O Projeto Pastoral “Construir a Esperança” representa um marco importante na caminhada da Igreja Particular de Belo Horizonte. Vale a pena revisitá-lo com olhar prospectivo e atento aos desafios e urgências pastorais de nosso tempo. O Observatório da Evangelização disponibiliza aqui uma preciosa memória: a análise do projeto e dos dados coletados nas pesquisas pelo olhar penetrante do teólogo pastoralista João Batista Libânio.
Confira:
Projeto pastoral “Construir a Esperança”
Histórico do projeto
A Arquidiocese de Belo Horizonte vinha pensando, há algunn tempo, em iniciar um processo de reflexão pastoral mais abrangente. Num primeiro momento, parecia ser importante decidir se o término do processo deveria ser um Sínodo ou uma Assembleia, com as vantagens e desvantagens de cada uma dessas formas. Contudo, preferiu-se, num segundo momento, colocar tal questão entre parênteses, e simplesmente iniciar o processo, esperando que de dentro do seu próprio desenrolar surgissem as melhores decisões e opções.
Diferentemente de outras dioceses, não se quis orientar tal processo na linha de uma avaliação pastoral no sentido estrito, em que o olhar para o passado seria prioritário. Antes se preferiu partir do presente em vista do futuro.
A idéia-mestra consiste em mobilizar todas as forças vivas da Igreja particular de Belo Horizonte numa tomada de consciência dos atuais desafios em busca de pistas de orientação para o futuro.
Em homilia/mensagem que foi lida em todas as igrejas da Arquidiocese no dia 19 de agosto de 1990, Festa da Assunção de Maria Santíssima e da Padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora da Boa Viagem, D. Serafim Fernandes de Araújo convocou “os católicos e todas as pessoas de boa vontade para compreenderem melhor os desafios do presente, as aspirações das pessoas e comunidades e assim participarem mais ativamente da construção de uma nova sociedade, à luz de Cristo“. Continuando, disse: “Sintetizamos tudo isso num projeto pastoral que se expressará pelo lema: ‘Construir a Esperança‘”.
Para criar em toda a Arquidiocese um clima de consciência do projeto, em vista da preparação da série de pesquisas e da constituição de grupos de reflexão, programou-se uma série de homílias dominicais (para as quais foram oferecidos subsídios em nível de Arquidiocese) a partir do domingo seguinte ao lançamento do projeto (26 de agosto de 1990) até o domingo 23 de setembro.
Trata-se de um projeto participativo que teve data para começar, mas que não tem data para terminar. Está aberto a sempre novos passos, conforme o processo em andamento o exigir.
Ver a realidade
Num primeiro momento, procurou-se ver a realidade. Diversas pesquisas foram organizadas. Entre agosto e novembro de 1990, centenas de grupos refletiram em torno de quatro roteiros previamente distribuídos, nos quais se perguntava sobre o apelo do arcebispo a participar no projeto, sobre a consciência da própria missão de batizado, sobre os “sinais de vida” e “sinais de morte” na sociedade atual e sobre a missão da Igreja e do cristão hoje. Os grupos enviaram suas reflexões ao secretariado do projeto, que as devolveu, em forma sintética, num boletim, criado especialmente para ser instrumento do projeto.
Destes resultados, emergiram algumas constantes:
- criação de um clima de esperança, expectativa e disponibilidade de participação;
- sensação por parte dos católicos de perda de gente e terreno ante o mundo, as seitas;
- constatação de enorme pluralidade de atividades e missões da Igreja com desejo de valorizá-las ainda mais;
- dificuldade de motivar e mobilizar as pessoas na sua inércia de práticas costumeiras;
- percepção do despreparo do cristão/leigo para a missão de hoje;
- visão realista da gigantesca problemática da sociedade/cidade de Belo Horizonte nos diversos campos;
- clara tomada de consciência de sinais de vida na sociedade e na Igreja ao lado de sinais de morte;
- por fim, percepção da importância de se incentivar a vocação missionária na Igreja local.
Em novembro de 1990, fez-se um levantamento paroquial em todas as missas sobre o perfil daquele que frequenta nossas igrejas. Foram aplicadas umas 270.000 fichas, em que se perguntava pelo sexo, idade, estado civil, moradia, nível de instrução, ocupação, frequência à missa, participação na confissão individual e/ou comunitária, tipo de engajamento na Igreja e na vida social/ política, nível de assistência à TV, audiência de rádio e leitura de jornal e finalmente se estaria disposto a dedicar mais tempo ao serviço da comunidade.
P. Alberto Antoniazzi apresentou de maneira clara, didática e sucinta comentários pertinentes sobre o resultado de tal pesquisa, ressaltando o perfil do católico que frequenta nossa missa dominical (Religião na Grande BH. Primeiro relatório das pesquisas promovidas pela Arquidiocese de BH, Projeto Construir a Esperança, 1991, pp. 26-51). Cada paróquia apurou seus resultados e várias delas devolveram de maneira didática a seus fiéis o retrato emergido da pesquisa.
Em janeiro e fevereiro de 1991, o Instituto Opinião, Consultoria e Pesquisa Antônio C. Guimarães realizou por amostragem uma pesquisa de opinião sobre a “Fé e práticas religiosas” do habitante da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sobre os resultados dessa pesquisa, o próprio Instituto e o P. Alberto Antoniazzi fizeram uma leitura interpretativa.
Uma terceira pesquisa foi feita em todas as paróquias à base de perguntas abertas. Depois de rápida identificação, perguntou-se ao pesquisado:
- se a religião é importante para ele;
- o que procura nela;
- o que o satisfaz ou agrada mais na Igreja Católica;
- o que não lhe satisfaz ou desagrada na Igreja Católica;
- e que sugestões gostaria de dar à Igreja em Belo Horizonte.
Foram perguntadas 40 pessoas em cada paróquia assim distribuídas: 10 católicos militantes, 10 católicos praticantes, 10 católicos não-praticantes e 10 não-católicos. Os resultados dessa pesquisa estão sendo processados.
O P. Pedro Leboulanger ofereceu já algumas observações e sugestões no referente à problemática da forma religiosa do tradicionalismo em suas manifestações e consequências e também da migração dos católicos para outras religiões, quer no nível das classes pobres, quer no nível das classes média-alta e alta.
Esta mesma pesquisa foi aplicada ao clero na assembléia da Arquidiocese.
A partir das pesquisas constatou-se uma deficiência generalizada na catequese básica. Para responder a esta necessidade, lançou-se um pequeno programa de evangelização através das homílias dominicais. Para isso, foram preparados subsídios para os textos bíblicos para os domingos de 18 de agosto de 1991 até 24 de novembro. Para cada roteiro, elaborou-se uma folha volante com algumas perguntas e pistas de aprofundamento que eram distribuídas a todos os fiéis que frequentavam a missa, a fim de aprofundarem o tema em família ou em grupos especialmente criados para isto.
Em vez de abordar toda a complexa temática que está surgindo das pesquisas, optou-se por escolher cinco temas de reflexão e campos de ação com a finalidade de serem aprofundados nos diversos níveis de paróquia, de forania e de Arquidiocese. Nos níveis de paróquia e forania, a forma depende da criatividade dos párocos e vigários forâneos. Em nível de Arquidiocese, criaram-se cinco grupos temáticos para refletir, propor sugestões e oferecer pistas. Os temas são os seguintes:
- Liturgia e vida;
- Comunicação e evangelização;
- Pastoral social;
- Formação sobretudo do leigo;
- e Juventude.
Estes grupos estão já em funcionamento no sentido de ir refletindo e analisando a realidade da Arquidiocese no campo específico de seu tema, aproveitando os dados já disponíveis pelas pesquisas. Desta reflexão surgem problemas aos quais se devem oferecer pistas pastorais de soluções. Espera-se que desses grupos surjam sugestões para os diversos níveis da vida da Arquidiocese nesses campos tão relevantes para a pastoral.
Estão previstos, como os próximos passos do Projeto, dois programas de evangelização com subsídios para as homílias, cursos de atualização para o clero e cursos de formação teológico-pastoral para leigos, quer em nível de Arquidiocese, quer de forania, quer de paróquia. E os grupos temáticos continuarão seus trabalhos de análise, levantamento de problemas e de pistas pastorais.
A equipe de liturgia já elaborou, a partir das necessidades descobertas pela pesquisa e com a intenção de não deixar nem o tempo de férias sem algum estímulo pastoral, uma série de subsídios sobre os fundamentos da liturgia (a celebração do mistério pascal no ano litúrgico, no domingo, na missa e na vida cotidiana). Eles giraram em torno das leituras dos domingos de 12 de janeiro até 1° de março. O método do uso dos subsídios foi semelhante ao empregado nos programas de evangelização. Publicaram-se um folheto de orientação para os encontros de grupos para uso do coordenador e folhas volantes para cada fiel. Aconselhou-se a criação de cada vez mais grupos de reflexão na paróquia onde se podiam aprofundar os roteiros preparados pelo grupo temático de liturgia.
Em termos de pastoral da juventude, estão previstos dois grandes encon-tros de todos os jovens crismados em 1991 e a serem crismados em 1992 no Mineirinho em abril e outro, também no Mineirinho, de todas as crianças que fizeram a Primeira Comunhão nos dois últimos anos.
Como o ano pastoral está iniciando, outras iniciativas irão surgindo dos grupos temáticos e da Comissão Central. Trata-se de um projeto que se vai construindo à medida que vão aparecendo os primeiros resultados, sem ter de esperar um momento somente para planejar. Planeja-se no caminho do próprio processo com pequenas iniciativas. O perfil do planejamento aparecerá, não de uma vez, mas vai-se configurando lentamente e sem término predeterminado. Esta é a originalidade de tal projeto: participativo, progressivo, sem término pré-fixado.
Comentário sobre as pesquisas
Levando em consideração os dados e os primeiros comentários das pesquisas, tentei captar algumas tendências e oferecer já algumas sugestões teológico-pastorais iniciais.
1. Da indefinição para uma definição mais nítida: Deus e escatologia: dimensão pessoal com repercussão definitiva
Chama a atenção certa porosidade teológica dos entrevistados católicos a respeito, quer de Deus, quer da dimensão escatológica da vida.
a) Sobre a experiência trinitária de Deus
É verdade que se afirma, em números altos, a fé em Deus, na Trindade, na divindade de Jesus Cristo. Entretanto ao descrever o conteúdo de Deus, a dimensão pessoal sofre detrimento em relação à ideia de Deus “Tudo, o Todo, O Todo-poderoso” (49,3%). Relacionar Deus com a Trindade recebe 1,5%. Não tenho os dados dos católicos, mas do geral. Entretanto isso já revela a predominância da religiosidade geral à custa de uma Trindade atuante na história.
Apesar de a Bíblia receber alta aceitação (84,1%), parece que a visão que ela dá de Deus ativo na história (AT) e trinitário (NT) não vem configurando a fé do católico. Isso pode significar que esta fé não vem sendo alimentada por uma leitura e assimilação do conteúdo bíblico. É inegável o enorme esforço que a Igreja católica tem feito depois do Concilio Vaticano II na valorização da leitura bíblica e na produção de inúmeros subsídios para aumentar o amor e conhecimento da Escritura. Mas o resultado de tais atividades é mais lento do que se pode imaginar. As socializações mais antigas e tradicionais ainda predominam.
Por isso parece acertado que se continue insistindo nos círculos bíblicos, na leitura e meditação da Escritura. Pode-se perguntar até onde a maneira de pregar da maioria dos padres ainda não salienta suficientemente a dimensão de ação de Deus pessoal e trino na história, corrigindo uma versão mais anímica e difusa de Deus.
Vale como alerta para uma maior exatidão teológica no falar de Deus, recordando que “Deus” sem outro epíteto na Escritura e na liturgia significa a pessoa de Deus Pai e não a essência divina. Este cuidado litúrgico e bíblico devia ser mais explicitado para que os fiéis se conscientizem mais da Trindade.
Como o único acesso que temos à vida íntima da Trindade se faz pela ação de Deus na história, é importante que tal acesso seja mais explicitado e que não se fale da vida interna de Deus a modo do tratado tradicional de Deus uno. Quanto mais trinitárias forem a pregação, as interpretações da Escritura, as orientações bíblicas, as explicações litúrgicas, tanto mais se estará ajudando a superar uma consciência vaga da divindade, e portanto firma-se mais claramente a especificidade cristã.
b) Sobre a escatologia cristã
Reflexão semelhante vale da escatologia. Os parcos dados indicados pela pesquisa revelam uma dificuldade de entender como 72% acreditam na eternidade da alma, mas somente 59,7% acreditam na vida depois da morte. E também 54,8% acreditam na reencarnação. Isso leva a pensar que reina uma confusão sobre a temática escatológica. O “salva tua alma” tradicional convive com dúvidas sobre a vida depois da morte e sobre a reencarnação. Este último dado deve-se naturalmente à influência espírita também no universo católico.
Pastoralmente significa que a temática da escatologia, muito esquecida depois de ter sido objeto central das tradicionais missões populares e pregações moralizantes antigas, necessita ser retomada sob nova luz. Poucos temas teológicos avançaram tanto como os referentes à escatologia. Reina provavelmente certa insegurança nos pregadores a respeito dessas questões. De um lado, sentem que já não podem pregar como antigamente, mas também não sabem como fazê-lo de outro modo. Esse silêncio na pregação e catequese propicia a entrada de outras visões nesse campo.
Um combate frontal à reencarnação não parece ser a via mais aconselhada num mundo cada vez mais pluralista e infenso às apologéticas agressivas. A pregação mais insistente sobre a presença de Jesus ressuscitado, sobretudo na liturgia, pode oferecer excelente acesso à temática escatológica. No tempo pascal, poder-se-ia privilegiar, nas pequenas introduções litúrgicas, a presença nova do Senhor ressuscitado na assembléia. A partir da presença de Jesus ressuscitado, vai-se criando a consciência de uma nova maneira de viver para além da morte, que é a resposta cristã à reencarnação. Participar dessa vida nova de Jesus é todo o sentido da vida cristã.
A problemática da reencarnação poderia também ser abordada sob o ângulo da responsabilidade pessoal. Ponto muito sensível ao homem de hoje, que uma visão reencarnacionista poderia esvaziar.
2. A dialética entre empenho assíduo (19%) e ativo (9,8%) = (28,8%) e a frequência rara (49,9%) ou nula (29,9%) = (70,8%): entre o militantismo interno e a influência externa.O desafio da religião individualista e do indiferentismo
A qualidade da frequência do católico também é questionante. 70,8% refletem uma fraca frequência, nula (20,9%) ou rara (49,9%). Consideram-se militantes somente 9,8%. Assíduos são 19,5%, de modo que uma boa presença cobre a faixa de 28,8%.
Aparece o fenômeno da busca de religião individualista, sem participação comunitária. Atualmente acusam tal prática 26,2%, mas a faixa dos participantes esporádicos — raramente (42,5%) — pode aumentar tal tendência.
Portanto enfrenta-se o sério problema do enfraquecimento crescente da frequência com uma tendência a uma religiosidade individual, não vinculada à instituição eclesial. E no extremo existe certo indiferentismo religioso.
Sendo a Igreja católica majoritária, não causa, sociologicamente falando, nenhuma estranheza que sua prática religiosa seja mais baixa proporcionalmente ao número de adeptos. Realiza-se a clássica dialética da massa e minoria, tão bem elaborada por J. L. Segundo. A partir da reflexão de J. L. Segundo, podem-se pensar dois tipos de atividade pastoral:
a) Uma que se concentre nos católicos de maior empenho (9,8%), mas de modo que esses sejam irradiadores de presença evangélica para os 70,8% de pouca participação. Em geral, falha-se trabalhando com os de maior empenho que praticamente consomem seu tempo no interior da Igreja. Esses deveriam, pelo contrário, diminuir seu trabalho em estruturas eclesiásticas e aumentar sua presença fora do ambiente eclesial. As minorias são pensadas para favorecerem uma síntese religiosa mais perfeita que atinja as massas. Isso se faz, quer criando estruturas de difusão e influência, quer mecanismos ágeis de contacto com essa massa periférica.
Por conseguinte, o maior esforço dessa minoria deveria concentrar-se para fora das estruturas que só alcançam os católicos e criar portanto estruturas e mecanismos de maior alcance cristão. Uma vez que o amor, a justiça social, a liberdade são os grandes valores do Reino e realmente fazem a história da salvação alcançar densidade concreta, é nessa direção que os esforços dessa minoria deveriam ser orientados. E não diretamente num proselitismo de frequência eclesial. As massas sempre serão massas. E elas avançam por causa das sínteses novas e ricas das minorias. Estas sínteses são as descobertas de valores que a minoria consegue consubstanciar em estruturas e mecanismos históricos.
b) As pesquisas falam da relevância da influência familiar na transmissão dos valores religiosos católicos. Esta é uma estrutura de massa que permite difundir valores e comportamentos, que necessitam ser transmitidos a ela por essas minorias conscientes e ativas. Nesse sentido, investir na socialização familiar parece ser um campo prioritário. Tal se dá pela difusão de conhecimentos, experiências e comportamentos que alertem as famílias para a relevância do momento socializador dos filhos. A catequese massiva batismal, a preparação para o matrimônio, campanhas mais amplas de divulgação podem ajudar em tal atividade conscientizadora.
Entretanto esse empenho deve ter a lucidez de saber que a tendência da modernização é diminuir a força socializadora da família e acentuar a dos meios de comunicação social. Por isso a via familiar, que tem sido a principal transmissora da fé para os católicos, vai perder força e vamos sofrer o impacto negativo de tal processo.
As pesquisas apontam também o risco da religião individualizante e o crescimento do indiferentismo religioso, pelo menos, no sentido institucional. Para responder a tal problemática da sociedade moderna, tem-se elaborado uma saída pastoral que procura tocar o ponto central do fenômeno, a saber, a subjetivização da religião e a relativização das instituições religiosas. É um fenômeno paradoxal. Pois, de um lado, deixa enorme espaço para a experiência religiosa e, de outro, possui frio indiferentismo diante das formas oficiais religiosas. A religião reflui para a esfera da intimidade individual. Talvez nesse paradoxo consista fundamentalmente a secularização nessa fase pós-moderna.
A solução que algumas paróquias e/ou movimentos têm buscado vai na linha de modificar a linguagem global religiosa. Com linguagem global quer-se exprimir não somente a palavra falada ou escrita, mas todos os meios de comunicação. Busca-se encontrar uma nova linguagem que fale a esse homem moderno. O programa de TV da Rede Bandeirantes aos domingos tem sido um desses exemplos mais claros. A renovação carismática, com seus encontros, tem procurado inserir-se nesse movimento de uma pastoral de superação do indiferentismo e insertar dentro da instituição eclesial o elã carismático individualista.
Outro caminho pastoral possível é partir desse desejo individualista do religioso, como dado crescente. Ao falar-lhe, intenta orientá-lo para uma linha do compromisso com o irmão necessitado e da busca de vivenciá-lo em comunidade estável. Com isso, evita-se, quer o aspecto puramente compensatório e alienante de tal surto religioso, quer o reforço da tendência individualista, quer mesmo uma busca difusa de experiências comunitárias sem nenhum vínculo e compromisso de comunidade. Pois uma das características desse surto religioso individualista é a busca de ter encontros, mas que não perturbem os interesses individuais e sejam simplesmente momentos de satisfação individual, sem nenhum laço e engajamento permanente, como comunidade. E a exigência cristã e eclesial fundamental significa, pelo contrário, uma saída da busca de si, da auto-satisfação como norma absoluta, do girar em torno dos próprios interesses individuais, em direção ao irmão, ao outro, à comunidade como compromisso permanente.
3. Da via familiar para a eclesial
Além dessa atividade de massa por meio das minorias, pode-se também aumentar, num segundo momento, o trabalho de comunitarização, celulização do catolicismo familiar. Isso significa que se pode pensar uma pastoral que favoreça o multiplicar-se de comunidades vivas de cristãos, não necessariamente vinculados orgânica e organizadamente à paróquia.
Essas comunidades vivas seriam o lugar natural onde aquela religiosidade familiar poderia encontrar certo aprofundamento, ultrapassando, portanto, a esfera da religiosidade vaga. Essa celulização pode ser pensada naturalmente em dois níveis:
a) Quer em comunidades mais populares, onde o círculo bíblico pode exercer papel importante;
b) Quer em comunidades de gente letrada, onde o aprofundamento teórico da fé e a celebração da vida poderiam revitalizar uma fé genérica.
Dois dados levantam um desafio para a nossa pastoral. O primeiro é o pequeno número de comunidades eclesiais de base – CEBs. A porcentagem de participação em CEBs na Arquidiocese é de 3,2%. O maior grupo está, como era de esperar, na Cidade Industrial e o mais fraco na Região Sul. Como o futuro duma presença mais profunda, consciente e resistente da Igreja no mundo popular, vai provavelmente depender do vigor das CEBs, cabe aqui uma reflexão séria sobre essa insuficiência de nossa pastoral. O segundo ponto importante se refere aos círculos bíblicos e sua atuação. Segundo a experiência de muitas Igrejas do país, o círculo bíblico é a fonte mais importante da criação de CEBs. Muitos evoluem naturalmente para verdadeiras comunidades de base. Ora, pelas estatísticas, o número de participantes em círculos bíblicos é relativamente alto (9,7%) em relação ao da participação em CEBs (3,2%), isto é, três vezes mais. Isso quer dizer que este tipo de círculo bíblico não está evoluindo em direção à comunidade de base.
O que permite pastoralmente tal evolução é um tipo de círculo bíblico, em que a reflexão sobre a Palavra de Deus se articula com a problemática social, do trabalho e de lutas políticas da comunidade. De muitos círculos bíblicos nascem lutas da comunidade. Esta se reúne com a dupla finalidade de organizar-se em vista da luta e de refletir sobre sua fé. Dessa articulação vai nascendo as CEBs. Pode-se perguntar se os círculos bíblicos não têm ficado num aspecto puramente de intelecção do texto bíblico e pouco articulados com a luta da comunidade. Por isso eles não têm sido germes de comunidades de base.
Outra forma de celulização da Igreja podem ser os grupos de oração. Eles têm um bom peso de presença: 17,0%. Podem transformar-se em verdadeira comunidade, de caráter e dimensão mais espiritualista. Mas mesmo assim podem ser início de uma vida comunitária mais intensa e profunda, ampliando para outros setores da vida o interesse do grupo. E desses grupos de oração, se de nível popular, podem surgir CEBs; se de classe média, podem favorecer comunidades de vida cristã mais intensa e consciente. Pois é este tipo de comunidade que resiste ao esfacelamento da sociedade moderna e ao processo secularizante das instituições religiosas.
Estas comunidades correm o risco de descolarem-se da comunidade maior de Igreja. Por isso um outro movimento deveria ser desencadeado, em que essas comunidades pudessem criar meios de encontrarem-se entre si. Não se trata necessariamente de uma paroquialização das mesmas, mas de constituir-se uma rede de comunidades. Atualmente, fora da paróquia, não se tem nenhuma estrutura capaz de fazer isso. É talvez momento de pensar se a única possibilidade de articulação das comunidades deva ser a paróquia ou já é tempo de ir “superando” esse monopólio paroquial com novas estruturas.
Nesse contexto, cabe tratar da questão da motivação predominante entre os fiéis católicos e a tendência previsível de seu comportamento futuro. As duas motivações mais indicadas na pesquisa por parte dos católicos são a fé e a tradição. Pode-se mesmo perguntar se por fé não se deve entender fé tradicional. Em outras palavras, a principal motivação de ser católico é a tradição. Só depois vêm motivações de caráter mais existencial: paz de espírito, situação de solidão ou carência etc. Ora, um dos efeitos mais claros do fenômeno de secularização é a diminuição da força da tradição religiosa em troca de um reforço das atitudes pessoais de decisão. Se tal fato é verdade, prevê-se que a secularização vai levar à diminuição da adesão à Igreja católica e favorecer o fluxo para outras denominações religiosas que respondam a situações existenciais. De fato, a adesão às Igrejas pentecostais e neopentecostais tem como motivações principais a fé e a autoprocura ou a procura de um sentido para a vida. Pode-se entender o termo “fé” em sentido subjetivo. E portanto o motivo de adesão às Igrejas pentecostais e neopentecostais corresponde mais à atual situação subjetivizante e menos tradicional.
A família sendo fundamentalmente o lugar de transmissão da tradição é também o lugar da veiculação da fé católica. À medida que a família perder sua função tradicional, também a transmissão da fé católica se ressentirá negativamente. Tudo leva a crer portanto dever-se trabalhar numa pastoral, como se tem feito aliás, de maior incentivo às motivações pessoais, às decisões livres e conscientes. A linha pastoral sacramental que vem sendo conduzida depois do Vaticano II vai exatamente na direção de uma fé assumida em liberdade e consciência. Por isso se multiplicaram os cursos, criaram-se condições para a recepção dos sacramentos. Isso significará certamente uma queda estatística, já que a própria motivação tradicional predominante não é incentivada nem mesmo pela Igreja.
4. Do imaginário rural para o urbano
A pesquisa mostra que os católicos são os que têm um pouco mais gente de origem rural ou do interior. Pode significar que a mensagem católica está mais vazada em modelo rural e mantém uma prática de ritmo rural e por isso responde mais a este tipo de gente. Sua pregação pode passear mais no imaginário rural que urbano. O clero ainda deve refletir na sua pregação tal universo simbólico. A urbanização violenta que a nova geração sofre numa grande cidade como Belo Horizonte está a pedir uma mudança, quer no imaginário da pregação, quer no ritmo das práticas. Sem dúvida, a liturgia já introduziu modificações nessa linha. A pergunta é se foram suficientes ou ainda requerem-se mais modificações.
As homílias devem ser vistas nessa perspectiva. Será que elas refletem antes imagens, valores, modo de exprimir correspondentes ao mundo rural? Ou já assumiram a problemática realmente urbana com seus desafios?
A formação de um imaginário social coletivo é lento. O principal fator hoje gerador de imagens é a TV com seus programas, sobretudo novelas [Atenção: Libanio aqui fala do contexto de 1992, portanto, há 26 anos atrás. Hoje este lugar é ocupado pela Internet e pelas redes sociais acessadas pelos smartphones]. Há, porém, uma relação dialética. As aspirações do povo condicionam também o mundo da TV [da Internet]. As necessidades, os desejos, os sonhos do povo estão aí disponíveis. Quem souber captá-los, traduzi-los em imagem e símbolos, consegue falar-lhes. E, por sua vez, tais símbolos necessitam ser decodificados em ação para que se produza alguma mudança real.
O desafio da pregação, da liturgia, das práticas eclesiais consiste precisamente em traduzir em imagens e símbolos as necessidades e aspirações do povo, mas não simplesmente para satisfazê-las ou aproveitar-se delas. Isso não significaria evangelização, mas para confrontá-las com a mensagem evangélica na linha de conversão e de práxis.
5. Da atmosfera religiosa para o compromisso secular
Este ponto parece bastante problemático na pesquisa. A mensagem social da Igreja não é um aspecto que ela pode ou não anunciar, segundo a maior ou menor receptividade. É intrínseca ao Evangelho. Portanto não tem nenhum sentido falar que a Igreja a adentrou no social e agora deve refluir para o mundo da religiosidade. O alcance social do Evangelho é inegociável. Evangelho sem práxis, sem compromisso, não é Evangelho.
A religião ainda exerce forte influência no comportamento pessoal, individual, no campo da moral. Não quer dizer que se sigam os ensinamentos oficiais da Igreja católica, mas que o sentimento religioso está presente nas decisões morais de 84,7% (55,9% muito importante; 28,8% importante), ao julgá-lo importante para tais decisões. Para o cotidiano, 82,3% retêm sua importância (56,4% muito importante; 27,9% importante).
Diferentemente se dá no campo político. Aí a relevância da religião vale para 45,9% (20% muito importante; 25,9% importante), enquanto 32,6% a julgam sem importância e 12,1% pouco importante (44,7%) nesse campo.
Sobre a atuação da Igreja católica no campo social, 20,5% acham-na ótima, 43,2% boa (total: 63,7%). Enquanto no campo político, 6,1% acham-na ótima e 26,7% boa. Por sua vez 44,5% consideram a ação política por parte da instituição eclesiástica regular, ruim ou péssima.
Entre os defeitos mais criticados, estão a politicagem (5,2% dos entrevis-tados) e a discórdia (4,7%). A dispersão de opiniões foi enorme. Cruzando com essas informações os dados sobre o tipo de participação em atividades pastorais, associativas e sociais dos católicos, percebe-se que no campo político a presença dos católicos é fraca. 2,6% responderam afirmativamente à pergunta sobre o exercício duma militância política. A participação sindical e/ou em asso-ciações de bairro é um pouco maior: 4,5%. A presença em pastorais mais comprometidas socialmente não se consegue saber, já que as respostas atravessam todo tipo de pastoral. Em todo caso, permanece a evidência de que os católicos não primam em nossa Arquidiocese por uma presença significativa no mundo da luta sindical e política.
A relevância do Evangelho sobre a vida parece reduzir-se aos campos alheios ao social e à política para bom número dos entrevistados. Isso mostra a exatidão da observação de J. Comblin, dizendo que o problema da evangelização não é a redução da dimensão transcendental à imanente, mas o contrário. A Igreja teve e ainda tem muito que fazer para articular essas duas dimensões. Os entrevistados revelam a consciência que eles criaram precisamente por causa da pregação da Igreja até então, e o empenho das últimas décadas ainda não deu seus frutos.
A conclusão não parece dever ir na linha de diminuir a pregação social, mas antes de aumentá-la para que tal distância, refletida na pesquisa, diminua. Evidentemente pode-se perguntar pela maneira de fazê-lo. Certamente em Minas Gerais deve-se levar em consideração uma longa presença da Igreja na política de extrema ambiguidade, apoiando grupos oligárquicos. E agora, ao apoiar grupos opostos, produz a oposição dos entrevistados.
A articulação da mensagem evangélica com o social e a política tem de ser de uma maneira que guarde a sua especificidade numa linha de crítica, de motivação do cristão a causas libertárias e de sinalizar elementos utópicos.
6. Considerações sobre o perfil do nosso fiel
A pesquisa ajuda-nos a perceber, sobretudo de forma comparativa com outras denominações religiosas, o tipo médio do católico sob diversos ângulos e permite assim reflexões pastorais preliminares.
Alguns traços. A freqüência é mais feminina que masculina. Os jovens na faixa de 15-19 anos diminuem fortemente sua presença. Quanto às meninas, começa tal queda mais cedo, entre 10-14 anos. A frequência cresce depois dos 40 anos e atinge a média máxima entre 60-69 anos.
Os extremos da escala social, quanto à instrução, frequentam menos. Os analfabetos e os mais letrados estão mais ausentes. A taxa de desempregados atualmente é alta na sociedade, mas entre os que frequentam a missa é pequena. Logo eles não estão em nossas Igrejas.
O tipo mais pobre, favelado, descamisado, frequenta antes as Igrejas pentecostais e neopentecostais que nossa Igreja. Significa que nossa presença junto a eles é menor. Isso tem a ver sem dúvida com a estrutura ministerial da Igreja e a possibilidade de contato da Igreja com eles. Ao tratar do fenômeno das Igrejas pentecostais e neopentecostais vamos ampliar essa consideração sobre a impossibilidade de a Igreja ter uma presença ministerial junto à massa pobre das periferias e, pelo contrário, a abundância de pastores permite-a às Igrejas pentecostais e neopentecostais.
Há uma indicação da pesquisa que permite perceber um deslocamento da elite para o espiritismo ou ateísmo. Podem ser pensadas várias causas:
— o espiritismo desenvolve uma atividade assistencialista, confortadora para a consciência moral da elite e que a Igreja numa perspectiva mais libertadora já se nega a favorecer; o ateísmo é compatível com um humanismo sem transcendência, que responde ao senso ético do homem;
— o espiritismo tem um aspecto esotérico que sacia, em parte, esta sede crescente de espiritualismo dessa classe; o ateísmo deixa a pessoa disponível para as mais diversas experiências, sem vinculações dogmáticas;
— o espiritismo com a reencarnação alivia a responsabilidade de única existência, vindo de encontro a anseios de tais classes e a sua má consciência; a não-existência da Transcendência, mesmo que não se queira, diminui o senso de responsabilidade de nossos atos.
7. A dimensão sacramental
A pesquisa oferece dados sobre a confissão individual e comunitária, além da frequência às missas. Sobre a confissão, não sei se se pode arriscar uma reflexão pastoral a partir da comparação entre a confissão individual e comunitária, já que não se trata de frequência exclusiva de uma das formas. Mas simplesmente pelos números, parece acontecer o oposto daquilo que os críticos da confissão comunitária costumam dizer, a saber, que ela favorece um laxismo espiritual. Avento a hipótese contrária. Aqueles cristãos que frequentam mais raramente as missas, são os que se confessam, também raramente, mas individualmente. Os que frequentam mais a eucaristia são os que também preferem a confissão comunitária. Parece que esta atrai pessoas de maior nível espiritual, de maior compromisso e vivência eclesial. Parece que ela consegue criar um clima de maior exigência espiritual que a confissão individual. Não se trata de uma comparação em abstrato, mas como se pratica na atual Igreja. Levanto a suspeita de que a confissão individual se faz em geral em momentos de mutirão, com certa rapidez, e por isso ela não proporciona o mesmo clima de tranquilidade e piedade que uma confissão comunitária preparada pelo sacerdote com mais esmero.
O P. Alberto Antoniazzi observara que “parece evidente que onde foi multiplicado o número de Missas (ou de cultos), a porcentagem dos participantes é mais elevada” (p. 48). Partindo desse dado, pode-se perguntar se não é possível pensar de maneira mais consistente na formação e organização dos ministros do culto . No momento, não há condições de pensar uma ampliação significativa do quadro de sacerdotes. A tendência é de que quanto mais viva se tornar a nossa Igreja local, mais surgirão lugares de cultos, para os quais não se têm sacerdotes ordenados. E quanto mais lugares de culto se criarem, mais viva se tornará a Igreja.
Surge então a questão, se não seria momento de pensar num “ministério instituído não-ordenado” do celebrante de culto, dando-lhe maior relevo e significação eclesial, que se confere atualmente ao ministro da eucaristia. Poder-se-ia pensar em cursos breves ou mesmo numa escola de preparação para ministros de culto. Durante esse curso, haveria um acompanhamento espiritual e intelectual que permitisse uma escolha do candidato a ser constituído “ministro do culto” numa celebração litúrgica por determinado tempo. De ambos os lados, do ministro e da Igreja hierárquica, haveria um compromisso de fidelidade. Superar-se-ia um puro espontaneísmo e aumentaria a legitimidade do ministro, ao ser reconhecido pela Igreja de maneira oficial. O desejo de que a comunidade participe na escolha de seus ministros não é no momento viável em relação ao ministro ordenado. Mas poder-se-ia começar tal prática com o ministro de culto. Portanto a escolha e designação final para receber o envio passaria de certo modo pela mediação da comunidade em que ele iria exercer sua função. Além do mais, seria uma resposta ao desafio ministerial levantado pelas Igrejas pentecostais e neopentecostais, viável na atual situação de Igreja.
A institucionalização do ministro do culto não deveria esgotar as outras possibilidades de ministérios instituídos não-ordenados, nem também o surgimento de formas mais carismáticas de ministérios espontâneos. A vitalidade duma Igreja particular manifesta-se também na pluralidade de ministérios. Basta recordar Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, que trata diretamente dos ministérios não-ordenados como “aptos para assegurar um especial serviço da mesma Igreja” e que estão em continuidade com “experiências vividas pela Igreja ao longo de sua existência” (n- 73).
Um dado da pesquisa pode animar-nos nessa linha de ampliar os ministérios instituídos e/ou espontâneos, a saber, o enorme número (44,3%) de pessoas que se declararam disponíveis a dar mais tempo para servir à comunidade.
8. O fenômeno das Igrejas pentecostais e neopentecostais
Inegável seu crescimento. A pesquisa já acusa tal fenômeno ao dizer que entre 20% a 40% das pessoas apontam o fato de algum membro de sua família ter deixado a Igreja. Não especifica que seja para uma entre as Igrejas pentecostais e neopentecostais. Mas certamente irá nessa direção. 46% dos crentes foram católicos. A maioria dos pertencentes às outras religiões vieram das hostes católicas.
O crescimento do fenômeno pentecostal é visível aos olhos de quem passeia pelas periferias de nossa cidade e pelas estradas do Estado. Nascem templos como cogumelos depois de chuva.
Este fenômeno assenta-se sobre o tripé da cura, do exorcismo e da promessa de prosperidade econômica. Três forças extremamente apelativas para o nosso povo, sobretudo no momento atual.
A prática da cura encontra, antes de tudo, um desejo vindo de matrizes religiosas arquetípicas, que nós mesmos introjetamos no povo com nossas pregações tradicionais. O catolicismo milagreiro penetrou as camadas populares e mesmo não populares até o mais profundo da psique. As Igrejas pentecostais e neopentecostais simplesmente tocam tal tecla menos manuseada pelos católicos depois do Concilio Vaticano II. Além disso, a situação precária do sistema de saúde do país não é a causa, mas agrava tal desejo e necessidade de cura. Somando esses dois fatores, as massas correm em busca de milagre, onde este se oferece, quer nos templos pentecostais e neopentecostais, quer junto às imagens milagrosas de Igrejas católicas.
A situação das camadas mais pobres torna-se cada vez mais precária. Vive–se numa atmosfera de “tentação” contínua, de violência extremada, de penúria, de pressão psicológica, que, em muitos casos, provocam desequilíbrio físico e mental nas pessoas. Comportamentos esquisitos surgem, quer para as próprias pessoas, como para os outros. Nesse momento, interfere a interpretação do pastor pentecostal ou neopentecostal duma presença do demônio. O demônio também pertence à matriz psíquica profunda do povo. Nós semeamos esse arquétipo. Agora ele eclode na forma de exorcismos nas Igrejas pentecostais e neopentecostais. A dramaticidade da vida real permite que os exorcismos assumam o mesmo grau dramático. Onde se oferece um exorcismo, lá correm as pessoas acabrunhadas por misteriosas forças internas, que são a condensação psíquica de uma contínua violência a que estão submetidas no cotidiano.
Envolvendo o clima propício para a cura e/ou para o exorcismo, cria-se um verdadeiro êxtase coletivo. Ora tal sensação é altamente terapêutica para pessoas submetidas a pressões psíquicas violentas, como é a maioria de nosso povo pobre na sociedade moderna, sobretudo nas grandes cidades. Nesses êxtases, experimentam as pessoas um sentimento de solidariedade, sem necessidade do peso de criar uma comunidade estável com exigências constantes.
As Igrejas pentecostais e neopentecostais prometem prosperidade. Quem não a deseja, sobretudo quando vive na carência absoluta de tudo? Não se trata da promessa aleatória das loterias, que são frequentadas certamente cada semana por um público gigantesco. É uma promessa que se vai cumprindo cada dia e de maneira verdadeiramente constatável. De fato, na sua pobreza muitos se entregam à bebida e a outros gastos supérfluos que os mergulham em miséria maior ainda. Uma lenta recuperação moral, produzida pela pregação das Igrejas pentecostais e neopentecostais, leva a um duplo efeito. De um lado, consegue-se um mínimo de poupança evitando esses gastos do vício e, de outro, muitos se empenham mais seriamente no trabalho produzindo naturalnmente melhora de rendimento. Essas duas pequenas fontes econômicas terminam produzindo o efeito de melhoria na vida material, identificada com a bênção de Deus e a generosidade nas esmolas dadas no templo.
Estas razões referem-se à estrutura interna da evangelização das Igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas explicam, em parte, esse sucesso enorme das pregações e ações dos pastores. Entretanto há uma agilidade ministerial das Igrejas pentecostais e neopentecostais que lhes permite uma presença crescente junto às populações, sobretudo urbanas e concentradas. Para formar um pastor pentecostal bastam alguns meses. O campo de escolha é amplíssimo, já que não se exige nada mais do que o desejo de sê–lo e a consagração à obra. Além disso, nem faltam compensações econômicas. Com esse espectro gigantesco de escolha, os pastores são produzidos às dezenas e centenas por ano numa única cidade e lançados no mercado espiritual das Igrejas pentecostais e neopentecostais.
Esta abundância de pastores traz uma consequência altamente propícia para o crescimento das Igrejas. Os pastores podem demonstrar e praticar uma acolhida mais personalizada às pessoas. As comunidades podem ser menores, já que podem subdividir-se progressivamente e encontrar um pastor. Num país de extrema carência humana, em que as pessoas pobres são aviltadas e humilhadas praticamente em todos os ambientes, sentir-se gente numa Igreja é uma experiência muito gratificante.
Além disso, o pastor consegue articular duas atitudes aparentemente antitéticas, mas que produzem um efeito de sucesso. De um lado, esta acolhida e de outro um virulento autoritarismo. Este, porém, é apresentado como um encargo divino, fruto de uma iluminação e vocação. Ele vem responder à necessidade que pessoas pobres desfeitas e desestruturadas pela violência da vida moderna sentem de um ponto de referência seguro, firme. E o pastor filhos oferece.
O ministro católico, por sua vez, é escolhido unicamente entre os celibatários. Aí já vai uma seleção enorme. É submetido a uma longa formação espiritual, intelectual e moral. E no percurso da mesma, muitos desistem. E na vida pastoral o ministro ordenado, por maior que seja a participação do leigo, ainda é o centro e motor. O pequeno número dos ministros ordenados deixa-os na impossibilidade de demonstrar acolhida personalizada a seus fiéis, criando comunidades muito formais e sem calor humano de proximidade. A formação atual dos ministros e as opções pastorais da Igreja impedem de usar do jogo do milagre, do exorcismo, do autoritarismo despótico, como o fazem as Igrejas pentecostais e neopentecostais. Portanto, evidentemente ante esse duplo quadro ministerial, não há por que estranhar que as Igrejas pentecostais e neopentecostais tenham muito mais possibilidade de crescimento.
A razão, que ultimamente se tem alegado, de que o crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais vem do fato de a Igreja ter-se dedicado mais ao campo social que religioso, não convence. A menos que com isso se queira dizer que a Igreja oficial abandonou o incentivo às duas coordenadas espirituais, acima elencadas, do cultivo do milagre e do exorcismo. Mas tal mudança não veio por causa da dimensão social, mas simplesmente por influência da modernidade ilustrada, assumida no Concilio Vaticano II.
Há uma outra componente importante no crescimento das Igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas atuam principalmente sobre pessoas oriundas do campo e sobre donas de casa. A respeito das donas de casa, parece mais simples entender tal influência por causa da massiva e maciça presença dos crentes através dos programas de rádio e de TV. As donas de casa durante o dia de trabalho ouvem muito o rádio. E as estatísticas apontam, de fato, uma maior audiência em relação ao rádio por parte dos membros das Igrejas pentecostais e neopentecostais.
No caso das pessoas do campo, as razões se referem provavelmente ao desarrimo que elas sentem ao chegar na cidade. E as Igrejas pentecostais e neopentecostais oferecem apoio, quer material, quer psicologicamente. Ambas ajudas favorecidas pela abundância de pastores, que podem acolher as pessoas diretamente, explicam esse fluxo.
De fato, quando essas pessoas estavam no campo tinham na presença mais forte da Igreja católica, suas tradições, festas, costumes, uma referência clara. Ao vir para a cidade, tal referência desaparece. Além disso, a falta de padres católicos, a sua posição menos autoritária, a dificuldade do contacto pessoal com essa massa de migrantes deixam as pessoas entregues à ação das Igrejas pentecostais e neopentecostais.
Com efeito, muitos frequentadores das Igrejas pentecostais e neopentecostais são pessoas que vieram do interior. Lá elas tinham na Igreja católica, claramente configurada pela posição física do edifício da Igreja e da pessoa do pároco, sua segurança. Ao virem para a cidade, perdem referências e são bombardeadas pelos meios de comunicação, pela sedução dissolvente da grande cidade. Desestruturam-se, tornam-se inseguras. Ora, o pastor, com seu autoritarismo, dogmatismo, firmeza e convicção inabaláveis, surge para essas pessoas como um ponto firme de referência e segurança, como dissemos acima.
Os crentes confirmam tal hipótese ao darem como motivação de sua participação nas Igrejas a busca e recebimento de apoio, amparo. Encontram nelas a tábua de salvação, que buscam na desorientação causada pela mudança para a vida urbana.
É de prever, portanto, que tal fluxo migratório da Igreja católica para as Igrejas pentecostais e neopentecostais continue crescendo, a não ser que haja uma profunda mudança na estrutura ministerial da Igreja católica — não previsível a curto prazo — ou se estanque o êxodo rural. Além disso, a pastoral na zona rural também deveria adaptar–se a essa nova problemática.
Falsa saída pastoral: Pastoral de conservação e reconquista
Estes e outros fatos mais têm reforçado uma pastoral de conservação de cunho tradicional ou renovado, organizada sobretudo pela paróquia.
A paróquia tradicional tem aproveitado o êxodo para as seitas de muitos fiéis para criticar a pastoral social da Igreja, o empenho nas comunidades de base e nas pastorais específicas. Julga-se que tal tem sido a principal causa da saída dos fiéis. Propugna-se um empenho nas práticas devocionais tradicionais que, segundo esta pastoral, têm ainda força de reter os fiéis e atrair os tresmalhados. Ou se é tentado até mesmo a usar as mesmas armas do milagre e exorcismo com a finalidade de atrair fiéis que emigraram. Naturalmente está por debaixo de tal pastoral uma teologia profundamente equivocada no seu sentido profundo. Transporta-se para o mundo da religião o mesmo espírito de concorrência comercial da sociedade capitalista, esquecendo-se da mais elementar teologia da graça e da salvação.
A imagem, que a grande imprensa quis veicular da última Assembleia da CNBB, vai precisamente na direção de uma Igreja arrependida de seu empenho pelo social e desejosa de voltar a favorecer o extraordinário na religião. No fundo, significa entrar na concorrência com as seitas valorizando os elementos maravilhosos do êxtase coletivo, dos exorcismos, das curas e milagres.
Além disso, conservam-se naturalmente os movimentos tradicionais de piedade, organizados (Apostolado da Oração, Filhas de Maria, Vicentinos etc.) e esporádicos (romarias, procissões, festas da padroeira etc.). Com isso pensa-se enfrentar o desafio das seitas, mas certamente não se responde às questões levantadas pela pesquisa a respeito do perfil do fiel.
A paróquia renovada tenta responder de modo diferente. É mais sensível à problemática levantada pelo novo perfil do fiel e seus questionamentos. Assume o desafio da pastoral urbana. Entende que o fiel está cada vez mais tocado pelo espírito da modernidade: desejo de participação e de valorização de suas experiências pessoais, subjetivas. Além disso, este fiel já não se sente mais vinculado tanto ao âmbito territorial da paróquia. Tem a mobilidade das cidades.
Nesse sentido, a paróquia pretende, pela renovação de suas estruturas internas, proporcionar muito maior participação do leigo nos ministérios, na administração etc. Além disso, em nível transparoquial, estão os movimentos modernos de espiritualidade e apostolado dos leigos. A pastoral urbana vive certo impasse e cada vez maior conforme cresce a cidade. E um dos nós de estrangulamento está na sua concepção paroquial-territorial. O homem urbano se define, não pelo território onde mora, mas pelos interesses que tem. Se quer fazer esporte, não vai ao clube de seu bairro, mas ao de seu interesse, status etc. O mesmo vale de todas as suas atividades humanas. E cada vez mais valerá também das atividades religiosas. Reúne-se para rezar ou freqüenta os ritos sagrados onde estes lhe respondem melhor às necessidades espirituais.
Ora, de maneira intuitiva, ainda que talvez não claramente consciente, os movimentos vêm responder a essa nova configuração da cidade moderna. São transparoquiais, transdiocesanos, transnacionais. Quanto mais se desenvolve a sociedade urbana, mais “trans” ela fica. E nesse sentido os movimentos são, como estrutura, uma resposta, ao que parece, adequada. Não se trata aqui de seu conteúdo, mas da sua estrutura de atuação. Os movimentos tentam também ir na linha de serem criadores e articuladores de comunidades de vida cristã. Uma Igreja de comunidades no nível popular — CEBs — e no nível de classes letradas — movimentos, coordenação de comunidades de vida cristã — pode estar anunciando um novo modelo de Igreja. As atuais estruturas de organização deverão ser profundamente modificadas para darem conta dessa imensa rede de comunidades vivas de fé, de vivência e de práxis cristã, sem as violentarem e sem também deixarem perder a referência unitária da catolicidade.
Conclusão
Muitas leituras dos dados da pesquisa são possíveis. E as conclusões e pistas pastorais vão brotando à medida que elas forem feitas. Algumas pistas aqui indicadas necessitam ser mais fundamentadas. Ter iniciado este processo é o grande sinal dos tempos de nossa Igreja particular. É realmente empenhar-se em “Construir a Esperança” contra toda esperança. O campo da inviabilidade de dados estatísticos abre o espaço da esperança teologal e pode mover muitos cristãos a acreditarem na causa da Igreja de comunidades
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), Libanio foi um grande teólogo da libertação, pastoralista, professor de teologia sistemática e da práxis cristã, escritor, orientador de estudos, conferencista, assessor da CNBB, da CRB, das CEBs, de grupos de jovens e de muitos outros grupos, movimentos e pastorais. Além disso, foi vigário paroquial.
(os grifos são nossos)
Fonte: