O Observatório compartilha aqui a série de artigos sobre o laicato do teólogo pastoralista Agenor Brighenti, por duas razões: primeiro, diante dos poucos frutos eclesiais do Ano do Laicato, segundo, o marco da recente celebração dos 30 anos da publicação da Exortação Christifideles Laici, pelo Papa João Paulo II, em 1988, sobre a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo. Nosso objetivo é provocar a reflexão e a conversão pastoral eclesial no ano do Sínodo da Amazônia…
Serão dez artigos dedicados à situação (três artigos já publicados aqui no Observatório da Evangelização), à vocação (quatro artigos) e à missão (três artigos) do laicato na Igreja e no mundo. Reflitamos agora sobre a missão dos leigos e leigos na Igreja e no mundo.
Leia a seguir o primeiro artigo sobre a vocação do laicato na Igreja e no mundo. Confira:
O laicato na Igreja e no mundo (4)
Por Agenor Brighenti
Nos três artigos anteriores, em grandes linhas, apresentamos a situação dos leigos e das leigas na Igreja e no mundo, hoje. Agora, nos quatro artigos que seguem, abordaremos sua vocação e identidade. Comecemos pelo significado do termo “leigo” e as razões do surgimento do laicato no seio da Igreja – cristãos de “segunda categoria”, tudo o que Jesus não queria.
A evocação do termo “leigo” na Igreja
A distinção e separação entre clero e leigos surgiu na Igreja durante o século III e se consolidou no século IV. No seio do cristianismo, o termo “leigo” aparece pela primeira vez na Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, escrita no ano 95. Intervindo num grave conflito entre jovens e os presbíteros que presidiam a Igreja de Corinto, o termo é evocado, entretanto, não para separar clero e leigos, mas simplesmente para referir-se ao papel específico dos diferentes ministérios no seio da Igreja e sem aplicá-lo aos cristãos. Na carta, Clemente exorta as partes ao entendimento, lembrando que no seio do Povo de Israel, no Antigo Testamento, havia papeis diferentes na celebração do culto: “[Pois], ao sumo-sacerdote foram confiadas tarefas particulares, aos sacerdotes um lugar próprio, aos levitas certos serviços e o leigo liga-se pelas ordenações exclusivas dos leigos” (40,50).
Como se pode constatar, Clemente de Roma usa o termo “leigo” não para legitimar ou justificar uma separação entre presbíteros e demais membros da comunidade eclesial. De forma ilustrativa, ele quer apenas lembrar que na comunidade dos cristãos existem ministérios e tarefas distintas, que devem confluir para a unidade e o fortalecimento da comunidade dos fiéis. Tanto que o termo “leigo” só voltará a aparecer no seio do cristianismo no século III, quando realmente se começa a organizar a Igreja no modo da religião judaica e mesma pagã, nas quais se separava os sacerdotes do restante da comunidade dos fiéis. Nelas, os sacerdotes celebram e a comunidade assiste; as autoridades decidem e os fiéis executam.
O significado do termo “leigo”
O termo “leigo” é um termo bíblico, do Antigo Testamento, aplicado ao povo de Israel. Tem um significado, entretanto, que não se aplica ao cristianismo e não poderia ser usado na Igreja. O termo provém da palavra grega laós ou laikós, que significa – povo, só que entendido como uma categoria de pessoas distinta dos chefes e submissa a eles. Na religião pagã, como também no judaísmo, os chefes não são membros do “povo”, pois estão acima dele; eles dirigem e comandam o povo. Por sua vez, o que se designa por “povo” não é realmente povo, mas plebe, pois é uma categoria inferior e oposta a uma categoria superior, a dos chefes. Tal como nos reinos terrestres, existe o rei e, no seio do reino, há os plebeus, os súditos, dado que conformam uma categoria de pessoas inferior à categoria superior dos chefes.
No Antigo Testamento, o termo laós (povo) tem o mesmo sentido corrente nos meios pagãos: de um lado há o povo de Israel, o povo judeu, povo de Deus e, de outro, os sacerdotes; de um lado, há os chefes e, de outro, a massa não-qualificada, o povo simples, que nos meios pagãos se chama plebe; de um lado, há os sacerdotes, os profetas e os reis e, de outro, a massa comandada pelas autoridades, auto-constituídas em nome de Deus.
“Entre vós, não deve ser assim” (Mt 20,26)
Diferente do antigo Povo de Deus, no seio do qual havia os chefes e a plebe, duas categorias distintas de pessoas, no seio do novo Povo de Deus constituído por Jesus, que é a sua Igreja, todos são iguais e, portanto, os dirigentes são membros do povo. Cada batizado é sacerdote, profeta e rei, no seio de um povo todo ele sacerdotal, profético e régio. Na verdadeira Igreja de Jesus, não existe aquele “povo” de segunda categoria, a “plebe”, um laicato separado e submisso à hierarquia. Há um único gênero de cristãos – os batizados, que conformam uma comunidade de iguais, no seio de uma Igreja toda ela ministerial (Y. Congar). A Igreja é povo, raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de particular propriedade de Deus (1Pd 2,9). Os cristãos não são designados clero e leigos, mas todos e conjuntamente como os santos, os chamados, os eleitos, os discípulos, irmãos e irmãs. A estes seguidores de Jesus, os judeus deram o nome de “seita dos galileus” e, as autoridades romanas, de “cristãos” (At 11,26; 26, 28).
A ekkésia – a “assembleia” da Igreja de Jesus, o novo Povo de Deus, é uma fraternidade diferente das existentes no mundo de então. Seus membros, enxertados em Cristo pelo batismo, unidos na “fração do pão” e incorporados no testemunho e no serviço ao mundo, conformam “uma fraternidade de iguais”, no seio da qual não há mais diferença entre judeu e pagão, escravo e livre, homem e mulher (Gl 3,27-28). Ainda que nem todos exerçam o mesmo papel no seio da comunidade, todos os batizados se consideram eleitos para dar continuidade à obra de Jesus, que é o Reino de Deus. Há diferentes ministérios, mas no seio de uma “comunidade de irmãos”; há diferentes funções de seus membros, mas ao serviço da mesma comunidade, na qual todos são “irmãos”. Por isso, onde há clericalismo, o laicato não é povo, é plebe.
Sobre o autor:
Doutor em Ciências teológicas e religiosas pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Curitiba; professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral para América Latina do CELAM, em Bogotá, e membro da Equipe de Reflexão Teológica-Pastoral do CELAM.
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