Por Maria Clara Bingemer
Em meio ao conjunto de contrassensos em que se transformou o cenário brasileiro às vésperas das eleições, o universo das mulheres atrai a atenção. São potencial eleitoral respeitável e inimigas a temer.
É fato que em muitos países a participação política feminina tem sido decisiva para mudar contextos, transformar mentalidades e, inclusive, obter vitórias importantes. Não seria demais lembrar o grande movimento das mães da Praça de Maio que, caminhando em círculos silenciosamente, todos os dias, com um pano branco sobre a cabeça, ajudaram a desestabilizar a cruel ditadura argentina.
Entre nós, neste momento, a atitude de alguns candidatos com mulheres tem sido particularmente eivada de machismo e preconceito. Algumas vezes têm chegado às raias do insulto. Como o candidato que disse a uma colega do Congresso que não a estupraria porque ela não o merecia. O (mesmo) candidato atalhou com particular impaciência e grosseria outras mulheres que o entrevistaram ou apartearam, ou dele discordaram. Igualmente foram feitos comentários em discursos ou entrevistas de que era muito normal e até mesmo desejável que a mulher ganhasse um salário menor do que o do homem.
Tudo isso provocou a indignação das mulheres que, em tempos de feminismo já para além da terceira onda e numa sociedade onde a questão do gênero é central, não admitem mais ouvir semelhantes barbaridades. Porém, o que mais tem provocado estupefação e indignação são as recentes declarações de um candidato a vice-presidente.
Declarou o candidato que famílias onde falta a presença masculina e paterna, e onde as crianças são criadas pelas mães e avós, produzem-se filhos e netos desajustados, que se tornam presa fácil para o tráfico e a criminalidade. Questionado posteriormente o candidato reafirmou suas declarações, desta vez acrescentando que sua intenção não era depreciar as mulheres, mas defendê-las, devido às duras condições em que são obrigadas a viver.
Parece-me muito positivo que o candidato se preocupe com a situação das mulheres que não recebem do Estado creches e condições adequadas para deixar seus filhos a fim de poderem trabalhar. Em sua análise, porém, falta um detalhe: a solidariedade dessas mulheres entre si. Ao partir para o trabalho, são ajudadas pelas vizinhas, amigas e conhecidas, que tomam conta de seus filhos pequenos.
Ao chegar em casa, as mulheres que trabalharam o dia inteiro resgatam seus filhos da casa onde se encontram, lhes dão de comer e à noite ainda participam de reuniões de comunidade, de igreja ou clubes de mães. Por sua vez, aquelas que se responsabilizaram pelas crianças durante a jornada de trabalho das mães continuarão prontas a ajudar sempre que necessário. E assim se forma a rede de solidariedade feminina, condição fundamental para que a sociedade – e em termos maiores, a humanidade – possa crescer e desenvolver-se sem estar condenada a uma extinção prematura.
Até o presente momento, caro candidato, os homens têm, sim, sido ativos na reprodução da espécie, mas não em sua conservação. Muitas vezes engravidam as mulheres e se vão, em busca de outras experiências, sobretudo mais novas. As mães permanecem. E criam os filhos, enfrentando todas as dificuldades, dispostas a defender as crias e tirar o pão da boca para alimentá-las.
Nessa tarefa têm sido muito ajudadas. Por quem? Pelos homens? Não exatamente. Por outras mulheres, mais velhas, que foram as que as criaram e jamais delas desistiram. É a cadeia imortal e milenar da maternidade, que se mantém ativa e dinâmica, gerando, nutrindo e protegendo a vida.
Perdi meu pai com nove anos de idade, fui criada por minha mãe e minha avó. Juntas formaram o marco de ternura e vigor que me constituiu como pessoa. Ambas foram meus exemplos e guias na vida. Embora sentindo, sim, muita falta de meu pai, não resultei desajustada e disfuncional.
A razão pela qual as famílias mais pobres hoje em dia perdem tantas vezes seus filhos para o tráfico não é o fato de terem mulheres como chefes e cabeças. E sim a pobreza e a injustiça em si mesmas. É um contexto opressor que não deixa saídas aos jovens, que não lhes apresenta oportunidades, que lhes rouba a esperança. Dentro desse quadro sombrio, muitas vezes o tráfico e a criminalidade conseguem lançar sua mão mortal sobre eles. Mas outras vezes não. E quando não conseguem, é quase sempre porque houve em suas origens uma mãe e uma avó para dar carinho, para estar presente, para dar vida ao preço da própria vida.
Não culpe, por favor, as mulheres pela violência que vitima cruel e maciçamente nossa juventude. Culpe as estruturas injustas que geram miséria e violência, e que a política teria a obrigação de ajudar a transformar. Nessa missão, sempre poderá contar com o concurso das mulheres. São elas as primeiras interessadas em construir um mundo mais humano para as novas gerações que gestaram em seus ventres.
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Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros