Na véspera da grande assembleia da VI APD da Arquidiocese de Belo Horizonte, a memória de um momento especial da caminhada por Alberto Antoniazzi

Em 1990, a Arquidiocese de Belo Horizonte resolveu lançar – em lugar de um “plano pastoral” – o Projeto Pastoral “Construir a Esperança”. O objetivo básico era revitalizar a ação pastoral e mais especificamente aprimorar a qualidade da vida eclesial e da ação pastoral na Arquidiocese, para que juntamente crescesse o ardor missionário e o empenho a serviço do povo de Deus, dos mais pobres, “(re)construindo a esperança”, que parecia ter sido “perdida” ao longo dos anos de 1980.

A década de 80 não foi só, pela primeira vez no Brasil, uma “década perdida” do ponto de vista do desenvolvimento econômico: a renda por pessoa de 1990 era a mesma de 1980, mas a concentração de renda, de um lado, e consequentemente a pobreza, ou outro, tinham aumentado. Foi também uma década de decepções políticas, apesar das conquistas e esperanças suscitadas pela campanha das “Diretas Já!” e pela eleição de um civil a Presidente da República, após 21 anos de regime militar e ainda pela aprovação da nova Constituição, em 1988. A década terminava na eleição de Collor, no estouro da inflação, aprofundando conflitos e desigualdades.

As pesquisas

A comissão executiva, encarregada de encaminhar o Projeto, em estrita articulação com o Arcebispo e o Conselho Presbiteral, depois com uma Comissão de Leigos e os Conselhos Pastorais, propôs como primeiro passo um estudo aprofundado da realidade pastoral e do seu contexto de mudanças socioculturais.

No domingo 18 de novembro de 1990 foi realizado um levantamento da participação nas missas, com a coleta de 270.304 fichas, conhecido como a “rasgadinha” de Dom Serafim (a ficha usada no levantamento era rasgada na altura da resposta que se queria dar), em 175 das então 178 paróquias da Arquidiocese. O levantamento foi custoso, mas nos deu um quadro realista da participação por idade, escolaridade, classe social e dos compromissos pastorais e sociais dos fieis.

O levantamento do universo de participantes das missas dominicais se revelou precioso também para avaliar a efetiva consistência das pesquisas de opinião feitas por amostragem. Enquanto todas as pesquisas de opinião daquela época (PNAD do IBGE, Gallap, nossa própria pesquisa de 1991) davam uma porcentagem de 30% de católicos que diziam ir à missa todos os domingos, a pesquisa de todos os participantes mostrou que a frequência dominical real se situava ao redor de 15% dos católicos. Ou seja, a participação efetiva era cerca de 50% menor do que aquela calculada com base nos católicos que dizem ir à missa semanalmente (e talvez tenham a intenção de fazê-lo), mas que de fato falham muitas vezes. O levantamento de 18/11/1990 revelou que cerca de 18% dos presentes naquele dia reconheciam ir à missa dominical “raramente”, cerca de 75% se diziam assíduos e outros não responderam.

Nos meses de janeiro e fevereiro de 1991, uma firma especializada fez uma pesquisa da religiosidade dos habitantes da Arquidiocese, com base numa amostra de 803 entrevistados, selecionados na população de mais de 18 anos. Os dados foram publicados num caderno, acompanhados pour um breve, mas questionador comentário crítico do Pe. João Batista Libanio.

A descoberta essencial da pesquisa foi que os próprios católicos precisavam de… evangelização. A pesquisa revelava que a imagem de Deus da maioria da população era vagamente deísta, não cristã. Deus Criador e Pai era citado só por 17,6% dos entrevistados; Jesus Cristo, por 4,9%, a Santíssima Trindade por 1,5%. As concepções escatológicas sobre o destino do ser humano para além da morte e o fim do mundo eram bastante confusas. Entre os católicos, 76% acreditavam na eternidade da alma e 63% na reencarnação.

Libanio inicialmente, inclusive no comentário publicado, procurou explicar o fato com as falhas de conteúdo da pregação católica, por exemplo, a insistência sobre o Deus uno e o esquecimento do Deus trino. Depois, nos estimulou – estou falando da equipe central e das Comissões que levaram adiante o Projeto Pastoral “Construir a Esperança” (PPCE) – a aprofundar a questão da comunicação da e na Igreja e a atenção à nova sensibilidade religiosa dos anos 1990.

Os programas de evangelização

Convencemo-nos de que era necessário lançar um “programa de evangelização”e, a partir de agosto de 1991, passamos a fornecer roteiros de homilias dominicais, que procuraram superar a fragmentação reinante em nossa pregação, propondo um tema para cada período litúrgico, em harmonia com os textos bíblicos das celebrações, para que tivesse um desenvolvimento orgânico ao longo de algumas ou de muitas semanas.

Ao roteiro homilético logo foi acrescentada uma orientação para a animação litúrgica, visando oferecer subsídios e estímulos à participação ativa dos fiéis. Ao mesmo tempo, o tema das homilias era retomado na mensagem dominical do Arcebispo, transmitida por várias televisões, e em comentários radiofônicos.

Foram incentivados grupos de reflexão ou evangelização, que retomando a metodologia dos círculos bíblicos – desenvolvida em Belo Horizonte, em 1971 e 1972, pessoalmente por Frei Carlos Mesters – propunham aos fiéis interessados uma reflexão semanal, confrontando o evangelho da liturgia dominical com a vida cotidiana.

Esta praxe foi adotada depois, a partir do advento de 1996, pela CNBB, no Projeto de evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, que realizou no Brasil a proposta do Papa de preparação do Grande Jubileu do ano de 2000.

O discernimento dos objetivos

O programa de evangelização foi lançado sem muita discussão prévia. O clero e os agentes de pastoral, que tinham colaborado ativamente nas pesquisas no final de 1990, queriam ver logo linhas de ação. Mas a Comissão central do PPCE sentia a necessidade de aprofundar melhor os objetivos. A reflexão aconteceu em alguns encontros junto do santuário da Serra da Piedade, e foi lá que nasceu, com a ajuda mais uma vez do Pe João Batista Libanio, uma formulação básicas dos objetivos.

Fixamo-nos em três objetivos pastorais, que se situam em níveis diferentes.

1. No nível da pessoa e da vivência pessoal da fé, percebemos a necessidade de contribuir para desenvolver uma espiritualidade do cristão comum, do “leigo” ou “leiga” que na vida cotidiana quer viver segundo uma inspiração autenticamente evangélica. Como se sabe, as grandes “escolas” de espiritualidade católica (beneditina, franciscana, carmelita, inaciana…) estão ligadas à vida religiosa e consagrada, conservando fortes traços do monacato. Os leigos, muitas vezes, refugiaram-se em algumas devoções particulares (à B. V. Maria ou aos santos) ou, mais recentemente, na espiritualidade de movimentos, modernos quanto à data de nascimento, mas substancialmente tradicionais quanto ao espírito, versões modernizadas de práticas antigas. Nossa pretensão (ou nossa busca, que ainda está no estágio inicial) era a de uma espiritualidade do cotidiano, da vida dos cristãos no seio da vida familiar, dos trabalhadores e trabalhadoras, cujas atividades não se dão mais, hoje, num ambiente quase que naturalmente “religioso”, mas num contexto secular, se não secularista.

2. No nível da comunidade, a hipótese inicial de trabalho se configurou como a de “rede de comunidades”. Nas explicações iniciais, a reação do público era curiosa: uns entendiam o discurso sobre a “rede”; outros, o discurso sobre a “comunidade”. A dificuldade era perceber a novidade do discurso, o esforço de promover, sim, mesmo no ambiente urbano, a multiplicação de grupos de interesse e pequenas comunidades, baseadas sobre a vizinhança ou outro tipo de relacionamento, mas ao mesmo tempo de inseri-las numa “rede” mais ampla de conexões e intercâmbio, que comunicasse às pequenas comunidades a riqueza da vida eclesial numa grande cidade, solicitada por muitos apelos e desafiada por muitos conflitos, questionamentos e mudanças. Este objetivo está longe de ser alcançado e os laços comunitários estão sempre mais expostos à erosão do individualismo contemporâneo. Aumentam, porém, as formas de comunicação entre as pessoas e grupos e novos movimentos “transversais”, não necessariamente ligados a uma classe social, ao gênero ou à idade, que permeiam a sociedade e a Igreja. E aumenta também a influência da mídia, que parece trazer mais massificação e banalização do que verdadeiras oportunidades de desenvolvimento pessoal ou de engajamento social.

3. No nível da sociedade, o objetivo fixado é a presença pública da Igreja. Esse objetivo exige um discernimento atento das meios e dos modos da presença. Não se trata de reduzir a atuação da Igreja a uma influência de tipo partidário, que empobreceria sua mensagem universal e transcendente. Mas também não pode se limitar à afirmação abstrata de princípios. É preciso intervir sobre os fatos que afetam a vida e o destino do povo.

Desse ponto de vista, o Pe. João Batista Libanio nos ajudou sempre a ver de forma não imediatista a realidade sociocultural ou sociopolítica. Procurou desenvolver uma leitura atenta às dimensões estruturais e às grandes transformações históricas, que escapam muitas vezes à miopia de quem só olha de perto os fenômenos mais próximos, imediatos. Um exemplo desse tipo de análise – aplicado à cidade e à vida urbana – é o livro As lógicas da cidade… A contribuição de Libanio em nossa ação pastoral não deixa de ter outra marca: alguém que aponta caminhos, que descortina horizontes, que nos faz sonhar metas longínquas e nos faz crer que podem ser alcançadas. A nossa ação pastoral – a dos nossos agentes de pastoral e de nossas comunidades – está, porém, ainda muito presa ao passado, muito tímida em face do mundo novo que está surgindo, muito distante das propostas que Libanio descreve de forma apaixonada e convincente, como se estivesse ao alcance da mão.

Alberto Anoniazzi

Pe. Alberto Antoniazzi (1937-2004), na época, secretário executivo do Projeto pastoral “Construir a esperança”, da Arquidiocese de Belo Horizonte e colaborador do Instituto Nacional de Pastoral da CNBB (INP), texto publicado em KONINGS, Johan. Teologia e Pastoral. Homenagem ao Pe. Libanio. São Paulo: Loyola, 2002, p. 169-177.