O Observatório da Evangelização, em sintonia com toda a Igreja da América Latina que se prepara para celebrar os 40 anos da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Puebla, compartilha a análise do teólogo João Batista Libanio sobre o significado deste importante evento eclesial de nossa Igreja, escrito no marco dos 30 anos.
Leia, a seguir, o texto na íntegra:
As realidades históricas passadas paradoxalmente perdem-se no olvido sob muitos aspectos e persistem nas consequências reais, na configuração simbólica e nos dados acessíveis às pesquisas historiográficas. A Conferência de Puebla sumiu-se no horizonte da Igreja com a imensa parafernália de poder e controle, armada pela secretaria do Celam em articulação com dicastérios romanos. Isso pertence definitivamente ao passado. Na Conferência de Puebla, houve muitas lutas, vitórias e derrotas de diferentes grupos antagônicos respectivamente, alegrias e tristezas, gozos e sofrimentos. As pessoas levaram isso consigo e vários protagonistas daquele evento já se foram à casa do Pai, carregando segredos e confidências: o Papa que o convocou, o Presidente do Celam (Card. Aloísio Lorscheider), seu secretário geral (Cardeal López Trujillo) e inúmeros outros personagens decisivos no seu desenrolar, como D. Luciano Mendes de Almeida.
Ficaram-nos sobretudo a simbólica e o texto, que caem sob nosso crivo analítico. Há ainda testemunhas vivas que podem trazer novos depoimentos que ressuscitem aquele evento em pormenores desconhecidos. Mas, pouco a pouco, elas se apagam pelo correr dos anos. Estamos a quase 30 anos de distância [hoje, em 2018, a 40 anos].
As opções de Puebla entendem-se, naturalmente, no contexto social, político, econômico e cultural. Propomo-nos aqui esboçar rapidamente a situação eclesial e nela inserir as opções.
Contexto eclesial
Paulo VI convocara a Conferência de Puebla. Mas, antes de sua realização, deixou-nos num clima de muito sofrimento e decepção diante da implementação do Concílio Vaticano II. Atribuem-se-lhe frases pesadas.
O Osservatore Romano informou que “o Santo Padre afirma ter a sensação de que “por alguma fresta entrou a fumaça de Satanás no Templo de Deus” (Ver o exemplar do dia 29/06/1972.). “Há a dúvida, a incerteza, a problemática, a inquietação, a insatisfação, o confronto.” “Também na Igreja reina este estado de incerteza. Acreditava-se que depois do Concílio viria um dia de sol para a história da Igreja. Veio, ao invés, um dia de nuvens, de tempestade, de escuridão, de procura, de incerteza. Pregamos o ecumenismo e nos afastamos sempre mais dos outros. Procuramos cavar abismos em vez de fechá-los”(A. Melloni, O que foi o Vaticano II? Breve guia para os juízos sobre o concílio, in Concilium 312 (2005/4), p. 44/468.).
Esse ambiente de suspeita contra as inovações, feitas em nome do Vaticano II, influenciou na eleição dos dois papas seguintes. João Paulo I morreu poucos dias depois. Mas tinha aludido na Primeira Radiomensagem ao propósito de querer “conservar intacta a grande disciplina da Igreja, na vida dos sacerdotes e dos fiéis”. (Ver: L’Osservatore Romano, sem. Port. 3 de setembro de 1978, 9 (1978), n. 26 (457), p. 6.) João Paulo II, que o sucede, repete na Primeira Radiomensagem Urbi et Orbi: “Sob o signo da fidelidade à luz do Concílio: ‘Fidelidade significa ainda observância da grande disciplina da Igreja’” (L’Osservatore Romano IX (27 out 1978), n. 43 (464), p. 1-2.).
Tornava-se claro que cessava o tempo de novas experiências nos diversos campos: teológico, litúrgico, pastoral. Os três centros da Igreja – Vaticano, Diocese e Paróquia – triavam as experiências julgadas assimiláveis pelo conjunto da Igreja e as cercavam com legislação a fim de evitar novos avanços. Cúpulas conservadoras restringiam muito o campo das novidades em nítido esforço de reter ou mesmo de recuperar práticas anteriores ao Concílio que tinham entrado em crise e desaparecido. A pastoral era trazida para dentro da Igreja e espiritualizada, diminuindo-lhe o impacto secular. No setor da juventude, os efeitos de perda de élan transformador se tornaram muito claros. A Ação Católica especializada, que atuava diferenciadamente nos diversos meios estudantis, agrário, operário, cedia lugar para movimentos nos moldes do Cursilho de Cristandade, caracterizados por outra pedagogia. Deslocou a ênfase no social para a conversão pessoal sob o impacto de jogos emocionais. Os movimentos espiritualizantes se espraiavam pelos rincões da teologia, da pastoral, da vida consagrada.
