Começo de conversa
O surgimento e os ressurgimentos das narrativas apocalípticas – como tive a oportunidade de estudar em minha pesquisa de mestrado – são característicos de situações sociopolíticas e econômicas crísicas. A crise do judaísmo no contexto do exílio babilônico e as crises envoltas no martírio cristão pelo Império Romano no século I d.C., foram os cenários sócio-históricos que deram origem ao gênero apocalíptico na escatologia judaico-cristã. Entretanto, os significados de “fim do mundo”, “fim dos tempos” e “holocausto cósmico” só começaram a ser tratados como únicos sinônimos de apocalipse após o aparecimento do pensamento milenarista-messiânico no universo judaico-cristão. Foi assim que o apocalipse transitou do seu caráter revolucionário-libertário original, para um caráter conservador e, em alguns casos, até reacionário.
Seja em sua concepção revolucionária ou conservadora, o apocalipse é, para além de uma categoria religiosa, uma concepção do tempo e da história que influencia o campo da política, tanto com intenções prospectivas quanto com intenções retrospectivas frente a cenários de crises.
Apocalipse na Igreja
Desde o ano de 2013 temos visto se intensificar narrativas apocalíticas, por parte de setores integralistas, neofundamentalistas e reacionários, da Igreja Católica e de várias denominações evangélicas, contra o papa Francisco. São narrativas que afirmam Francisco como o anti-Papa ou o anti-Cristo do fim do mundo. Afinal, o próprio Francisco disse aos fieis na Praça de São Pedro, na noite de sua posse, que os seus amigos cardeais foram buscar um papa lá no fim do mundo. O que significa, porém, que os cardeais católicos buscaram um papa na periferia do mundo globalizado, no terceiro mundo, na última porção de terra do globo a ser ocupada pelos primeiros seres humanos, a Argentina?
De fato, Francisco é o Papa do fim do mundo, ou se quiserem, um papa apocalíptico. Resta saber em qual sentido. Certamente, não no sentido do pensamento milenarista-messiânico, calcado na alienação da crítica dos problemas sociais, no pessimismo e no desprezo pelo mundo material e nas expectativas passivas sobre a volta futura do Messias e o holocausto cósmico. Ao contrário disso, Francisco tem se mostrado um papa apocalíptico no sentido original do termo, qual seja: Deus é Deus Emanuel, estradeiro conosco, que resiste junto com o seu povo a escravidão e o martírio, que liberta o seu povo da escravidão e peregrina, junto a ele, enfrentando os desafios do deserto em busca da terra prometida, que se abaixa, desce do céu, se torna um conosco, habitando em nosso meio. É nessa concepção de apocalipse – que afirma que o projeto de Deus se cumprirá no decorrer da história, com a participação transformadora de seu povo e sem holocausto cósmico – que se reflete o pontificado de Francisco.
É preciso lembrar que o pontificado de Francisco, ao longo da década de 2020, se deu em meio a variadas crises em muitos países do mundo, tais como: o aquecimento global e as mudanças climáticas, o avanço do desmatamento da floresta amazônica e as queimadas nos demais biomas brasileiros, as guerras civis no norte da África, as ondas migratórias para a o sul da Europa e para os Estados Unidos, o avanço do neoliberalismo e o aumento da pobreza e da concentração de renda nas mãos de poucos, a ascensão de governos de extrema direita e a crise da democracia liberal, a intensificação das tensões políticas e econômicas entre os Estados Unidos, a China, a Coreia do Norte e a Rússia e a pandemia da COVID-19.
E em meio a tantos conflitos, destruições e caos internacional, Francisco se mostrou um peregrino transnacional da esperança (do verbo esperançar), um profeta pastoral-apocalíptico da paz, um mensageiro da boa nova de um Reino de Deus real, isto é, que começa aqui, de baixo e da periferia, para cima, para o centro e para a eternidade. O pontificado de Francisco se revela apocalíptico na medida em que revela que Deus é Deus conosco, que os marginalizados, e nãos os opressores, são os preferidos de Jesus, que a realização do Reino de Deus começa no cuidado com a nossa casa comum, a Terra, e na luta pela libertação dos oprimidos e não no mundo dos mortos, ou se preferirem, a eternidade. E a dimensão apocalíptica do pontificado de Francisco não se dá apenas no plano, importantíssimo, das palavras, como nas encíclicas Laudato Si’ e Fratelli tutti e os vários discursos em defesa dos direitos dos povos indígenas, das mulheres, dos LGBTQIAP+, dos migrantes, dos refugiados, dos pobres, dos moradores de rua etc., mas também no plano das ações como a prática da sinodalidade, na reforma da cúria romana, no estreitamento do espaço da Congregação para a Doutrina da Fé, nos Projetos da Economia de Francisco e Clara – que concebe o capitalismo como uma economia que explora o ser humano e degrada o meio ambiente – e o Pacto Educativo Global, que prioriza formas de educação humanistas e solidárias.
Apocalipse da Política
As eleições brasileiras de 2018 demarcaram o momento da consolidação da capacidade dos setores integralistas e neofundamentalistas católicos e evangélicos – que desde as eleições de 2010 rompiam sucessivamente com o Partido dos Trabalhadores – de elegerem um presidente da República que defendesse os seus interesses. Após um processo eleitoral repleto de narrativas apocalíptico-messiânicas, assentadas na afirmação do PT como uma organização criminosa que promovia a corrupção no Estado e a amoralidade social, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República com o lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.
Em minha pesquisa de mestrado em Ciências Sociais tive oportunidade de analisar uma das várias narrativas apocalípticas envoltas com contexto histórica das eleições de 2018. Trata-se da telenovela Apocalipse (2017-2018, Record TV), que encena o fim do mundo entre os anos de 1987 e 2017 tendo como cenários o Rio de Janeiro, Roma, Nova York e Jerusalém. São representadas na novela a Igreja Católica, chamada de Igreja da Sagrada Luz, o papa Francisco, chamado de Pai Sagrado Stefano Nicalazzi, a Organização das Nações Unidas (ONU) chamada de Conselho das Nações, a NASA, chamada de Centro Espacial, o Jornal Nacional da Rede Globo, chamado de telejornal e o jornalista Willian Bonner, chamado de Arthur Pestana. A personagem principal da trama, sendo também a sua narradora onisciente, é o jovem banqueiro italiano Ricardo Montana, a encarnação do anti-cristo.
Ricardo é membro da Igreja da Sagrada Luz e tem ascendência judaica ortodoxa por parte da sua mãe. Após ganhar fama nacional com o seu projeto da Cidade do Futuro, torna-se o presidente do Conselho das nações, onde irá conduzir um projeto messiânico global para frustrar o plano salvífico de Deus quando da volta de Jesus no final dos tempos. Para isso Ricardo usa: do que chama de diálogo inter-religioso da Igreja da Sagrada Luz, para a criação de uma religião única mundial – na qual ele mesmo é declarado Deus pelo Pai Sagrado após a sua morte e ressureição –; também usa do seu cargo político e das suas relações econômicas para iniciar a terceira guerra mundial, bem como construir posteriormente um acordo de paz para submeter todos os países a um governo único e uma moeda única; e usa da ciência para criar uma nova, moderna e tecnológica capital mundial, a Nova Babilônia, na qual, por meio de andróides, inteligência artificial, algoritmos e microchip implantado no corpo das pessoas, exerce o controle absoluto sobre todos.
Ricardo se torna um líder populista amado internacionalmente, porém odiado por pessoas evangélicas, que sabem os seus objetivos. Como resposta, Ricardo promove fogueiras para queimar a Bíblia, chantageia, persegue, prende, tortura e mata muitos evangélicos. Ao longo da trama Ricardo ora incorpora a personalidade e ora reproduz discursos do imperador romano Nero, do chanceler nazista Hitler, do presidente estadunidense John Kennedy e do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao fim da minha pesquisa sobre a telenovela Apocalipse (2017) identifiquei que se tratava de uma encenação apocalíptica de uma crise política que tinha por objetivo combater agendas políticas progressistas e afirmar agendas políticas conservadoras no contexto pré-eleitoral brasileiro de 2018. Identifiquei também que a novela combate o feminismo, sobretudo no que diz respeito às liberdades sexuais e reprodutivas das mulheres, a corrupção (estatal), a ciência moderna (secularizada), o ecumenismo, o diálogo inter-religioso (da Igreja Católica) e os direitos humanos. Por outro lado, a novela defende a família patriarcal mononuclear, a ideia da mulher como mãe de família submissa ao marido e temente a Deus, a ciência bíblica como pressuposto da verdade sobre o mundo, uma ciência que legitime a leitura literal da Bíblia, como pressuposto da verdade, da qual as pesquisas científicas devem partir e fundamentar a liberdade religiosa, sem a intervenção do Estado ou de qualquer instituição, no âmbito da religião e da família.
E, por fim, concluí que a novela apresenta duas alternativas políticas implícitas para o telespectador: na eleição brasileira de 2018, ou você vota no Cristo do pleito (um político de direita, liberal na economia e conservador nos costumes) ou você vota no anticristo do pleito (o político de esquerda, investigado por corrupção, carismático, defensor dos direitos humanos, do diálogo inter-religioso e do conhecimento científico secular). O que se reflete, de forma intencionalmente estereotipada, nas campanhas de Jair Bolsonaro (o Cristo do pleito) e do PT (o anticristo do pleito).
O constante processo de desconstrução de políticas públicas sociais, trabalhistas identitárias, ambientais e econômicas pelo governo Bolsonaro diminui a capacidade de atuação do Estado na promoção da proteção socioambiental e aumenta a liberdade de atuação (visando exclusivamente os seus próprios interesses de exploração) dos setores conservadores católicos e neofundamentalistas evangélicos, das milícias, dos empresários, dos banqueiros, dos grileiros, dos latifundiários do agronegócio, dos madeireiros, dos mineradores.
As referidas ações do governo Bolsonaro refletem explicitamente qual a concepção de apocalipse da sua base ideológica: o menosprezo pelo mundo material, o pessimismo antropológico, a alienação da capacidade de criticar os problemas sociais, o esperar passivo pela emergência de um líder messiânico, ou da volta de Jesus, para a concretização da destruição final do mundo.
REFERÊNCIAS:
BRANK, Renold, J. Escatologia do mundo: o projeto cósmico de Deus. Escatologia II. São Paulo: Paulos, 2008.
RECORD TV. Apocalipse. Telenovela, Casablaca, São Paulo, 155 cap. 2017 – 2018.
SANTOS, Glaucon Durães da Silva. Encenações apocalípticas de uma crise política: análise das relações entre a novela Apocalipse (Record TV), a IURD e o cenário pré-eleitoral de 2018 no Brasil. 2021. 241 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2021.
Glaucon Durães da Silva Santos é doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas e colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas.