo, se admirássemos o mundo com a simplicidade de seus olhos… e, com tais olhos, observássemos, mais que as aparências, o profundo (coração) de todas as coisas, veríamos, seguramente, derramarem-se sobre o mundo e sobre os homens os sorrisos de Deus (anjo): Na pobre e insignificante Belém, no último de todos os filhos de Jessé, um grande rei (Davi) e num menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura, o Filho de Deus. Multidões de anjos a isto se ajuntariam. E saberíamos que Deus está conosco (Immanuel)… para sempre. Pois este é o segredo de Belém: Não observes apenas as aparências… mas olha o profundo (coração) de todas as coisas. É o que nos diz, na linguagem de sua simplicidade, esta noite. Aqui tem início o Cristianismo, que, segundo um de seus primeiros mártires, nada mais é do que o mistério da simplicidade (mysterium simplicitatis). Pois nós que já sabíamos do poder de Deus e conhecíamos a força de seus braços, agora podemos contemplar a sua imensa delicadeza e proximidade: Jesus Cristo. Diante dele a fé, maravilhada, ousa dizer: Verdadeiramente, o inefável se fez carne e habitou entre nós! (os grifos são nossos) Fonte: |