Esse clima estava pronto para influenciar Puebla. Chocava-se com o setor da Igreja da América Latina que assumira corajosamente as linhas de Medellín. Então, duas posições se defrontaram em Puebla.
a) Havia os que queriam a continuidade pura e simples das opções de Medellín. E, se preciso, radicalizá-las ainda mais devido ao agravamento do contexto sociopolítico de repressão, de dominação capitalista. Lá foram dispostos a batalhar pela tradição de Medellín. No interior da Conferência, havia bispos que desposavam claramente tal linha. A organização da Conferência conseguiu vetar todos os teólogos da libertação de maneira que no nível de assessores não havia representantes da linha de Medellín. Eles estavam na Conferência de Puebla, porém fora dos muros, à disposição dos bispos e de outros membros da Conferência. E por essa via tiveram influência e presença.
b) Mais forte, porém, havia o grupo encastelado na organização de Puebla, que protagonizava o enquadramento da Igreja da libertação, especialmente sob vários aspectos: a espiritualização da opção pelos pobres, ao evitar qualquer conotação política; a paroquialização das CEBs, afastando toda ideia de Igreja popular e revolucionária; a desqualificação da Teologia da Libertação como marxista; a secularização das vítimas cristãs e religiosas da luta libertadora, negando-lhes o título de mártir; a desautorização da pastoral profética e crítica da realidade social; o enquadramento dos religiosos/as e das instituições que os apoiavam nas malhas da pastoral diocesana sob a orientação do bispo; a supressão da Ação Católica especializada, ao substituí-la por movimentos espiritualistas e de impacto; o novo tratamento da religiosidade popular, ao mantê-la nos quadros tradicionais e sem perspectiva crítica e política; o redimensionamento dos círculos bíblicos, ao orientá-los para a oração de louvor sem conexão direta com os fatos da vida concreta do povo e sua organização.
O embate está colocado de maneira contrastante por razão didática. No concreto, as posições tendiam para tal distanciamento entre elas, mas nem sempre se manifestavam assim. Conseguiram-se, como o texto de Puebla o mostra muito bem, certos acordos, formulações ambivalentes, ao explorar a adjetivação.
Opções explícitas de Puebla
Contra tal pano de fundo, as opções de Puebla tornam-se mais claramente inteligíveis. Distinguem-se aquelas que se fizeram de maneira explícita e as que subjazem ao texto. Destacaremos, de início, as duas que constam no documento com o nome explícito de opção: a pelos pobres e a pelos jovens.
a) Sobre a opção pelos pobres
Sem dúvida, a mais importante e vistosa soa: opção preferencial pelos pobres. Posiciona-se em nítida continuidade com Medellín. Sabe-se que houve insistente tendência para substituir a expressão por “amor preferencial pelos pobres”. Ao trocar a palavra opção por amor, insinuavam-se certa espiritualização e nítido enfraquecimento do sentido de compromisso do termo opção. Embora a palavra amor seja belíssima e de lídima tradição cristã, posta, no entanto, nesse contexto, ela diminuiria o impacto militante do termo opção, substituindo-a por qualquer gesto de caridade. Não traria nenhuma novidade para dentro da prática da Igreja. Por isso, ela não vingou.
A lingüística nos traz luzes para entender o jogo dos adjetivos. A expressão “opção pelos pobres” sem nenhum adjetivo marca com clareza os dois termos básicos: opção e pobres. Essa forma despojada impacta mais. No jogo ideológico, para diminuir a força de um termo, adicionam-se adjetivos que terminam quase anulando-o. A tendência restritiva a Medellín entrou em tal jogada e forjou adjetivos e expressões paralelas para aligeirar o peso da opção. Já no título se apôs o adjetivo preferencial, que permite interpretação radical ou atenuada. Acrescentaram-se outros adjetivos e expressões como opção clara e profética, solidária, embora não exclusiva. Insiste-se na qualidade da pobreza evangélica. E alerta-se para “os desvios e interpretações com que alguns desvirtuaram o espírito de Medellín”, mas também para “o desconhecimento e até mesmo a hostilidade de outros” (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. A Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões: Puebla. São Paulo: Loyola, 1979, n. 1134. Abrev. Puebla: citações dos números.). Sem dúvida, apesar de certas reticências, o tom principal reforça com nitidez a opção de Medellín. Reafirma “a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação” (Puebla, n. 1134); estabelece o fundamento bíblico da opção de Deus pelos pobres; insiste na prática de Jesus que considera os pobres como os primeiros destinatários de sua missão (Puebla, n. 1142); aponta o particular desvelo do Papa pelos pobres (Puebla, n. 1143). O quadro da imensa maioria daqueles, que vivem em situação de pobreza e até de miséria, veio agravando-se (Puebla, n. 1135). Tal realidade desperta a consciência e decisão da Igreja na linha da denúncia profética respeito às graves injustiças e de compromisso concreto (Puebla, nn. 1136, 1138) à custa de perseguições (Puebla, n. 1138) e de juízos destorcidos (Puebla, n. 1139). Conclusão: conversão e mais compromisso(Puebla, n. 1140). Estamos, portanto, na lídima tradição medellínica.
b) Sobre a opção pelos jovens
João Paulo II insistira na importância dos jovens. Os bispos se tornaram sensíveis a tal realidade tanto por causa do peso numérico quanto pelo poder transformador dos jovens. Em Puebla, estava-se a 10 anos de distância daquele tufão juvenil do final da década de 1960, que produziu modificações profundas no comportamento da sociedade. Hoje, com maior distância, nos damos conta da real importância do evento de Maio 1968 na França com os ulteriores prolongamentos.
Não faltaram críticos de Puebla que temeram a opção pelos jovens conter certo insinuante diversionismo em relação à opção pelos pobres. Os anos seguintes à Conferência de Puebla mostraram que a opção pelos jovens não vingou. Faltou maturidade de tempo e consciência. Pareceu algo abrupto. Santo Domingo retoma-la-á, insistindo que não basta opção afetiva. Deve ser efetiva, concreta por uma pastoral juvenil orgânica, com acompanhamento e apoio real em diálogo mútuo entre jovens, pastores e comunidades. Exigem-se maiores recursos pessoais e materiais por parte das paróquias e das dioceses (Consejo Episcopal Latino-Americano-Celam, Santo Domingo: conclusões. São Paulo: Loyola, 1992, n. 114. Abrev. Santo Domingo: citações do número). Essa retomada de Santo Domingo reflete o caráter antes idealista que realista de Puebla. Aparecida, a 15 anos de Santo Domingo, ainda se debate com a pastoral da juventude. Constata que “na evangelização, na catequese e, em geral, na pastoral persistem linguagens pouco significativas para a cultura atual e em particular para os jovens” (Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo/Brasíllia: Paulus/ Paulinas/CNBB, 2007, n. 100d. Abrev. Aparecida: citação do número). Volta de novo a retomar “a opção preferencial pelos jovens, em continuidade com as Conferências Gerais anteriores, dando novo impulso à Pastoral da Juventude nas comunidades eclesiais (dioceses, paróquias, movimentos etc.)”, (Aparecida, n. 446a) com uma série de propostas concretas. No horizonte, está a repetida afirmação de que os jovens constituem “a grande maioria da população da América Latina e do Caribe. Representam enorme potencial para o presente e o futuro da Igreja e de nossos povos, como discípulos e missionários do Senhor Jesus”, “sentinelas da manhã” (Aparecida, n. 443) e “a esperança e a riqueza de nosso Continente”, nas palavras de Bento XVI (Do discurso do Papa, in Documento de Aparecida… p. 265).
Esse passeio por Aparecida nos mostra a persistente preocupação da Igreja com os jovens e, implicitamente, a dificuldade de acesso a eles e o pouco vigor da opção de Puebla que se arrasta até hoje com carências e incertezas.
Opções implícitas
Comunhão e participação
A leitura atenta do documento de Puebla revela inúmeras outras opções que os bispos fizeram e que orientaram a confecção do texto. O episcopado brasileiro, antes de ir a Puebla, preparara alguns subsídios (Documentos da CNBB. Subsídios para Puebla, n. 13. São Paulo: Paulinas, 1978. – Abrev. Doc CNBB). Atravessa a inspiração central o binômio comunhão e participação. Ele é “o fio condutor do documento” (D. Jaime Chemello, O contexto de Puebla, in Teocomunicação 9 (1979,2), n. 44, p. 144. Ele foi um dos membros da Conferência e 20 anos depois foi eleito presidente da CNBB). Serviu de amortecedor em relação à proposta de pôr o tema da libertação como central (ANTONIAZZI, Alberto. Libertar para a comunhão e libertação, in Convergência 15 (1980), n. 129, p. 40) ou quem sabe talvez para atenuar, de maneira sutil, a perspectiva libertadora. A Igreja quer tornar-se visível como sinal de comunhão entre as pessoas. A vocação original do homem é para a comunhão de vida com Deus e para a participação de sua felicidade. A comunhão com o Pai faz dela instrumento de conversão dos homens para a união, onde cada membro possa chegar à participação ativa e à corresponsabilidade através de organismos eficazes (Doc CNBB n. 54-56). “A Igreja solidária, sinal e instrumento de comunhão no meio do povo, superará qualquer vinculação a sistemas ou regimes de opressão.” (Doc CNBB n. 57). “A teologia da comunhão dá sentido, força e rumo à Teologia da Libertação: libertar integralmente para a plena comunhão da vida fraterna dos homens entre si e comunhão filial dos homens com Deus Pai.” (Doc CNBB n. 76).
“Prossiga-se o aprofundamento […] de uma Igreja de fraternidade, participação e diálogo.” (Doc CNBB n. 87). Relendo hoje tais subsídios, salta aos olhos como a Igreja do Brasil ia muito além da consciência possível da maioria dos episcopados e das instâncias romanas. Daí que muitas de suas sugestões não repercutiram no documento de Puebla e até hoje permanecem na esfera dos desejos, entre elas o estudo de uma série de temas controvertidos desde a Teologia da Libertação até o valor, método e uso da análise marxista, (Doc CNBB n. 88) a situação dos que deixaram o ministério, novo tipo de presbítero, ordenação presbiteral de homens casados, novos ministérios eclesiais ordenados e não ordenados etc. (Doc CNBB n. 98-99).
A Igreja do Brasil, com o peso numérico, com a enorme credibilidade de que dispunha e com a presença profética e santa de D. Luciano Mendes de Almeida, pesou na opção de Puebla pela comunhão e participação.
O binômio se escolheu para a ação na e pela Igreja. Ele presidiu ao esquema votado logo no início da Conferência. A terceira parte do documento se estrutura a partir dele: centros e agentes de comunhão e participação, e os meios e o diálogo para alcançá-las. Analisa-se assim a Igreja, na sua totalidade. O texto joga com o factual e o utópico. De fato, necessita existirem a comunhão e a participação na família, nas CEBs, nas paróquias, nas Igrejas particulares, no ministério hierárquico, na vida consagrada, nos leigos, na pastoral vocacional. E, para alcançá-la, propõem-se meios espirituais (liturgia, oração particular, piedade popular), o testemunho e a pastoral (catequese, educação, comunicação social). O diálogo merece destaque. Importante recordar que se vivia na Igreja daquele momento dilaceramento interno.
Contra esse fundo de tensões, a opção pela comunhão e participação permitia matizações e acentos diferentes. A Conferência dos Religiosos do Brasil organizou a Assembléia Geral de 1980 em torno dos temas centrais de Puebla. As conferências feitas chamaram a atenção sobre duas vertentes interpretativas. Ao frisar a comunhão, escondia-se certo viés institucional em detrimento da participação no interno e no externo da Igreja por parte do povo, dos leigos. Se se inverte o acento em favor da participação, a comunhão surge como a ser construída e não já dada de antemão sem mais. A comparação com o bolo ajuda a entender. A Igreja hierárquica prepara o bolo “eclesial” e convida os fiéis a comungarem e participarem dele. A comunhão precede a participação, rege-a, limita-a, condiciona-a. Cada um toma seu pedaço e sai feliz. Esta é a versão clerical. Outra leitura seria diferente. A hierarquia convida os fiéis para todos juntos prepararem o bolo, coserem-no e depois comerem dele. A comunhão nasce da participação. Esta constitui a comunhão, dá-lhe vida, configuração, jeito. Em termos pastorais, as consequências e diferenças se tornam bem significativas.
No espírito de Medellín, a comunhão nasceria da participação. Na virada de peso institucional que acontecia naquele momento de Puebla e continua, o processo é o inverso. A preocupação reside em manter a comunhão doutrinal, disciplinar, canônica e dentro dela se mede o nível de participação possível.
Libertação
Em que pese a triste campanha movida no Continente contra a Igreja da Libertação, Puebla não se afastou da opção pela libertação dos pobres na tônica maior. Os adjetivos integral, cristã, verdadeira, total, genuína, que se acrescentaram ao termo libertação, intentam evitar o uniliteralismo político, mas não excluem a conotação política. Antes, afirma-se com todas as letras que a América Latina vive em situação de opressão e dominação econômica, política e cultural. E que a Igreja se compromete com a libertação do povo oprimido.
A opção pela libertação se vincula estreitamente com os pobres, pois é feita em vista deles. Aparece como exigência intrínseca da evangelização, superando uma concepção espiritualista e puramente doutrinal. Pois ela implica consequências práticas e concretas. Atinge toda a ação da Igreja. A evangelização libertadora tornou-se horizonte para a pastoral do Continente. Concretiza e realiza a justiça social, como decorrência direta do evangelho de Jesus. A inspiração libertadora vem da revelação bíblica entendida ao longo da tradição da Igreja: santos padres, magistério, a grande teologia e a prática do cristão fiel.
Nessa opção, Puebla põe-se em nítida continuidade com a postura central da Conferência de Medellín. Na conferência de Medellín, estão as primeiras afirmações que Puebla retoma e aprofunda. O aspecto social da libertação impôs-se por força da análise da realidade. Os bispos, tanto por experiência pastoral, como por influência de análises sociopolíticas e econômicas, perceberam e afirmaram que a situação do Continente tem piorado para as grandes massas, conduzindo-as à extrema penúria e a grave sofrimento. A repressão, em nome da Doutrina da Segurança Nacional, tem pesado contra toda atitude profética e crítica.
O texto acentua o fato de a libertação ser um processo que se realiza na história em nível pessoal e social dos povos, e abarca dimensões da existência política, econômica e cultural. Radica no solo profundo da fé cristã, e estende os ramos por todos os campos da vida humana.
Puebla retoma uma afirmação contundente de Medellín e avança. “É o grito de um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais dos homens e dos povos.” Medellín afirma que “um clamor surdo brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte” (Pobreza da Igreja, n. 2). Puebla acrescenta: “O clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente, impetuoso e, nalguns casos, ameaçador” (Puebla, nn. 87-89).
Puebla pensa num primeiro nível de libertação que arranca da realidade social. Libertação, portanto, de caráter sociopolítico. Salienta que a motivação do cristão para empreendê-la vem da fé. E que a libertação necessita ir além do nível meramente sociopolítico para atingir todas as dimensões humanas até a mais profundo do pecado pela força da conversão, da graça. As libertações não se opõem. Elas se somam, se complementam, se enriquecem, de tal forma que a omissão de um dos níveis acarreta em descrédito da totalidade da libertação.
Igreja particular e CEBs
Apesar das resistências às CEBs, que aparecem já no discurso inaugural de João Paulo II ao tratar do magistério paralelo em conexão com elas, e da suspeita de manipulação política, de infiltração marxista no seu seio, sob o espectro da Igreja popular, o documento reafirma a opção da Igreja da América Latina por elas. Em Medellín, apenas começavam.
As CEBs “criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus, revisão de vida e reflexão sobre a realidade, à luz do evangelho; nelas acentua-se o compromisso com a família, com o trabalho, o bairro e a comunidade local” (Puebla, n. 629). A sua multiplicação é considerada “esperança da Igreja”, segundo Paulo VI (Ibid.; cita Evangelii nuntiandi, n. 58) . Valoriza-se, na leitura de Puebla, a dimensão comunitária intersubjetiva, de preferência a de inserção e de compromisso social transformador da realidade. Percebe-se o receio dessa faceta das CEBs. A presença dos círculos bíblicos não merece a importância que na realidade têm. Alude-se à aceitação da Palavra de Deus e à revisão de vida e à reflexão sobre a realidade à luz do Evangelho. De novo, há desconfiança a respeito da metodologia desenvolvida pelas CEBs, especialmente no Brasil, à base dos escritos de Carlos Mesters.
Na mesma linha do incremento às CEBs, valoriza-se a Igreja particular em momento de forte romanização, mas sem a contundência que o assunto mereceria. Não falta referência à originalidade da Igreja na América Latina pelo “testemunho de serviço desinteressado e abnegado face a um mundo dominado pelo afã de lucro, pela ânsia de poder e pela exploração” (Puebla, n. 624).
Defesa dos direitos humanos
A América Latina vivia naquela década os piores anos da repressão política, desencadeada por regimes militares à base da Ideologia da Segurança Nacional. O diagnóstico que o Documento faz da realidade sociopolítica, econômica e cultural da América Latina já implica opção básica de virulenta crítica às injustiças e de defesa radical dos direitos humanos numa perspectiva de justiça social.
Os bispos alimentam-se antes das experiências pastorais do que de análises científicas, embora usem algumas categorias. Em face do povo sofrido, compartilham “as angústias que nascem de sua pobreza” (Puebla, n. 27). Partem do Evangelho, e, iluminados pela fé, discernem as interpelações de Deus nos sinais dos tempos para testemunhar, anunciar e promover os valores evangélicos da comunhão e da participação, ao mesmo em que denunciam tudo o que na sociedade contraria a fraternidade (Puebla, n. 15).
Emitem sobre a realidade social um juízo global em termos contundentes: “depois dos anos cinquenta, e não obstante as realizações obtidas, têm fracassado as amplas esperanças do desenvolvimento e aumentado a marginalização de grande parte da sociedade e a exploração dos pobres” (Puebla, 1260). Citam entre outros fatos: exclusão crescente, pauperização, (Puebla, 1207) crescimento da brecha entre ricos e pobres (Puebla, nn. 28, 30). A situação desde Medellín se agravou (Puebla, n. 487), os problemas de injustiça se aguçaram (Puebla, n. 793). Bastam essas afirmações para perceber o que viam os bispos. Descem a muitos pormenores no campo econômico, político e cultural que mostram a situação de extrema, palpável, desumana, generalizada pobreza e até de miséria das imensas maiorias do povo (Puebla, nn. 31, 90, 1129, 1159, 1207). No fundo, os direitos humanos básicos não eram respeitados por regimes de força, ao institucionalizarem a violência por meios repressivos: torturas, delações, violações da privaticidade, exílios, seqüestros, detenções arbitrárias, exclusão da vida pública por causa das idéias, assassinatos, terrorismo de Estado etc. (Puebla, nn. 42, 49, 46, 495, 1259, 1262, 532, 1180).
Em face de tal quadro, os bispos decidem lutar pelos direitos da pessoa humana, especialmente pelos dos pobres. A opção pelos direitos humanos cruza com a dos pobres e vai além. Porque, nos regimes militares, a repressão não atingiu unicamente os pobres. Setores das classes médias, acadêmicos, líderes civis e religiosos sofreram violenta repressão. Nesse sentido, ela amplia-se para espaços maiores. A opção de Puebla fundamenta-se na dignidade humana, em virtude da criação de Deus e da encarnação do Verbo, que lhe atribuem valor infinito. A natureza humana, independente de qualquer condição concreta, merece o respeito e os seus direitos ser defendidos.
No horizonte, se ergue o sonho da “civilização do amor” de que falava Paulo VI e na linguagem de hoje se falaria de “uma sociedade justa e solidária” em que haja entre os homens maior comunhão e participação nos bens de toda ordem que Deus nos outorgou (Puebla, n. 1255). Tal perspectiva se pensa para a ordem nacional e internacional. Pois em ambas existem mecanismos geradores de injustiça social por estarem impregnados de materialismo, egoísmo e não de autêntico humanismo (Puebla, n. 1264).
O texto tipifica os direitos humanos em três grupos: direitos individuais, sociais e emergentes. A Igreja proclama a exigência de sua realização (Puebla, nn. 1271-1273). Em outro momento, trata do direito a uma convivência internacional justa entre as nações, com pleno respeito à sua autodeterminação econômica, política, social e cultural (Puebla, n. 1276). E indica outros direitos, como o de cada nação defender e promover os próprios interesses perante as empresas transnacionais (Puebla, n. 1277).
Ação junto aos construtores da Sociedade na América Latina
Diante da situação paradoxal do Continente latino-americano em que convivem a tendência para a modernização com forte crescimento econômico e o fenômeno da pauperização das massas, Puebla profere palavra profética e testemunha sua mensagem como colaboração na transformação desde de dentro das estruturas da sociedade pluralista. Reconhece a importância de que sua pastoral penetre os quadros e diversos âmbitos da sociedade, superando a distinção entre pastoral de elites e popular.
Por essa razão, dirige um apelo aos políticos, aos homens de governo, aos intelectuais, aos universitários, aos cientistas, aos responsáveis dos meios de comunicação, aos criadores na arte, aos juristas, aos operários, aos camponeses, aos economistas, aos empresários, aos militares, aos funcionários etc. para que se empenhem na construção de uma sociedade pluralista, justa e fraterna (Puebla, nn. 1237-1249).
A preocupação principal consistiu em não deixar nenhuma força social de mudança de lado. Tal opção naturalmente corre o risco de não falar a ninguém. Como diz o provérbio popular, “quem muito abarca, pouco aperta”.
Metodologia
A metodologia não é inocente. Subjaz a ela opção de conteúdo, de objetivos e de propostas. Simples comparação com Medellín ajuda-nos a perceber a opção de Puebla. Em Medellín, havia palestras introdutórias que agitavam o tema. E lá estavam teólogos que seriam depois os corifeus da Teologia da Libertação. A provocação ia na linha da promoção humana, da justiça social, da paz, da libertação, da opção pelos pobres, da pedagogia conscientizadora, da evangelização encarnada, da renovação das estruturas da Igreja numa linha de pobreza, da vida religiosa inserida etc. Seguiam-se discussões. E, depois de obter certo consenso, redigiam-se os textos, independentemente uns dos outros. Daí a diferença no teor e valor deles.
Puebla evitou os dois primeiros passos da Medellín. Nenhum tema provocador para debate. Considerou-se a fase da discussão como terminada. Organizou-se a Conferência em vista da produção de um texto único, articulado. As discussões faziam-se em vista de redigir o documento final. Por esse caminho, as tensões e divergências se atenuavam. Os plenários não visavam à discussão, mas à mera sucessão de posições, com acúmulo de informações, sem confrontos teológicos e pastorais. Com isso, conseguiu-se um texto consensual sem arestas. Além disso, como já observei noutro lugar, os assessores foram selecionados de tal modo que os conhecidamente teólogos da libertação estiveram excluídos. Assim se evitaram confrontos teológicos no interior da Conferência.
Apesar de tal metodologia e de os redatores e assessores principais serem de linha conservadora, espanta-nos que o documento contenha passagens altamente proféticas, ao lado de certa pobreza teológica.
A força questionadora do texto deve-se fundamentalmente à presença de minoria de bispos e de outros membros que carregavam vivência evangélica corajosa de inserção no meio dos pobres e experiências das terríveis injustiças sociais. A palavra dessas pessoas, embora outros discordassem teoricamente, tinha tal força persuasiva que as suas propostas, sugestões e emendas passavam e assim estruturaram um texto com toques vigorosos e audazes.
Os silêncios
Não optar no momento em que se deve fazê-lo, silenciando-se, omitindo-se, configura-se verdadeira opção. A Igreja conheceu, ao longo dos séculos, o testemunho de filhos que deram a vida pela fé, tanto nas missões quanto em momentos conflituosos nos próprios países cristãos. Toda vez em que entravam em jogo explicitamente a defesa da Igreja ou de algum de seus dogmas, a clara perseguição ao fato de ser cristão, a reação violenta contra a evangelização e casos semelhantes, Roma não hesitou em considerar as vítimas de tal situação como mártires e canonizou não poucas delas.
A América Latina viveu situação única. Implantaram-se regimes repressivos e criminosos para defender o capitalismo na fase furiosa da implantação e desenvolvimento. Alguns ousaram invocar, no jogo ideológico, a defesa da “civilização cristã”, como se o ataque ao capitalismo viesse do socialismo enquanto ateu. Gerou-se ambiguidade semântica no jogo das palavras. Agentes de pastoral leigos ou religiosos/as, sacerdotes e alguns bispos assumiram atitudes proféticas de crítica ao sistema vigente. E pagaram com a vida tal ousadia. Entretanto, insinuava-se em meios eclesiásticos, por influência ideológica da direita, que essas pessoas foram perseguidas por razões e opções políticas e ideológicas marxistas. E, portanto, não passavam no exame dos critérios de martírio. Chocante parecia conferir-lhes o título de mártir já que tal acontecia em países católicos.
Por sua vez, outros reconheciam neles verdadeiros mártires. Em torno de suas pessoas, elaborou-se verdadeiro martirológio. As agendas latino-americanas, editadas sob a orientação do claretiano José María Vigil, divulgam amplamente a lista do “martirológio latino- americano”. As celebrações das CEBs voltam inúmeras vezes ao tema dos mártires na América Latina. Teólogos trabalharam tal tema. Leonardo Boff ampliou o quadro também para aqueles que não participavam da mesma fé cristã, chamando-os mártires do Reino de Deus.
A fim de valorizar tal realidade fundamental para a fé cristã, esperava-se que Puebla reconhecesse com gratidão, esperança e coragem o testemunho martirial de tantos cristãos do Continente que morreram por amor à justiça, na defesa do pobres. Teria a força profética de desmascarar o discurso dos regimes militares que se arvoravam em defensores da fé cristã. Mais: acusá-los-ia de ímpios, porque assassinavam cristãos, assemelhando-se aos inimigos da fé ao longo da história.
Puebla não fez tal opção. Preferiu o silêncio. Aludiu ao fato de os governos se confessarem cristãos e mesmo assim abusarem do poder repressivo e da força (Puebla, n. 42). Assinala o fato da perseguição que a Igreja sofreu por causa do testemunho de sua missão profética até a morte de alguns membros.
Também o documento de Aparecida não ultrapassou a barreira do som. Refere-se ao “testemunho de mártires de ontem e de hoje em nossos povos” (Aparecida, n. 140). Outras menções são genéricas (Aparecida, nn. 220, 275) ou propositivas (Aparecida, n. 396). Falta-nos ainda reconciliar-nos com a memória dos nossos verdadeiros mártires que empurpuraram o Continente, explicitando-lhes os nomes e o contexto histórico em que testemunharam a fé e o amor aos pobres por sua libertação.
José Comblin vê, nesse ocultamento do martírio, o fato de as elites quererem desfazer-se da responsabilidade histórica em face dos crimes que cometeram. Só lembrá-los ofende as classes dirigentes de muitas nações (J. Comblin, O projeto de Aparecida, in Vida Pastoral 49 (2008), n. 258, p. 9s).
Choca-nos ainda mais o pesado silêncio sobre a teologia latino-americana da libertação. Depois de séculos cultivando uma teologia-reflexo, a América Latina produz teologia própria, original, encarnada no contexto continental, escrita com vigor em obras de valor, reconhecidas pela teologia mundial. E o episcopado do Continente a desconhece como se não existisse. Beira o escandaloso, se não houvesse razões vindas, não do horizonte da verdade nem da objetividade, mas dos receios, das pressões superiores, da pecha de marxista, da reação negativa de muitos bispos e de dicastérios romanos.
Nem Aparecida conseguiu superar tal tabu de usar a expressão “Teologia da Libertação”. No entanto, o conjunto da Conferência, diferentemente de Puebla, mostrou-se aberto à sua contribuição por meio de dois sinais. A presença do Grupo Ameríndia, que organizou a presença dos teólogos da libertação, atuou em clima favorável de conhecimento e consentimento do Celam, prestando serviços a muitos bispos e a outros participantes da Conferência com “legitimidade e visibilidade”, embora com “papel muito discreto, secundário”, na linguagem do coordenador do grupo, Sérgio Torres. E outro sinal foi a realização de um Seminário latino-americano de Teologia na cidade circunvizinha de Pindamonhangaba promovido pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil. Com mais de 200 participantes, nele estiveram presentes teólogos/as ligados à linha da libertação.
Voltando aos anos de Puebla, o Continente latino-americano ardia, naquelas décadas, em lutas violentas entre a repressão do Estado e os movimentos sociais. Aí estava grande parte do melhor de nossa juventude. Não faltaram movimentos que nasceram à sombra da Igreja no mundo estudantil, operário e rural. Na dificuldade de discernir entre os movimentos que optaram pela via armada revolucionária de clara conotação marxista e os que carregavam em si os germes da futura sociedade solidária, o documento fechou-se em comprometido silêncio. Puebla refere-se vagamente “a criar livremente organizações para defender, promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem comum”, citando João Paulo II (Puebla, n. 1244). Não toca realmente no problema dos movimentos sociais, populares e não populares. Vários deles estavam então bem próximos da pastoral da Igreja.
Conclusão
Há quase trinta anos [agora, quarenta] de Puebla, que balanço fazer? O texto está aí para contínuos estudos e voltas interessadas. Logo após o evento, livros, artigos, conferências, cursos, discussões em grupo e outras formas de estudo e assimilação do documento inundaram o Continente. O tempo decanta a água pura evangélica e de valor pastoral da imensa massa de ingredientes conflituosos, inseridos por interesses ideológicos ou reflexos de medos.
O melhor da teologia latino-americana, a pastoral viva e as comunidades de base conseguiram construir o imaginário religioso social com a díade Medellín-Puebla como se fosse uma única opção. Ao fazê-lo, associaram a ambas as conferências a opção pelos pobres, pela libertação, pelas CEBs. O resto esvaiu-se na complexidade do texto.
O imaginário produz gigantesca simplificação, como os slogans, as palavras de ordem, as consignas. Por isso, exercem influência maior e ampla, ao atingir círculo estendido de pessoas. Dificilmente alguém, ao ouvir falar de Medellín-Puebla, associa a ideia de restrição, de medo, de volta à disciplina, de encurtamento de visão. Antes, tudo o contrário, embora em Puebla houvesse muitas reservas e se vivesse um momento de enorme tensão com a crescente presença de forças conservadoras na Igreja. Hoje a tendência restauracionista se fez mais clara, em claro afastamento do binômio Medellín-Puebla, ao alimentar movimentos alinhados com o centralismo romano.
Pe. João Batista Libanio, SJ (1932-2014) era doutor em Teologia pela PUG de Roma, 1968, e reconhecido entre os grandes teólogos da libertação. Além de presbítero jesuíta, foi professor, pesquisador, escritor, conferencista e assessor de incontáveis grupos espalhados pelos Brasil.
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